sexta-feira, 5 de março de 2010

Sofrimento

Morrer e Viver em Cristo: o Sentido Transformador do Sofrimento

(Fernando Sabóia)

"... levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo." 2a aos Coríntios 4:10
"No final de tudo, só temo verdadeiramente uma coisa: não ter sido digno do meu sofrimento." Dostoievsky


Uma das principais fontes de doença de alma nos nossos dias é a não compreensão e não aceitação do sentido e do papel do sofrimento na existência humana.
As dores e os sofrimentos, físicos ou morais, e o seu desfecho inevitável, que é a morte, parecem, no mundo humanista moderno, as provas finais da falta de sentido da vida e da inutilidade de qualquer esforço ou realização.
O homem moderno repete com desconsolo, e mesmo com desespero, as instigantes palavras do Pregador do Eclesiastes: "tudo é vaidade e correr atrás do vento". A existência sem Deus, sem uma realidade transcendente, é uma amarga ironia: quando nos agrada, termina; quando nos é dolorosa, desejamos o fim.
Nem mesmo a concepção da existência de Deus afasta, por si só, o questionamento acerca do sofrimento humano. Ao contrário, de certo modo, o aprofunda.
Por que um Deus poderoso e bom deixa suas criaturas sofrerem, mesmo aquelas que O amam e que foram por Ele recebidas na Sua família como filhos queridos?
Conquanto não tenhamos a pretensão de oferecer respostas definitivas a esse questionamento, algumas verdades bíblicas devem ser afirmadas e a experiência delas pode nos conduzir a uma vida cheia de ânimo e de esperança, mesmo diante do sofrimento.
Uma primeira verdade a ser declarada é que o sofrimento humano é conseqüência do pecado de nossos primeiros pais, da alienação de Deus, de si mesmo, dos semelhantes, do sentido da vida e do próprio planeta que sua desobediência provocou. É, assim, uma experiência da raça, independentemente da ação dos indivíduos, e não procede do Criador.
Se o homem, inimigo de Deus, de si mesmo, de seus semelhantes e da criação, conseguisse construir um mundo de prazeres a despeito de sua maldade, estaria condenado, fatalmente, ao inferno, pela justiça de Deus, sem sequer jamais se dar conta de que ele mesmo traçou esse destino.
Como escreveu C. S. Lewis,
"Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nosso sofrimento: ele é o seu megafone para despertar um mundo surdo."
E para nós, os que cremos? Se já ouvimos a Deus e nos arrependemos, fomos perdoados e regenerados, aceitos como filhos, por que ainda sofremos?
Algumas repostas podem ser aqui sugeridas.
Sofremos porque o mundo sofre e nós permanecemos nele, para anunciar a salvação de Deus. A igreja imita seu Senhor, que veio aqui viver e sofrer nossas dores e assim nos salvar.
Sofremos porque Jesus precisa ser formado em nós e, para isso, temos que morrer para nós mesmos e renunciar ao mundo com seus prazeres e realizações.
Sofremos porque o Espírito de Jesus em nós sofre por um mundo perdido e indiferente a Deus. Sofremos porque o mundo nos odeia e nos rejeita na exata medida que amamos o Senhor e O anunciamos.
Sofremos porque permanecemos numa existência carnal, sujeitos às paixões do pecado e aos desacertos que ele provoca em nós e nos nossos relacionamentos.
Sofremos porque fomos chamados a amar e "o amor tudo sofre", não consegue ficar indiferente às aflições dos semelhantes e às tragédias provocadas pela insensatez e maldade dos homens.
Sofremos. Levamos o morrer de Jesus cada dia. Para nós, no entanto, todo sofrimento tem um propósito em Deus. Não se trata de um sentido imediato e circunstancial. Trata-se, sim, do plano eterno de Deus de ter uma família de filhos parecidos com Jesus.
O Senhor está se dedicando, nesses dias, a produzir santos, a partir de pecadores como nós, num mundo pervertido e incrédulo. Esse jamais será um processo indolor.
Nesse sentido, afirma Paul Bilheimer:
"Se o propósito de Deus em salvar o homem fosse apenas levá-lo para o céu, provavelmente ele o levaria à glória de imediato após sua conversão. Mas Deus deseja prepará-lo para sua função de governo num universo infinito que requer caráter. O processo de santificação, no desenvolvimento do caráter de Deus, e no amor ágape, é impossível sem tribulação e disciplina.
... fica claro que a tristeza, o sofrimento, a tribulação e a dor que acontecem ao crente não constituem, antes de tudo, castigo, mas treinamento de filho...
Não há como formar-se nesses homens um caráter semelhante ao de Cristo sem sofrimento, porque não há outra forma de descentralizá-los. A pessoa que não quer sofrer, que resolve fugir do sofrimento, que não permite que sua vida natural e o seu ego sejam levados à cruz, nessa mesma medida continuará dura, centrada em si mesma, sem quebrantamento e, portanto, sem transformação à semelhança de Cristo"
Precisamos entender que esse é um caminho de Deus, e não um mero produto de uma existência caótica. Esse morrer e viver em Cristo, no entanto, só será perfeitamente consumado na eternidade. Neste mundo não teremos todas as explicações e nem colheremos todos os benefícios de nossas lutas e provações.
Por ora, o essencial é termos plena certeza de que, se nos unimos a Ele na sua morte, também estaremos unidos com Ele na sua ressurreição. Nessa jornada até lá, conheceremos Sua graça suficiente, desfrutaremos de Sua especial presença consoladora e seremos transformados, moldados, santificados.
Esse é um aspecto decisivo na luta contra o demônio do meio dia.
O ministério do Espírito Santo em nossas vidas inclui o sofrimento, tanto aquele advindo de nossos pecados e escolhas quanto aquele produzido pela maldade humana, pelo inimigo ou pelo caos da vida.
Nesse passo, temos que enfrentar alguns sofismas e mentiras forjadas pelos nossos adversários humanos e espirituais. Em particular, nos referimos a duas famílias de doutrinas muito propagadas em nossa geração.
A primeira, de roupagem pseudo cristã, a que anuncia um evangelho humanista, voltado para o conforto nesta vida, onde se oferece salvação, saúde, prosperidade, bem-estar, satisfação emocional e sucesso pessoal em troca do exercício de uma fé que se concretiza, principalmente, por meio de um investimento financeiro.
Essa doutrina pretende se basear em interpretações arbitrárias das Escrituras, de onde se inferem conceitos e promessas absolutamente estranhos ao evangelho de Jesus e ao ensino dos apóstolos. Tudo embalado num espiritualismo místico que reúne elementos de demonologia pagã e rituais bizarros que não têm nenhum respaldo bíblico.
Não se fala em pecado, arrependimento, conversão, reino de Deus ou santidade. Apenas em realização pessoal e conforto emocional e material.
As pessoas são atraídas por promessas ilusórias, submetidas a intensas pressões psicológicas e emocionais, expostas a demônios e enganadas sobre suas reais necessidades, o que, tudo junto, configura um ambiente fortemente causador de enfermidades de alma.
A segunda família de doutrinas é representada pelas elaborações e terapêuticas sugeridas e aplicadas pelas psicologias do self, isto é, do eu voltado para si mesmo.
Em resposta às pressões e aos abalos que a modernidade trouxe para a vida psicológica e emocional das pessoas, o humanismo, instrumentalizado por alguns ramos do conhecimento, sugere como solução o fortalecimento do ego e sua capacitação para se afirmar e para buscar a realização de seus desejos e projetos, a despeito das adversidades.
No entanto, como não se reconhecem verdades e valores absolutos, fica sem solução o problema fundamental do homem, que é sua culpa moral verdadeira, advinda de sua rebelião contra Deus e das afrontas ao padrão moral requerido por Ele. Do mesmo modo, ficam sem tratamento adequado as conseqüências dessa disposição mental ímpia no caráter e relacionamentos humanos, muito bem descritas em Romanos, capítulo 1.
A cura essencial do ser humano, sua salvação, só pode acontecer mediante sua reconciliação com Deus, por meio da graça e do perdão oferecido pelo sacrifício de Jesus. Dessa restauração procedem as demais, como a do caráter, dos relacionamentos e do sentido da vida.
Não resolvida a questão da culpa, os sentimentos de remorso, os conflitos de consciência e as más experiências da vida produzem distorções no caráter e na personalidade, tornando a alguns endurecidos, encastelados na soberba, e a outros "quebrados", esmagados pela autocondenação ou autocomiseração.
O que essas duas famílias de doutrinas têm em comum é que ambas negam a cruz de Cristo, que é a única fonte de salvação e cura para o homem.
Elas pretendem manter e reforçar o que Deus quer aniquilar no homem: a soberba, o egoísmo e a independência; e impedem que se produza o que Ele quer gerar: santidade, amor, obediência.
Só a cruz produz paz com Deus e reconcilia o homem com seu destino eterno, colocando o centro de sua existência de volta ao único lugar de onde podem emanar vida, ordem, valores, significado, segurança e eternidade, vale dizer, o reino do Pai.
É a experiência do amor de Deus em Cristo Jesus a única que nos pode dar conforto e sentido ao sofrimento. Novamente Lewis:
"... quando é preciso suportar a dor, um pouco de coragem ajuda mais do que muito conhecimento, um pouco de simpatia humana tem mais valor do que muita coragem, e a menor expressão do amor de Deus supera tudo."


Brasília, 2009, aD.
Fernando Sabóia Vieira, de "As Quatro Faces do Demônio do Meio-Dia".

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