quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Papéis, Personagens, Personalidade e Autofagia da Alma


Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,

 
         Ainda como introdução ao tema da santidade da alma, tenho alinhavado alguns pensamentos sobre sinceridade e autenticidade, que compartilho com vocês.

Fernando

 
Papéis, Personagens, Personalidade e Autofagia da Pessoa

Fernando Sabóia Vieira

 
Filipenses 1:10 – “serdes sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo”

Filipenses 2:15 – “vos torneis irrepreensíveis e sinceros

 

         Um dos mais pitorescos filósofos gregos da antiguidade foi Diógenes de Sínope. Tendo assumido uma vida de extrema pobreza, conta-se, vivia dentro de um barril. Durante o dia, passeava pelas ruas de Atenas com uma lanterna acesa. Segundo ele, estava à procura de homens verdadeiros.

         Tenho refletido, nesses dias, sobre sinceridade, autenticidade. Também estou em busca de homens verdadeiros, a começar por mim mesmo. Sou autêntico? Sou sincero? Expresso o que sou, creio, desejo e penso, ou estou sempre escondendo algo, sendo conveniente, me disfarçando, desempenhando um papel, agindo por medo ou vaidade?

         Os cristãos deveriam ser as pessoas mais autênticas e sinceras. Encontramos, nas Escrituras, muitas exortações nesse sentido. Deus se compraz “com a verdade no íntimo”, deve ser honrado não apenas com os lábios, mas com o coração, deve ser adorado em espírito e em verdade. De igual modo, devemos ter uns para com os outros um amor “não fingido” e celebrar nossa comunhão com os “asmos da sinceridade e da verdade”, recusando o veneno da hipocrisia farisaica.

          Mas, infelizmente, com demasiada frequência, não é o que acontece. De fato, tenho encontrado muitos que deixaram de ser pessoas e se tornaram apenas personagens: repetem frases feitas, chavões, palavras ocas, não expressam pensamentos ou sentimentos verdadeiros. Esses, tão somente, desempenham – representam – papéis. A verdadeira pessoa que eles são está oculta, perdida, abafada, consumida por uma artificialidade, um comportamento aprendido, superficial. Será preciso mais do que a lanterna de Diógenes para encontrar em qualquer deles sua pessoa autêntica. É uma tarefa para o Espírito que perscruta todas as coisas, até mesmo as profundezas da alma humana.

         Como acontece da pessoa vir a ser devora por um personagem dela mesma?

         Somos todos chamados a desempenhar papéis na vida. Começamos com os papéis naturais de filhos, irmãos, parentes, depois de amigos, pais, mães, profissionais etc. Na igreja, do mesmo modo, temos papéis a cumprir como irmãos, companheiros, discipuladores, líderes, pastores etc. Um papel significa um padrão, um conjunto de atitudes que devemos ter, tarefas que devem ser desempenhadas, qualidades a serem desenvolvidas, uma personalidade a ser moldada, um caráter a ser formado.

         O papel é um ideal que ainda não alcançamos e, por isso, ao nos esforçarmos para desempenhá-lo, acabamos, de algum modo, representando um personagem: o discípulo, o pai, a mãe, o irmão, o líder que deveríamos ser, mas que, efetivamente, ainda não somos.

         Talvez pudéssemos diferenciar desempenhar de representar um papel, considerando o primeiro o saudável exercício de responsabilidades e o segundo a artificialidade compatível com as artes cênicas, mas não com a vida real. No entanto, penso que, na prática, os dois aspectos tendem a se confundir: quando desempenho um papel, quase que inevitavelmente, em alguma medida, represento um personagem.

         Essa é a face exterior de um processo que deveria ser sempre comandado por sua dinâmica interior, da comunhão íntima com Deus e da presença vivificadora do Espírito Santo, única capaz de produzir uma verdadeira transformação do que somos naturalmente no que devemos nos tornar nEle, ou seja, de gerar identidade pessoal  autêntica, conformada com o propósito para o qual fomos criados, à medida em que buscamos desempenhar os papéis que Ele a nós nos destina.

         Quando, no entanto, o desempenho de papéis, vale dizer, a exterioridade, a funcionalidade, se torna o fator dominante na formação da personalidade e do caráter, ele assume o aspecto mais próprio da representação, e o personagem se torna antropofágico passando a consumir a pessoa, que pode vir a se tornar uma caricatura, uma versão falsa de si mesma. Essa dissociação da identidade, fracionada entre pessoa e personagem, pode vir a ser patológica, inclusive.

         É curioso notar como o personagem, com o tempo, conforma não apenas o comportamento e as emoções, mas modifica até mesmo o corpo, cristalizando posturas, expressões faciais, gestos. Não vemos pessoas que têm posturas sempre encolhidas, ou desafiadoras, ou apressadas ou indolentes, ou têm os rostos marcados por expressões de dor, de temor, de alegria?

Há nelas, quase sempre, certa artificialidade, uma desconexão da postura e da expressão com o momento e o ambiente. São as roupas e expressões do personagem que já está a encobrir a pessoa.

         A superposição do personagem em relação à pessoa pode ter como pano de fundo a consciência de nossa inadequação aos papéis de nós requeridos, de nossas fragilidades. O personagem é sempre definido, não oscila, faz o que esperam dele, repete as frases corretas, assume as posturas que lhe garantirão proteção, acolhimento, reconhecimento, poder etc. Assim, a pessoa é tentada a se esconder por debaixo do personagem e não percebe sua própria dissolução.

         Esse processo também pode ser alimentado pela culpa, pelo medo da rejeição, pelo desejo de aceitação, pelo instinto de autopreservação, pela necessidade de adaptação ao meio. Também sofremos as pressões da imposição de padrões de sucesso e de realização dentro e fora da igreja.

As modernas redes sociais midiáticas são grandes estimuladoras disso, pois possibilitam, na criação dos perfis, que cada um se apresente como personagem de uma história de vida construída com muitos elementos de artificialidade.

         Identificamos, desse modo, o que podemos chamar de dilema da transformação. Buscamos sempre desempenhar nossos papéis e nos tornar pessoas melhores. No entanto, nesse caminho, podemos nos perder e deixar de ser autênticos.


         Thomas Merton escreveu:

         “O homem é um ser livre que está sempre se transformando em si mesmo. Mas essa transformação nunca é meramente indiferente. Estamos sempre nos tornando melhores ou piores."

         Nós, cristãos, buscamos constantemente ser transformados à imagem de Deus e temos Jesus como nosso modelo. Mas ao viver uma vida de imitação do Senhor em suas palavras, obras, coração, atitudes e sentimentos, ao desempenhar nossos papéis, ao tentar alcançar o padrão de santidade de caráter que Ele nos requer, temos que ter o cuidado de estar sempre produzindo uma versão autêntica e verdadeira de nós mesmos, caso contrário podemos estar apenas representando um personagem que acabará por nos consumir a identidade pessoal.

         É muito importante lembrar que embora os padrões de vida, comportamento, compromisso, serviço e santidade requeridos por Deus sejam os mesmos para todos, sua busca e desempenho nunca nos tornará um exército de robôs homogeneizados e despersonalizados. Ao contrário, cada um de nós expressará de forma particular e única uma faceta da infinitamente multiforme natureza divina.

         O dramaturgo Luigi Pirandello (1867-1939) escreveu uma curiosa peça teatral intitulada “Seis Personagens à Procura de um Autor”, na qual um diretor de teatro tem suas sessões de ensaio invadidas por seis personagens que desejam ser aproveitados na peça.

         Talvez possamos daí imaginar um caminho de volta para aqueles que estão sendo consumidos por seus personagens: a busca do Autor da Vida, do nosso Criador, para que Ele nos dê autêntica identidade e verdadeiros papéis a desempenhar, que nos construam como pessoas.

         De todo modo, nossa integridade e autenticidade pessoal e a sinceridade e verdade do nosso caráter e comportamento só poderão ser alcançadas pelo caminho da busca da vida interior pelos indispensáveis passos do esvaziamento, do encontro com Deus, consigo mesmo, da regeneração produzida pelo Espírito Santo, do ser nova criatura.

 
         Brasília, janeiro/fevereiro de 2013, AD.

          Fernando Sabóia Vieira

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Amanheceres


 

A vida me envolve com penumbra e mistério

Enquanto espero coar

O primeiro café da manhã fria de chuva.

 

Nunca tenho fome a essa hora.

 

O dia tenta amanhecer na minha mente,

Com seus horários, agendas,

Filas e inquietações.

 

Eu tento prolongar, mais um pouco,

O lusco-fusco dessa madrugada da alma,

Que sossega na penumbra

E no silêncio, enquanto espera.

 

Na quietude silenciosa da primeira hora

- hora do Espírito e da poesia –

Ainda posso ouvir as vozes de seres e de mundos

Que logo serão abafadas pela ruidosa sensatez

Da vida comum.

 

 

Fernando Sabóia Vieira