terça-feira, 27 de dezembro de 2011

UM POUCO DE JOHN OF RUYSBROECK (1293-1381)

Da Gratidão

     A devoção interior produz frequentemente gratidão, pois ninguém pode agradecer e louvar a Deus tão bem quanto o homem interiormente espiritual. E é justo que agradeçamos e louvemos a Deus, porque Ele nos criou como seres racionais, ordenou e destinou os céus, a terra e os anjos ao nosso serviço; e porque Ele se tornou homem por causa dos nossos pecados, nos ensinou, viveu por nós, nos mostrou o caminho e porque Ele a nós ministrou em humilde roupagem, sofreu uma morte ignominiosa por amor a nós e prometeu Seu reino eterno e também a Si mesmo como nossa recompensa e retribuição.
Ele nos poupou quando pecamos, nos perdoou e perdoará, derramou Sua graça e Seu amor em nossas almas e habitará e permanecerá conosco, e em nós, por toda a eternidade. E Ele nos visitou e nos visitará todos os dias da nossa vida com Seus nobres sacramentos, de acordo com a necessidade de cada um, e nos deixou Sua carne e Seu sangue como comida e bebida, de acordo com o desejo e a fome de cada um. Ele colocou diante de nós a natureza, as Escrituras e todas as criaturas como exemplos e como espelho, por meio dos quais podemos olhar e podemos aprender como tornar nossos atos obras de virtude.
Ele nos deu saúde, força e poder, e, às vezes, para nosso próprio bem, nos enviou enfermidades. Nas nossas necessidades exteriores estabeleceu paz e felicidade interiores em nós, e nos fez ser chamados por nomes cristãos e nascer de pais cristãos. Por todas essas coisas devemos agradecer a Deus aqui na terra para que possamos, depois, agradecer a Ele por toda a eternidade.
     Devemos também adorar a Deus por meio de tudo o que podemos obedecer a Ele. Louvar a Deus significa que por toda sua vida o homem glorifica, reverencia e venera a Divina Onipotência. O louvor a Deus é a finalidade e o trabalho adequado dos anjos e dos santos nos céus, e dos homens que o amam na terra.
Deus deve ser adorado voluntariamente, pelo oferecimento de todos os nossos poderes, por obras e por palavras, com o corpo e com a alma, com a fé e com tudo o que possuímos, em serviço humilde, do interior e do exterior.
     Aquele que não louva a Deus enquanto está na terra ficará mudo eternamente. Louvar a Deus é o mais querido e alegre trabalho de cada coração cheio de amor, e o coração que está repleto de louvor deseja que cada criatura adore a Deus. O louvor a Deus não tem fim, pois é nosso refrigério, e muito justamente o adoraremos na eternidade.

     John of Ruysbroeck, "The Adornment of the Spiritual Marriage”, Cap. XIII.
     Original disponível em www.ccel.org
     Tradução de Fernando Sabóia Vieira

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

POR QUE E PARA QUE JESUS VEIO AO MUNDO?


- uma explicação e um propósito para o Natal
João 3:16

    Por que Jesus veio ao mundo? Por que se tornou homem e experimentou a fraqueza, a tentação, a perseguição e a morte?
     A explicação para o mistério da encarnação está no amor de Deus: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho...”.
     O amor de Deus é um fato puro, sem antecedentes, originário, anterior ao tempo e ao espaço e não limitado por eles.
     Por vezes nos perguntamos por que existimos. Não nos satisfazem as explicações científicas ou filosóficas. Nem a teoria do acaso nem a evolução gradual fazem sentido. Eu existo, sou consciente disso, sou um ser pessoal feito para relacionamentos e para viver valores morais. Não há nada semelhante na natureza. Por que, então, existo?
     Existo porque Deus amou. Amou e criou, amou e Se revelou, amou e deu liberdade, amou e não desistiu de amar. Amou e enviou Seu Filho unigênito para busca suas criaturas rebeladas e perdidas.
     E aí já nos deparamos com a segunda pergunta.
     Para que Jesus veio ao mundo? Para que viveu uma vida de amor e serviço e morreu na cruz? "Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna".
     O propósito de Deus desde a criação de ter uma família de filhos semelhantes a Ele é o mistério revelado no Evangelho.
     Entre o porquê e o para que, Jesus viveu uma vida plena de significado e de propósito. Nossa vida também tem, em Jesus, uma explicação no amor de Deus e uma finalidade no Seu propósito eterno.
Existimos por causa do Seu amor e vivemos para experimentar e expressar esse amor, a fim de que outros sejam por ele alcançados. E Deus tenha a numerosa família que Ele quis ter desde sempre.
Em qualquer circunstância da vida, a certeza de que Deus nos ama nos dá significado e valor e a revelação da Sua vontade nos enche a vida de propósito. Não corremos “atrás do vento”. Não desperdiçamos nossos dias. Vivemos para Ele, que nos amou e a Si mesmo Se entregou por nós.
Que a graça de Jesus seja com todos.

Fernando Sabóia Vieira
Brasília, Natal de 2011, AD.





segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

JESUS: CONSENSO OU CONTRADIÇÃO?


“Esta criança é posta para ruína e levantamento de muitos... e ser alvo de contradição... manifestem os pensamentos de muitos corações.”
Lucas 2:34
     Irmãos queridos,

     Muitos irmãos se alegraram com a produção e transmissão de um show de música evangélica pela Rede Globo de televisão no mês de dezembro deste ano de 2011. Sem entrar nos aspectos comerciais do evento, que promoveu basicamente cantores e músicos produzidos pelo selo Som Livre, pertencente às organizações Globo, o fato me levou a meditar na profecia narrada no Evangelho de Lucas, pela qual Jesus, ali recém-nascido, era apontado pelo velho Simeão, sob inspiração do Espírito Santo, como destinado a ser alvo de contradição.
     Qual a relação do espetáculo com a profecia? Simples. Não há nada mais consensual e menos objeto de contradição na nossa sociedade do que a Rede Globo. Nada do que ela veicula pode constranger quem quer que seja. Não pode ser contra as escolhas livres das pessoas, nem condenar qualquer comportamento pessoal que envolva filosofia, fé ou valores morais. Isso é contra os negócios e contra a filosofia que inspira as mega organizações de mídia e de comunicação. Tudo o que pode ser entendido como preconceito ou julgamento moral fica fora da programação. Prova clara disso está na escolha do apresentador do show, um artista que é símbolo de inclusão e de aceitação de todas as tendências e comportamentos em nome da arte e da liberdade de expressão.
     Seria muito difícil permitir a participação de Jesus num evento como esse. Ele acabaria fazendo alguma declaração polêmica, politicamente incorreta, radical. Seria alvo de contradição, quando a ideia era divulgar uma mensagem de paz e boa vontade universais, vivendo cada um do modo como bem entender.
     Ser consenso nunca foi exatamente uma preocupação de Jesus. Nem dos apóstolos. Nem da Igreja ao longo dos séculos. Quando o Evangelho se recusa a ser ocasião de queda para alguns, deixa de ser salvação para muitos, não manifesta os pensamentos dos corações, não é mais o Evangelho que Jesus pregava.
     Certamente que a mensagem do Evangelho contradiz consensos que são muito caros à nossa tradição religiosa. Alguns deles:
    
- “Todos são filhos de Deus e serão salvos”;
     - “Todos os que fazem o bem estão no caminho de Deus”;
     - “Todos os caminhos levam a Deus”;
     - “Não existe pecado”;
     - “Não existe céu ou inferno”;
     - “A verdade é relativa, os valores são relativos";
- “Cada um tem o direito de viver como quer”;
- “Não existe certo e errado”;
- “O importante é seguir o coração”;
- “Toda religião é boa”.

Essas ideias e conceitos, e outros na mesma direção, configuram uma visão materialista, secular e humanista da realidade. Só leva em conta o que pode ser percebido pelos sentidos físicos, a dimensão do tempo que passa e os limites e os interesses do homem.
Jesus pregava um Reino eterno, espiritual e centrado no Deus Criador, no Seu poder e na Sua vontade. O Evangelho de Jesus anuncia que o homem é pecador e precisa se arrepender, para escapar da ira de Deus e da condenação eterna. É preciso renunciar a tudo, negar-se a si mesmo e obedecer, como discípulo.
Jesus reivindica ser Ele o único caminho, a verdade e a vida, que não há outra via de acesso ao Pai. Não basta seguir preceitos, rituais ou obedecer a padrões morais. É necessário nascer de novo, ter uma transformação espiritual.
Jesus ensinou o padrão de vida e de santidade requeridos por Deus para entrar no Reino. Não há lugar para mentirosos, roubadores, adúlteros, homicidas, impuros, avarentos, lascivos, rebeldes, para quem quer que não faça a vontade do Pai. Essa regra de vida está coerente como caráter de Deus e leva o homem a uma vida plena e feliz, eterna.
Há, assim, pelo menos quatro questões centrais no Evangelho de Jesus que o tornam alvo de contradição. A questão da verdade, da santidade, da autoridade e do amor.
A questão da verdade está colocada a partir da consideração de que se a verdade está em Jesus, tudo o que contradiz essa verdade é falso. Não é uma questão de opinião. Pode-se até admitir diferenças de interpretação em alguns pontos, mas nos seus fundamentos a verdade está claramente expressa na Bíblia, e ela exclui quaisquer outras afirmações que lhe sejam incompatíveis.
A santidade não é uma opção. Deus tem padrões morais absolutos, não culturais e não relativos para a vida do homem. Quem não vive segundo esses preceitos permanece sob a condenação de Deus. Santidade não é perfeição. A Bíblia nunca supõe que qualquer homem ou mulher possa ter uma vida absolutamente perfeita, sem pecados. Para isso já prescreve a confissão e o perdão. Mas a falibilidade humana não modifica o caráter santo de Deus.
Jesus Cristo veio para ser Senhor tanto de vivos quanto de mortos. Ele é o único Senhor. Sua Palavra é mandamento e Sua vontade imperativa. O homem não pode viver como dono de seu próprio destino. Se o fizer, estará sob condenação.
Finalmente, a questão muitas vezes controvertida e não entendida do amor de Deus. Deus enviou Jesus porque amou sobremaneira o mundo caído e o homem perdido. Em Jesus, a graça e a verdade se encontraram. Deus não renunciou Sua Justiça, mas a realizou na vida e morte de Jesus. O amor de Deus e a oportunidade de salvação são oferecidos a todos. Mas nem todos os recebem. O amor de Deus jamais estará em contradição com os demais aspectos de Sua natureza. Ele não pode amar e ser injusto ou contaminado pelo mal.

     Caros irmãos. Jesus veio ser alvo de contradição. E nós? Queremos ser consenso? Vamos comprometer o Evangelho e negociar com o mundo para sermos aceitos? Para termos acesso aos meios de comunicação, às redes sociais e aos círculos do poder secular? Que Deus não o permita!

     Que a graça de Jesus seja com todos.

     Fernando Sabóia Vieira
     Brasília, dezembro de 2011, aD.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Receita de um Sorriso

Por um sorriso que não seja
fútil esquecimento
dos sofrimentos do mundo,
da fome das crianças,
do desassossego dos velhos;

Por um sorriso que não tenha o gosto
ácido da malícia,
que não seja violência contra o desvalido
nem máscara da alma;

- Um sorriso
que não viva do ridículo do outro,
que não seja filho da ebriedade irresponsável,
que não se torne pai do desalento
e da vergonha.

Quero um sorriso que seja tão somente
materialização
do dom divino do contentamento,
repercussão
de conversas íntimas com o Pai.

Quero um sorriso que inspire harmonias
aos anjos dos céus e aos humildes da terra,
que contamine as circunstâncias de cada dia
e diga sim à vida,
que intimide os espíritos das sombras
e acolha o aflito.

- Um sorriso que se divirta com a eternidade
e faça vibrar os átrios do Senhor,
um sorriso
que todas as crianças do mundo possam entender
e reflita a face luminosa de Deus.

Fernando Sabóia Vieira, de "Café com Poesia".

Kenosis – O Caminho do Esvaziamento


        Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,

         Estive meditando sobre o texto de Filipenses 2:5-11, especialmente quanto à exortação do Apóstolo no sentido de que devemos imitar a atitude de esvaziamento (kenosis) voluntário do Verbo Eterno: “... a si mesmo se esvaziou ...”.
         Esse esvaziamento auto imposto não visa apenas o se desvencilhar do princípio maligno da soberba, raiz de todo o mal que nos contaminou a raça desde Adão. Mas esvaziar-se, essencialmente, para que o Espírito Santo possa fluir e nos encher intimamente da Presença.
         Deus habita em nós pelo Seu Espírito, que é vento, sopro, hálito, movimento, fonte que jorra, rio que corre, chama que se propaga. É dinâmico como a vida que Ele gera e sustenta. Ser cheio do Espírito – da Presença – é um processo contínuo de se esvaziar e ser preenchido. Essa plenitude da Presença, comunhão e ação de Deus em nós e através de nós é o propósito eterno para o qual fomos criados.
         Para isso, além de refrear os impulsos da carne, é necessário também dominar as faculdades naturais da alma, de modo a livrá-la de suas limitações e torná-la apta a receber a iluminação e o poder divinos.
         Reconhecer a fraqueza física e psicológica da natureza humana decaída, mortificar o corpo e renunciar às próprias capacidades é o caminho indispensável para que o Espírito possa se manifestar mais livre e plenamente. Essa é a dinâmica da kenosis. Não se trata de uma mera prática ascética neutra moralmente, mas de uma disciplina que envolve, momento após momento, escolha entre o santo e o profano, o pecado e a santidade, o ego e o Espírito.
         No entanto, em cada situação de pressão, de demanda, de ameaça ou de tentação nossa reação imediata é no sentido de atender aos impulsos instintivos e, secundariamente, de ativar as faculdades comuns da alma: vamos dos instintos de preservação, emoções e comportamentos aprendidos para o pensamento, a memória, a reflexão e a inteligência.
         Tudo isso compõe a face externa e ativa da alma e deixa muito pouco espaço para a ação íntima do Espírito Santo, que atua na dimensão da fé, da eternidade, da revelação, da união com Deus. É necessário bloquear o exterior para que o interior possa fluir. Esvaziar-se.
         Esvaziar-se dos próprios sentimentos, apegos, conceitos, razões, desejos, virtudes e capacidades. Recolher-se e se encontrar com a Presença interior do Senhor. Buscar a direção do Espírito que habita dentro de nós.
         Inclinar-se para o Espírito, andar no Espírito, ser guiado pelo Espírito, consolado pelo Espírito, instruído pelo Espírito, fortalecido pelo Espírito. Onde tudo isso acontece? No homem interior. Através do nosso espírito vivificado pela Presença, são ativadas faculdades e capacidades espirituais da alma, amortecidas pelo pecado. Como isso acontece? Esvaziando-nos de nós mesmos para sermos preenchidos por Ele.
         Vemos claramente essa dinâmica na vida de Jesus, especialmente no Evangelho de João. O Senhor deixa claro que, como homem, esvaziava-se de sua própria vontade para fazer, exclusivamente, a vontade do Pai. Assim, o Espírito fluía plenamente n’Ele.
         O caminho da kenosis, do esvaziamento, é tanto um caminho contemplativo quanto um caminho prático. Tem raízes profundas em nossa identidade como criaturas feitas para refletir a glória de Deus e sermos adotados como filhos, e tem repercussões amplas nas nossas ações cotidianas.
         Ter a mesma atitude, disposição mental, sentimento que houve em Jesus implica viver como Ele viveu: esvaziando-se de si mesmo, servindo, se dando ao propósito do Pai.
         Que a graça de Jesus seja com todos.

         Brasília, dezembro de 2011, aD.
         Fernando Sabóia Vieira

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

DO ENCONTRO AO CONTENTAMENTO



         Companheiros de jornada em busca da vida interior,


         Consideramos o caminho desde a renúncia até o encontro com o Senhor, com seus desafios, tentações e perigos.
         Agora, queremos apontar algumas iluminações e experiências que nos alcançam à medida que perseveramos na jornada em busca da comunhão íntima com Jesus, e que produzem em nossa vida o fruto preciosíssimo – a joia rara – do contentamento.
         São revelações, visitações de Deus, intervenções Suas na nossa vida peregrina que vão forjando em nós a Sua Semelhança, fazendo crescer a intimidade com Ele  e nos dando a convicção crescente de que estamos no caminho certo, sob a direção do Seu Espírito.
         Como o texto ficou relativamente longo, vou apresentá-lo em três partes.


Parte 1


O RECONHECIMENTO SOBRENATURAL DA PRESENÇA
“Deus, na verdade, estava nesse lugar, e eu não sabia.”


         Jacó não sabia. Supunha ser aquele lugar deserto, como deserta estava sua alma. Ele não tinha, naquele momento, pátria, nome ou direção. Estava completamente só, pensava. Jacó não sabia, mas Deus estava ali.
         Ao longo da jornada em busca da vida interior, depois de termos passamos pela estreita porta da renúncia e seguimos o apertado caminho do discipulado de Jesus, tudo pode nos parecer, por vezes, árido e solitário. Em muitos momentos, cremos que ninguém nos vê nem nos ouve. Sentimo-nos como Jacó, sem nome, pátria ou caminho. A alma deserta.
         Então, num instante, numa circunstância da vida, numa encruzilhada do caminho, uma luz se acende, os céus se abrem e percebemos que Deus estava ali, que Sua Presença nos precedera e que Ele enche todas as coisas, em todo espaço e por todo o tempo. Apenas, como Jacó, nós não sabíamos.
         Agora, ao longo da jornada, somos cada vez mais conscientes da Presença, atentos a ela, mais expectantes de sua manifestação.
         Quando repentinamente, inesperadamente, desafiando o olhar comum e mesmo contrariando as aparências somos despertados para o reconhecimento de que o Senhor está presente, somos tomados de temor, de paz, de alegria, imersos em Sua maravilhosa glória.
         Ele está em mim, está nas plantas, nos céus, nas ruas, nas casas, nos carros, em todas as coisas criadas, visíveis e invisíveis para mim. Ele cuida de mim. Sustenta-me. Ama-me.
         Sua Presença me enche de contentamento, de uma profunda e serena confiança. E vou, como Jacó, construindo altares às margens das minhas estradas desertas para me lembrar e testemunhar que Ele é o Deus presente.


A SURPREENDENTE SUFICIÊNCIA DA GRAÇA
“... e colherá diariamente a porção para cada dia ...”


         Frequentemente pensamos que precisamos de muitas coisas, que temos necessidades complexas e difíceis de serem atendidas. Também nos incomodamos grandemente quando o futuro nos parece incerto, pouco promissor ou muito ameaçador.
         Ouvimos o chamado de Jesus, a tudo renunciamos e O seguimos, mas acompanhados, por vezes, da sensação de que vivemos uma vida de carências e privações. E somos, nas vicissitudes da caminhada, nos momentos decisivos de crise, surpreendidos pela suficiência de Sua Graça.
         Não é essa uma experiência trivial. O que ela tem de dolorosa e solitária tem de profundidade e de comunhão com o Senhor. É o momento de Sua visitação providencial, provedora e, contra todas as nossas expectativas, suficiente.
O povo hebreu no deserto não sabia como seria alimentado. Nem a multidão que acompanhava Jesus às margens do lago de Genezaré. Nem nós. Parecem-nos tão escassos os recursos e tão improvável que tão poucos suprimentos possam socorrer tão grandes carências e necessidades. É quando temos a maravilhosa experiência de que a Graça que vem em nosso auxílio diariamente é poderosa e suficiente, porque é o encontro existencial, encarnado, com o Senhor da Graça.
         A visitação da Graça, nosso reconhecimento de sua suficiência, nos enche de contentamento, não apenas com o que recebemos, mas, ainda mais, com o Senhor que assim demonstra por nós o Seu amor.


O CHAMADO IRRENUNCIÁVEL DA VIDA ETERNA
“Também pôs a eternidade no coração do homem...”


         Fomos feitos para viver eternamente. Embora o mundo a nossa volta e o nosso próprio corpo nos indiquem o contrário, há em nós o eco de um chamado para a vida. Assim que a doença mortal do homem é o desespero (Kierkegaard). Quando alguém chega ao ponto de desistir da Vida – não desta existência, mas da Vida – coloca-se na situação mais letal de todas.
         Mesmo sem chegar a esse extremo, podemos ser tentados a renunciar cotidianamente à Vida, se não como existência, mas como alegria e celebração. As dificuldades e perigos da caminhada neste mundo, e mesmo as durezas e provações da jornada espiritual podem nos fazer esquecer que a Vida é um dom precioso. Fomos criados, chamados a uma existência consciente, repleta de valores, de potencialidades e de significado. Somos seres únicos e especiais.
         Pode parecer paradoxal, mas é a mesma jornada que se inicia com a renúncia a única que, afinal, valoriza plenamente a Vida, pois a renúncia nos proporciona o encontro com Aquele que é a Vida. Quando estamos n’Ele, não importa a circunstância, temos a vida porque Ele também está em nós.
         Não podemos explicar como viemos a existir neste mundo. Não podemos hoje compreender como passaremos à próxima dimensão. Mas podemos celebrar o dom precioso da Vida e nos encher da esperança e do contentamento que ela carrega em si mesma, no seu eterno presente. 

Fernando Sabóia Vieira
                                                                                        

domingo, 4 de dezembro de 2011

O Amor Cobre Todas as Transgressões

UMA CRÔNICA DE NATAL


“... mas o amor cobre todas as transgressões.”
Provérbios 10:12


        Ao longo do ano – da vida, na verdade – vamos acumulando questões de relacionamento, situações de conflito, divergências bem ou mal resolvidas. As pessoas falham conosco e nós com elas. Não são apenas mal entendidos ou incompreensões. Pecamos mesmo uns contra os outros. Transgredimos. Sofremos e causamos sofrimento, danos, dores e tristezas. Podemos mesmo ter armazenado tal quantidade de situações como essas que nos pareça muito difícil, senão impossível, superá-las.
         O Livro de Provérbios, em sua sabedoria prática, nos diz diretamente que “o ódio alimenta as contendas, mas o amor cobre todas as transgressões”.  Esse texto é citado duas vezes no Novo Testamento, uma por Pedro, no contexto do amor fraternal, e outra por Tiago, referindo-se à salvação dos pecadores.
         Mas como o amor cobre todas as transgressões?
         Penso que, em primeiro lugar, devemos dar expressão à teologia simples do Livro de Provérbios e entender que o que alimenta as contendas e desentendimentos é a disposição de coração das pessoas envolvidas. Quando é má, não há solução para os conflitos. De outro lado, se eu amo alguém, não levo em conta seus defeitos, atitudes negativas e transgressões para continuar o relacionamento e buscar fazer-lhe o bem.
         Não poderia ser que as nossas questões interpessoais não se resolvam, simplesmente, por falta de amor? Ou, pelo menos, que a perda da perspectiva prioritária e essencial da necessidade de amar dificulte qualquer solução ou caminho?
         Devemos nos lembrar de que amar, para o discípulo de Jesus, não é uma alternativa ética “superior” ou “apenas” um mandamento entre outros. Amar é a conseqüência necessária e direta do seu relacionamento com Deus, a essência desse relacionamento, sua origem, fundamento e finalidade.
         Assim, o texto de Provérbios significa que amar me leva a superar todas as transgressões, minhas e do outro, e prosseguir no relacionamento até Deus produzir por meio dele o deseja – em mim e no outro.
         Quando amo, não me faço juiz nem de mesmo nem de ninguém, não faço contabilidades, não penso em termos de vitória ou derrota, ter ou não razão, direitos ou deveres. O amor tudo supera, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Não se impacienta, não está à procura de si mesmo. Fala além das palavras, se dá além dos atos. O amor enseja a visitação de Deus na historia humana, na minha história.
         Não se trata de ingenuidade piedosa. Não é um otimismo humanista. É uma compreensão profunda e essencial da Realidade, Presença e Caráter de Deus, que tudo gera, tudo sustenta, tudo inclui, tudo conduz, tudo transforma.
         O amor cobre todas as transgressões porque aponta para o amor sacrificial de Jesus, com suas demandas e conseqüências. Não é graça barata, não é desconsiderar a malignidade do pecado. Ao contrário, é reconhecer que é tão grave a ofensa que a única solução possível está na Graça de Deus, e essa solução só está disponível porque Ele amorosamente nos a concedeu.
         Os relacionamentos humanos só são possíveis e frutíferos na graça de Jesus. Ele desfez em sua carne a barreira de inimizade e nos aproximou, fazendo a paz entre os que estavam longe e os que estavam perto, como resultado de nossa paz com Deus.

         “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, o governo está sobre seus ombros e seu nome será ... Príncipe da Paz”, diz a profecia que se cumpriu no Advento de Sua Vinda.

         Mesmo quando devo anunciar o Reino de Deus ao pecador ou corrigir o irmão deve ser o amor a me conduzir, e não a noção de uma tarefa ou missão, ou minha impaciência e intolerância.
         O amor não precisa de confissões ou explicações. Não é condicional, não depende de resultados ou de reconhecimento. Apenas não pode contradizer-se a si mesmo, e continua amando, fluindo desde sua fonte eterna em Deus.
         O amor supera todas as barreiras, tanto as que me separam do “estrangeiro” quanto as que me distanciam dos “próximos” e “familiares”. Não vejo sua roupa estranha ou suja, sua aparência “marginal”, suas maneiras impróprias, seus piercings, suas tatuagens, não sinto seu hálito contaminado, não me incomoda sua prepotência e soberba, não considero sua agressividade...
Não quantifico o relacionamento, não “classifico” o irmão, não o julgo, apenas considero que Jesus está nele, está em mim e está entre nós, com Sua Graça que alcança a mim e a ele do mesmo modo ...
Cobrir as transgressões não é “resolver” os problemas, mas superar as debilidades e erros dos outros até que as questões sejam resolvidas ou até que o Senhor manifeste Sua Glória. Enquanto os mantemos evidentes, descobertos é porque não amamos incondicionalmente, e, se não amamos, não anunciamos o Reino, não trazemos a presença de Jesus, não edificamos.
Isso pode ser particularmente desafiador em relação às pessoas próximas que conhecemos bem e com quem nos relacionamentos intensamente, incrédulas ou não. Talvez sejamos especialmente rigorosos com os irmãos da fé, de quem esperamos determinadas atitudes. Com os de fora, nossa postura pode ir da repulsa à indiferença. Em ambos os casos, estará presente o julgamento, e não o amor.
Nesses dias anunciamos a Vinda de Jesus, o Príncipe da Paz, aquele que levou sobre Si as nossas transgressões. Que a contemplação de sua vida, sacrificial desde o Seu nascimento, produza em nós a experiência do Seu amor e através de nós a manifestação desse amor a todos à nossa volta!

Que a Graça de Jesus, o Emanuel, seja com todos.

Fernando Sabóia Vieira
Brasília, dezembro de 2011, AD.

        

        

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Reflexões Interiores - a Paz


Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,


Algumas reflexões sobre a Paz:


1) É sua paz interior que ordena o mundo à sua volta ou é o caos exterior que desordena o seu mundo interior?

2) Se você leva a guerra dentro de você, como vai encontrar paz por onde quer que ande?

3) A paz não é a ausência de conflitos exteriores, aparentes, mas a harmonia com a Realidade divina e invisível que tudo envolve.

4) Nossa paz não é nossa, mas a de Jesus. Assim, se Ele está em Paz, nós, nEle, temos paz. Em qualquer circunstância podemos perguntar: o Senhor, por acaso, perdeu Sua Paz? Se Ele não, nem nós...

5) Jesus está no Trono e não está nervoso. Reina tranquilo. Posso olhar para Ele e encontrar sossego no Seu governo soberano.

6) Os antigos diziam que o homem espiritual é como um lago de águas profundas. Mesmo quando agitado em sua superfície pelas intempéries da vida, permanece manso e sossegado no seu íntimo, em contato com a Presença que nele habita.

7) Paz não é uma condição de bem-estar psicológico ou emocional, mas uma condição espiritual que depende apenas de nosso relacionamento com o Príncipe da Paz.

8) A condição da paz interior é a mansidão de coração. Os selvagens e os indomáveis vivem em guerra. Os mansos são suavemente conduzidos às águas tranquilas.

9) A paz de Jesus é privilégio dos humildes, dos que dependem totalmente do Senhor. Toda guerra e todo conflito se alimenta da soberba, do orgulho, dos desejos inquietos e sempre insatisfeitos. O humilde, o pobre de espírito, já entregou tudo, não tem nada a defender ou reivindicar.

10) As guerras e conflitos interiores só podem ter fim na cruz, que é a derrota cabal da minha carne e a completa vitória de Deus. Só há paz na cruz, qualquer outro caminho mantém no coração a semente da guerra.


Fernando Sabóia Vieira

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

SALMOS DE INTIMIDADE - Salmo 1


Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,

        Esse pequeno poema que abre o Saltério refere-se a duas maneiras de viver que levam a resultados absolutamente distintos. Por uma, chega-se à vitalidade e à prosperidade; pela outra, à confusão e à decepção. Quem segue a primeira é comparado a uma árvore plantada junto às águas: sempre verde, aprofunda suas raízes e frutifica. Aquele, no entanto, que opta pela segunda é descrito como palha seca, sem vida, dispersada pelo vento. Qual desses quadros descreve melhor nossa maneira de vier e os frutos que colhemos?
         Fico pensando em como nossos modernos gestores eclesiásticos estratégicos e pregadores de resultados reagem a um texto como esse. Talvez busquem nele alguma fórmula de sucesso, ações que conduzam a produtos rápidos e a satisfação imediata. Vivemos, efetivamente, a era das obras e produtos, e não dos frutos. A modernidade busca rapidez, produtividade, resultados, satisfação instantânea. Mesmo nossa produção agrícola é acelerada por processos tecnológicos artificias. Tudo é veloz, e tudo é superficial; tudo é indolor, e tudo é fugaz.
No entanto, se almejamos uma espiritualidade verdadeira, que gere o caráter divino em nós, devemos ter claro que santidade não pode ser produzida por métodos nem por nossa ansiedade espiritual, mas somente por um constante andar com Deus, pelo desenvolvimento de uma amizade com Ele.
         O que nos diz o salmista sobre o caminho da vida? Ele aponta para a lei do Senhor, mas não para sua utilização como um mero código de conduta, um método de produção ou manual de procedimentos para fazer tudo “dar certo”, para se alcançar sucesso, resultados.
         Trata-se, antes, de aprender a amar a vontade de Deus, a ter prazer em Seus preceitos e mandamentos. Penetrar na essência de Sua lei para descobrir a glória e a excelência do Autor e para encontrá-lO por meio de Sua Palavra, que nos traz Sua Presença transformadora.
         Mas como fazer isso? Não apenas cumprindo os mandamentos, mas meditando neles dia e noite. Meditar na Palavra significa mantê-la na mente e no coração ir além da dimensão da compreensão e da obediência, até chegar ao nível do amor e da experiência da Presença de Deus.
É um exercício contínuo que nos leva a aplicar a Palavra a cada situação da vida e leva cada situação da vida à Palavra. Tudo o que nos acontece, tudo o que está à nossa volta pode nos conduzir à meditação, à busca do Espírito que em nós habita e que tudo revela, vivifica, conforta, direcional. Podemos, assim, ir da Palavra à vida e da vida à Palavra, por meio da meditação.
A meditação faz com que criemos raízes profundas em Deus, uma vez que ela nos desnuda diante da vontade do Senhor, revelando nossos desejos e motivações, e nos prepara para a ação do Seu Espírito em nós. Faz com que a Palavra permaneça em nós e nós nela. Ora, se guardamos os Seus mandamentos, nós O amamos, e Ele vem morar em nós, conforme Sua promessa.
         Esse Salmo também nos aponta para o que podemos chamar de leis da semeadura espiritual. A primeira delas é a lei da coerência entre semente e fruto. Desde o Gênesis, entendemos que os seres vivos se reproduzem “segundo suas espécies”. Isso quer dizer que colhemos o que semeamos. Pretender fruto incompatível com a semente plantada é zombar de Deus, diz o Apóstolo. Quem semeia na pressa, na exterioridade, na superficialidade em seu relacionamento com o Pai colherá palha seca. Se queremos o fruto pacífico de sabedoria, paz, alegria, amor, um caráter transformado, temos que semear no Espírito, andar nos caminhos e maneiras do Espírito, meditando em na Palavra dia e noite.
         Depois, há a lei da perseverança. Toda semente lançada no solo precisa ser cuidada, regada, protegida contra pragas, ervas daminha, intempéries. A vida espiritual requer disciplina e paciência. Essa é a dimensão da obediência e do serviço. É necessário esforço consciente e determinado para adequar a vida, as atitudes, as palavras e os sentimentos à vontade de Deus.
         Finalmente, podemos mencionar a lei da esperança. Quem semeia, semeia com esperança da colheita. Se semeamos a boa semente e dela cuidamos, podemos ter confiança de que Deus fará o milagre da germinação, dará o crescimento e nos encherá os cestos de frutos. 
E nós celebramos Sua bondade.
         Que a graça de Jesus seja com todos.
         Fernando Sabóia Vieira

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A ORAÇÃO DO CORAÇÃO



        Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,

         Quero compartilhar algo sobre uma maneira especial de orar que sempre esteve associada, na vida da igreja, à jornada em busca da vida interior: a oração do coração.
         Essa prática de oração e adoração foi muito desenvolvida pelos Padres do Deserto, entre os séculos III e IV, e por outros movimentos de espiritualidade ao longo da história do povo de Deus.
         A oração do coração é, em verdade, uma das maneiras mais simples de orar. Ela consiste na repetição calma, contínua e meditativa de frases bíblicas, de expressões, de palavras ou mesmo tão somente do nome de Jesus.
         O que a qualifica não é, portanto, sua forma e conteúdo, mas seu ambiente e sentido. Ela pode ser praticada ao longo de todo o dia e em meio às tarefas comuns, sempre em busca de silêncio interior, de companhia, de intimidade, de transformação. Seu propósito e seu objeto é a união consciente com o Senhor que habita dentro de nós.
         Com efeito, pode ocorrer, em alguns momentos da vida, que nossas orações se tornem excessivamente voltadas para o mundo exterior, para as circunstâncias, lutas, temores, desafios e alvos que nos pressionam, atraem ou repelem.
         Nessas ocasiões, nossas orações podem ficar cheias de ansiedades, de emoções conflituosas e agitações, refletindo nossos desejos, expectativas, medos etc. Embora possamos – e devamos – trazer todas essas coisas diante do Pai, temos que cuidar para não orarmos de maneira egoísta, secular, sem foco no mundo espiritual, no Reino de Deus, na eternidade.
         Também pode ocorrer que, em meio às nossas muitas atividades e compromissos, nossas orações se tornem apressadas, mecânicas, descuidadas, dispersas.
         Outras vezes, poderão elas ser muitos formais, conceituais, impessoais. Distantes e nos mantendo distantes do coração do Senhor a quem oramos.
Em todas essas circunstâncias, a oração do coração pode ser de extrema valia, pois representa uma busca de simplicidade, de afetividade, de serenidade, de recolhimento e de intimidade com o Pai.
Principalmente, a oração do coração é uma procura pela Presença interior de Deus, por comunhão com Ele, por revelação e por transformação. É uma maneira de orar que não tem o propósito de produzir efeitos no mundo exterior, mas dentro de quem orar. Não começa no que eu quero, nem em quem eu sou; não nas circunstâncias da vida e nem nas outras pessoas. Ela começa onde também termina: em Deus, em quem Ele é, no Seu propósito e no Seu amor, que me dão identidade, sentido e contentamento.
         Ela não vagueia, não vai de um tema a outro, não elabora argumentos. Não busca abrangência, mas penetração. Persegue calma e consistentemente os fundamentos espirituais de nossa vida que só podem ser encontrados em Deus, na experiência do Seu amor, na certeza de que esse amor é a realidade mais constante e mais segura do universo, de que ele é a causa e o efeito de tudo.
A oração do coração não é a busca de uma experiência emocional, de um êxtase. Muitas vezes, será mesmo o oposto disso, revelando nosso deserto interior e nossos temores mais profundos. Ela é a busca de uma verdadeira experiência da Presença de Deus em todos os momentos da vida. Como ela tem esse único propósito, ela é também uma oração de renúncia, pois significa o abandono de tudo o mais.
Ao longo de todo o dia, e mesmo durante vários dias, posso orar, oral ou mentalmente, repetindo um texto das Escrituras, como “o Senhor é o meu Pastor, e nada desejarei”; ou uma petição, como “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”; ou mesmo uma simples palavra: “Jesus, Jesus” e deixar que a verdade essencial e a realidade espiritual contidas nessas expressões produzam em mim a consciência da Presença dAquele que é a Verdade e a Realidade.
Desse modo, posso incluir o Senhor em tudo o que eu esteja fazendo, todo o tempo. Posso estar em Sua companhia, contemplá-lO, admirá-lO, adorá-lO. Não como uma tempestade, não como uma inundação, mas como uma irrigação contínua, como um gotejamento permanente que vai amolecendo a terra, penetrando nela até torná-la propícia à germinação que foi semeado.
A oração do coração é, assim, especialmente, uma oração peregrina, a caminho, sempre em busca do lar, da Presença, da união com o Amado.
Ela se fundamenta na consciência de que Ele está presente e de que Ele deseja esse relacionamento, de que Ele nos ama e de que, assim, não são necessárias muitas palavras, mas estar atento a essa Presença.
Ela é preciosa quando as palavras não dão conta da vida, não podem expressar o que nos vai na alma, quando nossas perplexidades nos emudecem e nos vemos sozinhos e oprimidos. Igualmente, ela é necessária quando somos tomados pela maravilha da existência, pela consciência da Presença divina, pelos mistérios arrebatadores do universo, pelas excelências de Deus e de Suas obras – e também nos faltam palavras.
Menos palavras, mais significado. Menos pensamentos, mais coração. Como uma criança que coloca toda expressão do seu ser numa simples frase, ou mesmo numa só palavra: “Pai!”, “Mãe”!
Finalmente, a oração do coração deve ser perseverante. Continuamente nos distraímos e nos esquecemos da Presença. Buscamos novamente as exterioridades e fugimos da nossa solitude interior onde podemos estar especialmente com o Pai. É necessário, nessas ocasiões, não lutar contra as distrações, não nos fixarmos nelas, mas apenas retornar ao exercício da consciência de que Ele está presente, ainda que O percamos momentaneamente de vista. E Ele manifestará em nossas vidas a Sua Bondade e Sua Graça.

Que a Graça de Jesus seja com todos, cada dia da jornada, nos dias nublamos e nos dias de sol.

Brasília, final de outubro de 2011.

Fernando Sabóia Vieira


sábado, 22 de outubro de 2011

UM POUCO DE IRMÃO LAWRENCE (1611-1691)


Como Adquirir a Vida Espiritual



            A prática mais santa, mais elementar e mais necessária para a vida espiritual é a prática da presença de Deus. Ela consiste em se agradar e se acostumar com viver em Sua divina companhia, conversando e se relacionando humilde e amorosamente com Ele todo o tempo.
            Devemos nos esforçar continuamente para que todas as nossas ações, indistintamente, sejam ocasiões de pequenos encontros e compartilhamentos com Deus, mas isso sem estudo prévio, como vindo da pureza e da sinceridade de coração.
            Uma vez que vocês não ignoram que Deus está presente diante de vocês em todas as ocasiões, que Ele está no fundo e no centro de suas almas, por que, então, não parar, pelo menos de vez em quando, com suas ocupações exteriores, e mesmo com suas orações em voz alta, para O adorar interiormente, louvá-lO, ofertar-Lhe o coração e Lhe agradecer?
            É um erro freqüente entre pessoas espirituais não pensar em deixar, de tempos em tempos, as coisas externas para adorar a Deus dentro delas mesmas e para desfrutar em paz alguns breves momentos de Sua divina Presença.
            Todas essas adorações devem ser feitas por meio da fé, crendo que Deus está, verdadeiramente, dentro dos nossos corações. É preciso adorá-lO, amá-lO e servi-lO em espírito e em verdade. É necessário crer que Ele vê tudo o que se passa e se passará em nós e em tudo o que foi criado, que Ele é independente de tudo e, ao mesmo tempo, é Aquele de quem toda a criação depende: infinito em todas as formas de perfeição, que merece, por sua infinita excelência por seu soberano domínio, tudo o que nós somos e tudo o que há nos céus e na terra. Que Ele pode de tudo dispor a Seu bom grado, no tempo e na eternidade, e nós Lhe devemos, por justiça, todos os nossos pensamentos, palavras e ações. Cuidemos para que seja sempre assim.


Tradução de Fernando Sabóia, a partir do texto  original em francês.