sexta-feira, 29 de abril de 2016

Simplicidade


Simplicidade

Fernando Sabóia Vieira – isn/bsb/2016

 
         Aos companheiros de jornada em busca da vida interior, em especial aos que já se encontram, como eu, na estação das chuvas serôdias,
 

         A simplicidade não é um traço de personalidade ou um estilo de vida. A simplicidade é uma virtude cristã que tem como fonte e como modelo a expressão humana de Deus – o Verbo encarnado - e que deve ser manifestada existencialmente no caráter e no comportamento. A simplicidade se revela nos pensamentos, nos sentimentos, nas vontades, nas palavras, nas escolhas e nos comportamentos. Ela é a forma de que se revestem as coisas e as realidades mais essenciais, verdadeiras, belas, significativas, boas e profundas – espirituais, portanto.

Principalmente, a simplicidade é uma virtude da espiritualidade requerida dos discípulos de Jesus. É uma condição do coração, uma característica da piedade, do ser para Deus e para a realidade espiritual que tudo abrange na Criação.

         A simplicidade é uma marca distintiva da vida do Mestre, de seus discípulos e apóstolos e de todos os santos da Igreja, e é característica de toda expressão verdadeira de santidade.

         A negação da simplicidade se configura nos excessos da concupiscência em todos os seus aspectos, na artificialidade das aparências, na futilidade dos símbolos vazios de status e de glória humana efêmera, na cobiça, na soberba e em tudo o que conduz à perda do senso do significado e do valor do ser humano e da realidade que o cerca.

Ser simples não é negar a complexidade e multiformidade da vida e da realidade, mas é, estando imersos nisso, não perder a percepção da unidade e da essencialidade que tudo permeiam como marca do Criador e que conferem a cada ser e a cada elemento criado valor, significado e sentido à própria sua existência.

         Assim, buscar a simplicidade é buscar perceber e viver as coisas como elas são, em sua realidade mais singular, despidas de excessos, de artificialidades, de transitoriedades e de aparências, em sua essencialidade, realidade, valor e significado atribuídos por Deus, que tudo criou com significado e propósito.

     Devemos reconhecer que somos escravos da concupiscência do ter, do ser e do viver, em cuja natureza está o excesso, que rouba o sentido, o significado e a essência de tudo que existe. A simplicidade devolve tais qualidades a cada ser ou coisa criada.

A concupiscência transforma as necessidades legítimas em cobiça, os sentimentos naturais em vícios perniciosos e a busca dos elementos vitais da existência em uma imensa guerra de desejos e paixões. Com isso, ela nos deixa sempre vazios e carentes, nunca satisfeitos, mas aprisionados por esses apetites e ambições que não podem jamais ser atendidos. A simplicidade restaura a correta noção do que é necessário, do que é precioso e eterno e, assim, nos liberta das cadeias das inclinações da carne, do medo e da efemeridade.

         A modernidade coloca essa questão em contornos dramáticos. Nela, a complexidade, a diversidade e a multiplicidade das possibilidades de ter e de se projetar num mundo virtual se destacam para dar aparência de virtude aos excessos da concupiscência. O espírito desta geração é a cobiça, a aparência, a extravagância, o supérfluo, a ostentação, o desperdício. A simplicidade nos leva a reconhecer que grande parte das coisas pelas quais sofremos, lutamos, nos gastamos, entramos em questões, discussões e conflitos são desnecessárias, inúteis e mesmo perniciosas à vida espiritual.

Tudo o que nos é oferecido como objeto de desejo e consumo pela publicidade e pela indústria do entretenimento visa despertar, estimular e exacerbar a cobiça, a concupiscência e a sensualidade. Nesse comércio, as verdadeiras mercadorias são as almas das pessoas, que resultam contaminadas e distorcidas por um sistema construído para roubá-las de sua vocação eterna.

       Uma expressão mais direta da simplicidade tem a ver com a dimensão do ter, com a maneira como nos relacionamos com os bens materiais.

Como seres biológicos, temos necessidades físicas básicas a serem supridas e toda civilização humana tem sua origem na busca do atendimento desses itens indispensáveis para a sobrevivência pessoal e coletiva.  No entanto, desde sempre, as riquezas e o poder que elas conferem ocuparam na alma humana um lugar que pertence a Deus apenas, se tornando objetos de buscas, de desejos, de guerra, de segurança, de prazer como se pudessem conferir sentido e significado à existência.

         Embora o suprimento das necessidades materiais e mesmo a prosperidade e riqueza possam ter sua fonte em Deus, em Suas bênçãos, as Escrituras nos advertem, desde suas primeiras páginas, a não colocarmos nossa confiança e esperança no acúmulo de bens. Fundamentalmente, a cobiça e a avareza corrompem a alma humana e levam a pessoa a uma existência desconectada de seu valor espiritual e de seu destino externo, portanto da realidade.

         A simplicidade também deve ser manifestada de forma mais abrangente na maneira de viver, nas ambições, sonhos e projetos. Como virtude cristã, ela é uma condição de coração, um aspecto necessário da santidade da alma que se reconhece como criatura dependente do seu Criador e cuja existência e propósito têm sentido apenas nEle. Assim, em verdade, as condições materiais da vida nas quais a simplicidade se revela não são mais do que consequências da simplicidade que deve marcar a vida interior de adoração e consagração a Deus.

A simplicidade do viver nos livra dos desgastes, conflitos e frustrações que necessariamente advêm da busca desenfreada por bens e realizações que o Pregador do Eclesiastes define como “vaidade” e “correr atrás do vento”. Nela, e apenas nela, podemos encontrar paz e contentamento com o suprimento da providência divina, não nos dedicando à “loucura” de acumularmos bens, notoriedade e feitos que de nada nos valerão quando for “pedida a nossa alma”.

Mais profundamente, além da simplicidade do ter e do viver, podemos considerar a simplicidade do ser, que consiste na busca da essência, do significado, do valor e da transcendência da nossa própria existência como pessoas humanas, criadas à imagem e semelhança de Deus para uma vida eterna.

Vivemos tão intoxicados pelos excessos das nossas paixões e dos estímulos que muitas vezes não mais discernimos o necessário do supérfluo, o real do aparente, a essência da mera sensação e acabamos nos tornando personagens de dramas e histórias que nos roubam a própria integridade essencial do que somos segundo o propósito dAquele que nos criou.

Muitas pessoas nesses nossos dias adoecem na alma porque perderam a pureza e a simplicidade do ser para Deus e, com elas, perderam a essencialidade e a integralidade de sua própria pessoa. Abrigam sentimento, pensamentos, desejos, sonhos, paixões e amores que lhes conferem identidade equivocada, contraditória e, ao final, maligna no caráter, na atitude nos frutos.

Buscando ser o que nunca foram destinadas a ser por seu Criador, tentando viver uma vida que não as leva ao encontro de sua vocação espiritual e desgastadas na tentativa de conquistar o que não lhes dará em absoluto o que necessitam, as pessoas de nossa geração se distorcem e se perdem no que é a essência do pecado: a busca de uma vida independente de Deus.

A simplicidade do ser para Deus nos devolve nossa verdadeira identidade, restaura a imagem do Pai outrora distorcida e ofuscada por tantas artificialidades e excessos produzidos pela nossa vã soberba de tentarmos ser algo diferente daquilo que está na mente eterna do Criador. Encontramos nessa simplicidade a única coisa necessária e essencial que nos define e nos destina: a adoração ao Senhor.

Caros irmãos, companheiros de jornada. A simplicidade deve ser marca de nossa vida de imitação de Jesus e é virtude essencial a ser buscada e desenvolvida, mormente nesses nossos dias de complexidade artificializada em quase todos os aspectos da vida humana. E em especial para nós outros que já sentimos sobre nós as abençoadas chuvas serôdias.

Sugiro explorar, como estudo bíblico e em concreções, os aspectos da concupiscência do excesso, as dimensões da simplicidade, do ter, do viver e do ser e a simplicidade como imitação de Jesus.

Que a graça de Jesus seja com o espírito de todos.

Fernando

terça-feira, 19 de abril de 2016

Chuvas Serôdias

Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,


As chuvas serôdias são as últimas chuvas da estação antes da colheita. Em um ano perfeito para a agricultura dos tempos bíblicos haveria, em justa medida, as chuvas temporãs, que afofam a terra para a aragem, e as chuvas serôdias, tardias, que propiciavam o completo desenvolvimento e amadurecimento dos frutos. Esse simbolismo é usado na profecia de Joel 2:23 para representar a plena manifestação de Deus na história de Seu povo, o derramamento abundante do Seu Espírito capaz de produzir a plenitude de vida em quem o adora.

No dia de hoje, 19 de abril, completo 55 anos de vida. Estou, indubitavelmente, na maturidade, última fase do ciclo de existência humana antes da velhice. Nesses últimos meses tenho meditado sobre essa etapa da jornada e descoberto que ela é fase de transição, comparável, em alguns aspectos à adolescência: efeitos físicos e emocionais da transição biológica, mudanças na vida profissional e familiar, decisões a tomar, nova perspectiva do fluir do tempo, conflitos e dilemas a enfrentar.

Se na adolescência caminhamos em direção a um aumento da força e da autonomia, na maturidade nos deparamos com a perda progressiva dessas condições. Por outro lado, a diminuição do leque de possibilidades de escolhas e a noção da passagem do tempo fazem com que sejamos mais profundos nas considerações e mais criteriosos nas decisões.

Tenho, pessoalmente, nessa passagem da caminhada, buscado de Deus essas chuvas tardias, na esperança de que elas venham ainda me suavizar o coração para ser arado, despertar as sementes adormecidas e dar plenitude aos frutos ainda mirrados.

Experimentar mais a Presença de Deus, simplificar o coração e a vida, experimentar cada dia Sua misericórdia, conhecer a Sua intimidade. Talvez fazer menos coisas, mas fazer cada uma com atenção ao seu sentido eterno e ao seu valor espiritual.

Aprofundar o processo de esvaziamento - kenosis- e de afastamento do mundo e dos amores do mundo para ser cheio das águas dessas chuvas tardias e mais pleno do amor de Deus, do amor a Deus e do amor ao próximo.

Que me venham as abençoadas chuvas serôdias, para que, ainda na velhice, minha vida produza frutos para Deus.

A graça de Jesus seja com todos,

Fernando Saboia Vieira


Chuvas Serôdias


Chuvas Serôdias 

“Alegrai-vos, pois, filhos de Sião, regozijai-vos no SENHOR, vosso Deus, porque ele vos dará em justa medida a chuva; fará descer, como outrora, a chuva temporã e a serôdia”. Joel 2:23

 
 I

 um dia
quando o tempo e a lida
tiverem cumprido seu paciente labor
outro me tomará pela mão e me levará
para onde não quero ir

mas o que faço agora,
neste tempo crepuscular,
neste longo entardecer
de labuta e guerras
não acabadas?
 

qual o momento
de me deixar levar
e qual o momento
de ainda sair e lutar?


II

 
nuances
aproximações
transições

sugestões
possibilidades
tentativas

quem já viu todas as cores
pode perceber os matizes,
quem já ouviu todos os sons
pode sentir os sub tons,
quem viveu entre partidas e chegadas
pode sentir as aproximações

transite, se arrisque
deixe perguntas sem respostas,
caminhos por andar
e emoções por sentir:
quem sabe tudo, emburrece,
quem já andou tudo, atrofia o corpo
quem já sentiu tudo, definha a alma


III
 

espere

ser perguntado
ser chamado
ser escolhido

orbite 

nem o primeiro
nem o último
nem adiantado
nem atrasado

educado 

sempre bata à porta
antes de entrar
e nunca entre
sem ser convidado

IV

 
que as chuvas tardias
encham os frutos hesitantes
da plenitude da terra
e do sol...

que as chuvas tardias
fluam nos rios
alegrem os jovens nas núpcias
e façam nascer
as crianças geradas no inverno...

que as chuvas tardias
molhem meus cabelos
grisalhos
e lavem meu rosto e meus olhos
cansados
das lágrimas e da poeira...

que as chuvas tardias
renovem as lembranças
das coisas belas que vi e que amei...

 
V

 
talvez as chuvas tardias
possam suavizar os caminhos
endurecidos
pisados por tantos passos
perdidos
onde não passam mais
palavras amenas
nem emoções plenas

talvez as chuvas tardias
possam ainda despertar
as sementes adormecidas
esquecidas
na pressa dos tempos e da vida
ressecadas
na agrestia das estações e das saudades

talvez as chuvas tardias
dessa safra sofrida
sejam também as chuvas temporãs
do novo ciclo da terra e da alma
exaurida, fecundada, renovada
para produzir os frutos da plenitude
ao alvorecer do Dia Eterno

 
Fernando Saboia Vieira

 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Amor e perdão


Amor e perdão

 Companheiros de jornada em busca da vida interior,


         Vejam que intrigante esse Evangelho, em Lucas 7:36-50:

   “Por isso te digo: Perdoados lhe são os pecados, que são muitos; porque ela muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama. E disse a ela: Perdoados são os teus pecados.   Mas os que estavam com ele à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este que até perdoa pecados?  Jesus, porém, disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz.   

            A história é conhecida: Jesus é convidado por um fariseu, chamado Simão, para uma refeição em sua casa. Uma prostituta da cidade, sabendo que Ele estaria lá, entra sem convite, derrama bálsamo aos Seus pés e começa a lavá-los com lágrimas e a enxugá-los com os cabelos. A cena provoca, naturalmente, no anfitrião, repulsa e dúvidas sobre a espiritualidade do Mestre.
         Sabedor do que ia no coração de Simão, Jesus lhe propõe uma pergunta sobre perdão e amor, cuja resposta imediata é no sentido de que quem é muito perdoado, muito ama. Mas ao aplicar essa conclusão ao caso da mulher, o Senhor, aparentemente, inverte a proposição ao dizer que os muitos pecados dela eram perdoados porque ela havia muito amado.

         Afinal, é o perdão de Deus a fonte do nosso amor a Ele ou é o nosso amor a Ele a motivação para o Seu perdão dos nossos pecados? Confesso que esse texto sempre me causou perplexidade por muito tempo.
         Esses dias, porém, cheguei a uma conclusão simples. De fato, o perdão de Deus nos move a amá-lO. Ele é sempre o início e a fonte de tudo.

No caso daquela mulher o que podemos concluir é que o muito amor que ela demonstrou era uma evidência de que ela havia sido perdoada. Jesus declara o que já havia ocorrido no coração dela! Seus pecados foram perdoados quando ela creu. Ao comprar o bálsamo e entrar ousadamente em uma casa onde jamais seria recebida e tocar o Mestre como ela o fez ela expressou de maneira vívida e pungente a fé que ardia em seu coração. Quando ela creu? Não sabemos. Não nos diz o Evangelho. Mas podemos ter certeza de que ela creu e de que seus pecados foram perdoados pelo muito amor que ela demonstrou.
         Cremos termos sido perdoados pelo Senhor dos nossos pecados. Mas isso é evidente pelo amor que porventura demonstramos a Ele? A que me move a consciência desse perdão? A um conforto emocional? A uma religiosidade fundamentada apenas numa solidez doutrinária? A uma certa acomodação quanto à vida espiritual pela certeza da eternidade?

         Não foi assim com aquela mulher. Não sabemos o que a havia levado a uma vida de pecado. Podemos conjecturar que ela viva numa sociedade patriarcal, machista e preconceituosa. Qualquer mulher que se visse órfã, viúva ou repudiada pelo marido teria muitas dificuldades de sobreviver. Havia a hipocrisia dos religiosos, prontos a condenar publicamente aquelas a quem procuravam às escondidas.
         Por outro lado, talvez ela tivesse sido mesmo atraída pelos prazeres e tentações carnais e desperdiçado sua juventude e beleza numa vida dissoluta, como vemos tantos jovens de nossa própria geração fazerem.

         Há muitos e largos caminhos para longe de Deus, mas um único e estreito para perto Dele. E quando aquela mulher o encontrou não foi contida pelas convenções sociais nem embraçada pelo seu próprio pecado.
        Não precisou dizer muitas coisas ao Senhor. Não foram necessárias declarações eloquentes nem formulações doutrinárias. Sua vida foi argumento suficiente para Jesus dizer a todos os presentes que ela estava perdoada e salva pela evidência do muito amor que ela demonstrou.

         Para onde e para quem as evidências concretas do meu amor apontam? O quanto me entrego e a que ou a quem me entrego? A que ou a quem dedico meus pensamentos, meus bens, meus sentimentos, meu tempo, minha vontade, minha admiração?
         Se as pessoas observarem meu comportamento e elaborarem, com base nele, uma lista do que é importante e valioso para mim, o que elas escreverão? Se pudessem ler minha alma, o que concluiriam sobre os tesouros do meu coração?

         Devemos ter cautela, todavia, nesse tipo de aferição. Somente pode ser contado como valioso o que for autêntico, o que provier de motivação sincera, o que for resultado do encontro com o Senhor e com Sua Graça.

         Como disse Bernardo de Clairvaux, a razão suficiente do nosso amor a Deus é o próprio Deus e a medida desse amor deve ser amá-lO sem medida.
         Finalmente, lembramos Agostinho: “O homem é aquilo que ele ama. Se amamos o mundo, somos mundo. Se amamos a Deus, ousemos dizer, somos divinos.”.

         Que a grande e decisiva evidência de que fomos perdoados pelo Senhor seja nosso incontido amor a Ele, traduzido em adoração, quebrantamento, humildade, serviço e amor ao próximo.
         Companheiros, que a comovente e constrangedora Graça de Jesus seja com todos.

         Ainda na jornada,

         Fernando Saboia Vieira

terça-feira, 5 de abril de 2016

CONHECER O CORAÇÃO DE DEUS


CONHECER O CORAÇÃO DE DEUS

Fernando Sabóia Vieira – isn/bsb/2016

Irmãos queridos, companheiros de jornada em busca da vida interior,

 

Tive um sonho no último mês de fevereiro. Participava da organização de um retiro e compartilhava com os companheiros que o mais importante era buscar conhecer o coração de Deus.

Nesses dias tenho, então, meditado que em meio aos fatos, atos, percalços, acontecimentos, lutas, decepções, vitórias, derrotas, frustrações e alegrias da vida, com decisões a tomar e caminhos a escolher, a nossa mais intensa e premente necessidade é conhecer o coração de Deus em cada momento de nossa história de vida, em cada situação, vontade, pensamento ou sentimento.

Isso significa buscar respostas para as perguntas mais fundamentais do ser consciente: por que e para que tudo existe? Por que e para que eu existo? As respostas estão no coração de Deus, em Sua vontade e em Seus desígnios.

Não quero conhecer a vontade de Deus, como algo externo a Ele, expressa em Suas leis e mandamentos, mas conhecer a Pessoa que Deus é, o Seu coração, o que lhe traz alegria, tristeza e glória.

Não apenas saber conceitos sobre Deus, não formular uma doutrina sobre Deus, não simplesmente um discurso sobre Ele e Seus feitos, mas penetrar no que O move e no que dá sentido aos seus mandamentos, leis, atos e propósitos.

Por outro lado, conhecer o coração de Deus implica conhecer o meu próprio meu coração, tão diferente, muitas vezes, do coração de Deus, e não fazer de Deus um ídolo mental, construído mais com base em mim mesmo do que no reconhecimento de Sua absoluta alteridade em relação a mim.

Devemos reconhecer que normalmente lidamos com uma noção parcial e imperfeita de Deus e de Sua vontade, excessivamente funcional e moldada por nossas convicções, contingências e necessidades. Corremos o risco de nos relacionarmos com um deus que criado à nossa própria imagem e semelhança, por nossa particular teologia, demandas e conceitos. O Deus da Bíblia é o Deus indisponível, que é o que Ele é, independentemente de qualquer outro ser, e não controlado, limitado ou condicionado por nada nem ninguém.

É imperioso ir muito além dessas fronteiras da subjetividade e da relegião e conhecer a Deus como Pessoa. É esse o seu chamado para nós, é essa a essência de seu propósito na nossa própria criação e existência.

Quando sei o que Deus quer, posso obedecê-lO. Mas quando conheço o Seu coração, posso me alegrar com sua vontade e amá-lO. Assim, para além da nuvem escura e confusa das nossas circunstâncias, conhecimento, sentimentos e vontades, o coração de Deus é o farol que me guia, me sustenta, me anima, me comove, me transforma, me alegra, me corrige, me transforma e faz brilhar em mim a luz da Sua glória.

Nossa proposta para esses dias até nosso retiro na Páscoa é buscarmos individual e coletivamente conhecer o coração de Deus.

Quero, em próximas postagens, destacar alguns pensamentos e meditações sobre conhecer o coração de Deus. Serão roteiros abertos, lacunosos e apenas sugestivos. Mas talvez seja melhor assim, pois se trata de um percurso muito íntimo e pessoal.

Espero que as ideias, meditações e pensamentos compartilhados estimulem a todos e apontem alguns caminhos e possibilidades nessa jornada.

Brasília, na Páscoa de 2016, AD.


 

domingo, 3 de abril de 2016

A Necessária Solitude

A Necessária Solitude

“… o que se dizia a seu respeito cada vez mais se divulgava, e grandes multidões afluíam para o ouvirem e serem curadas de suas enfermidades.
Ele, porém, se retirava para lugares solitários e orava.” (Lucas 5:15-16).


Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,
Nessa pequena nota biográfica, Lucas destaca um movimento paradoxal na vida de Jesus ao início de seu ministério. À medida em que sua fama e popularidade cresciam, o Mestre buscava com mais intensidade lugares solitários onde pudesse orar. Isso não passou despercebido a seus discípulos, que talvez não entendessem bem, a princípio, tal atitude do Mestre, mas ficaram por ela impressionados ao ponto de a relatarem aos convertidos ao Caminho como característica e marca da vida do Senhor.
Podemos considerar, para nós mesmos, a partir de uma reflexão sobre tal aspecto marcante da vida de Jesus, que a intensidade das relações humanas na vida em sociedade tende a produzir solidão de alma e a nos conduzir a áridos e inóspitos desertos interiores, resultados da vaidade, do egoísmo, da inveja, da competição, dos conflitos e de todos os venenos inoculados pelo pecado no coração dos homens que os tonam inimigos uns dos outros, porque inimigos de Deus.
Num movimento inverso a esse, os lugares solitários podem nos dar oportunidade para experimentar a comunhão com Deus e o encontro conosco mesmos. Unidos a Deus, descobrimos nossa verdadeira identidade, sentido e significado e, assim, nos tornamos aptos a voltar à sociedade dos homens como enviados por Ele. Não mais como partes em conflito, mas como embaixadores da reconciliação, porque teremos sido nós mesmos pacificados de nossas guerras interiores e conquistados pelo Reino do Príncipe da Paz.
É a isso que chamamos de solitude. Não significa, essencialmente, isolamento ou solidão como ausência, mas a necessária distância dos homens e do caos da vida para que possamos recuperar o silêncio e a atenção à Presença e à Realidade. À Presença de Deus, que tudo permeia e que quer se unir a nós para falar conosco, cessadas as vozes que criam, de ordinário, tumulto no nosso mundo interior, e à Realidade espiritual que envolve tudo o que existe e dá sentido a tudo o que acontece. A solitude nos abre portais para a dimensão essencial da existência, nos conduz à única busca necessária, nos permite ouvir as palavras que nos são espirito e vida, nos coloca em comunhão e união com a Pessoa infinita, santa, perfeita e amorosa do Pai.
Nós, homens e mulheres modernos, temos pavor do estar só. Conquistamos e civilizamos os ambientes para a vida coletiva, iluminamos a noite, inventamos atividades, tarefas e diversões que nos permitem interagirmos, presencial ou virtualmente, todas as vinte e quatro horas do dia, com conhecidos e desconhecidos.
No entanto, continuamos assombrados pelas perguntas fundentes da nossa existência, para as quais a modernidade, a despeito de seu acúmulo de conhecimento, de suas soluções tecnológicas e de suas infindáveis formulações teóricas, não tem respostas. 
Embora tenhamos construído um mundo em que todo o pensamento e toda a dinâmica de vida tenham sido concebidos para nos levar a esquecer tais perguntas, elas nos surgem cotidianamente, nos relacionamentos e experiências pessoais, nas manifestações culturais, nas artes, nos noticiários, nas crianças, nos profetas santos e profanos que surgem nos guetos não colonizados pela nossa civilização.
Jesus fugia, por vezes, da agitação de um ministério popular e de crescente influência social e buscava lugares solitários onde pudesse orar. Na solidão do deserto, encontrava a companhia de Deus. Ali Ele aprofundava a consciência de Sua existência humana e a compreensão de Sua missão divina. Como homem, com as limitações de homem, experimentava a Presença de Deus e a comunhão com Ele.
Depois, podia voltar aos homens aos quais fora enviado para trazer a eles a Palavra ouvida na intimidade com Deus.
Vemos, assim, que a solitude, longe de produzir introspecção, nos leva definitivamente à missão. No entanto, a missão sem solitude pode facilmente se tornar nossa demanda pessoal e não a de Deus.
Irmãos queridos, por mais difícil que nos possa ser vivendo as vidas agitadas que vivemos, cheias até mesmo de intensas agendas e atividades relacionadas com a Igreja, busquemos nossos lugares solitários para que neles nossa alma possa desfrutar da necessária solitude e receber a vida da Fonte da Vida.
O que fazer nesses lugares, nesses momentos? Principalmente se aquietar e ouvir. Aprender a contemplar, a ser simplesmente tomado e enchido pela Presença. Conversar com toda a atenção voltada ao que Ele quer nos dizer. Deixar que Ele nos sonde e nos revele para nós mesmos, que Ele nos revele o Seu coração em relação a cada pessoa, cada luta, cada acontecimento, cada sentimento, cada pensamento e cada vontade que flutua em nossa alma.

Que a graça de Jesus seja com todos.
Ainda na caminhada, 


Fernando Saboia Vieira