sexta-feira, 26 de junho de 2015

Primeira aos Coríntios 13 para Casais


 
 
Gostaria de propor aos casais companheiros de jornada uma leitura particularizada do capítulo 13 da 1ª Carta de Paulo aos Coríntios, onde ele destaca a essência e centralidade do Amor de Deus na vida dos cristãos.

Considerando que o relacionamento conjugal é um ambiente especialíssimo de expressão do amor de Deus, comparado, por um lado, ao amor de Jesus pela Igreja e, por outro, sujeito a todas as contradições, mazelas e intempéries produzidas pelo pecado na natureza humana, é edificante, e talvez mesmo essencial, meditar sobre o que o Apóstolo escreve acerca desse Amor para aplicar ao contexto do relacionamento homem e mulher no casamento.

Devo destacar, de início, que o Amor de Deus no casamento também se expressa na fraternidade, na amizade e na sexualidade, que são aspectos fundamentais e constitutivos da união entre homem e mulher. Ao buscarmos compreender a essência espiritual do Amor divino descrita nesse texto insuperável de Paulo não estamos, de nenhum modo, colocando em segundo plano essas outras manifestações do amor na vida humana, mas, ao contrário, dando-lhes seu verdadeiro sentido em Deus, para que possam ser vividas e desfrutadas plenamente. Assim, tudo o que se disser a seguir será aplicável a todas essas dimensões de amar que estão presentes matrimônio.

A reflexão que sugiro se desdobra em três trilogias: a primeira trilogia reúne três paradoxos do Amor; a segunda trilogia caracteriza a alma, o corpo e o espírito do Amor; e a terceira trilogia trata de três trilhas no caminho da maturidade apontadas pelo Amor.

O primeiro paradoxo da trilogia inicial está na impossível, mas necessária, arte de se comunicar. É lugar comum apontar a importância e as dificuldades da comunicação entre homem e mulher no casamento, em razão de diferenças de gênero, de cultura, de histórias pessoais, de visões de mundo etc., tudo agravado pelo pecado.

 Contudo, segundo Paulo, o problema da comunicação não reside nas diferenças nem na diversidade de códigos de linguagem que elas produzem, mas na ausência do Amor. As diferenças de linguagens não são superáveis complemente porque correspondem a diferenças de natureza. Somos diferentes mesmo e isso produz distanciamentos, desconfianças, temores. Temos um instinto inato de autopreservação e somos dominados pelo egoísmo fruto do pecado. Sem o Amor não há comunicação porque apenas o Amor é capaz de superar essas barreiras e promover uma real aproximação e contato entre pessoas. Do contrário, sem o Amor, as próprias palavras se tornam armas do distanciamento e da não comunicação.

Só o Amor desarma e aproxima. Ele faz das diferenças pontes capazes de cobrir abismos e caminhos que ligam lugares distantes porque acolhe incondicionalmente, elimina o temor da rejeição e do abuso ao se oferecer sem ressalvas.

Muito esforço e energia é gasto, às vezes, por casais que tentam “se entender”. O caminho mais excelente que queremos sugerir, inspirados por esse texto bíblico, é que mais dedicação se tenha em simplesmente amar o outro com o Amor que procede de Deus. Muitas vezes, a busca da comunicação disfarça propósitos de manipulação, de controle, de imposição da própria vontade. Isso apenas fortalecerá as barreiras porventura existentes. Se houver uma genuína busca de amar, cada um estará seguro para se deixar a conhecer e verdadeiramente interessado em conhecer o outro. E não seremos como metais a produzir ruídos sem sentido.

O segundo paradoxo está na constatação de que saber o que fazer não é suficiente. Conhecer todos os mistérios e toda a ciência, sem amor, não produz nada. Por vezes, conhecemos a verdade, a vontade e o padrão de Deus e somos capazes de bem discorrer sobre o papel que cabe a cada um no casamento, mas, ainda assim, não conseguimos viver satisfatoriamente a vida conjugal.

O fato é que a eficiência burocrática não produz um lar. Só o Amor conhece a Deus e é capaz de expressar sua verdade e vontade. Apenas o Amor cumpre o propósito de Deus e ele sozinho é suficiente para cumprir esse propósito. Sem Amor, a despeito de todo o conhecimento, “nada serei” porque só o Amor gera identidade pessoal, valor, significado e sentido.

 O terceiro paradoxo da primeira trilogia transparece quando percebemos que fazer o que se sabe sobre amar não é suficiente. Amar é renunciar, doar e servir, mas o Amor não é a renúncia, a doação ou o serviço. O Amor é a motivação, a essência, a finalidade e a recompensa de renunciar, dar e servir, mas, como natureza de Deus, não se limita nem se esgota em nenhum gesto ou atitude.

O que fazemos para o outro fazemos por amor ou temos outras motivações e propósitos? Estamos mais interessados em cumprir nosso papel e estarmos “certos” e “termos razão” do que realmente no bem do outro? O Amor é a motivação de tudo, mas ele próprio é imotivado, é suficiente em si mesmo e quando está ausente nada tem valor ou sentido. Não existe a verdade sem o Amor, como não pode haver o Amor sem a verdade.

A segunda trilogia que encontramos em 1ª aos Coríntios 13 compreende a alma, o corpo e o espírito do Amor.

Pensamos, inicialmente, que a alma do Amor é calma. São suaves o seu pensar, seu sentir, seu querer, seu entender e seu saber. São as suas expressões de pensamento, sentimento e vontade sempre gentis, mansas, pacientes, bondosas, altruístas. O Amor é humilde, acolhedor, amigável, fraterno. É resiliente, perseverante, mais forte do que a morte.

Perguntamos: é essa a alma do nosso relacionamento conjugal? É assim nosso trato um com o outro? São essas as qualidades de nossas ações e palavras? Ou a convivência, a intimidade, a pressa, as divergências, as frustrações e dificuldades nos tornam ásperos, impacientes, exigentes, pessimistas?

Não se trata de sentimentalismo, mas de força de caráter, de virtude. Por isso, o Amor não se irrita, perdoa sempre, não se ressente do mal, não se magoa, não é melindroso, não suspeita do outro.

Depois, dizemos que o corpo do Amor é conforto. Ele não agride, não se impõe, não oprime, não intimida, não amedronta, não afugenta. É acolhedor, convidativo, agradável. Não reclama, não chantageia, não chateia, não chama atenção para si mesmo, para as próprias vontades e necessidades, não se comporta mal, não é inconveniente.

Você é confortável para seu cônjuge? É acolhedor, agradável, alguém que atrai para fazer bem? Ou é de difícil trato, cheio de melindres, complicado, exigente, crítico? Quando sua esposa ou seu marido encontra você relaxa e se sente bem ou fica tenso e preocupado?

Finalmente, qual o espírito do Amor senão o Espírito do Amor de Deus? O Amor é elemento essencial, primordial, criacional, constitutivo de tudo o que existe. Não pode ser decomposto, limitado, condicionado, fracionado. Não varia com tempos e circunstâncias. Por isso, o Amor tudo... tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Como essência de Deus, o Amor não se define, mas pode ser vivido, experimentado, demonstrado, qualificado.

Qual o espírito do nosso amor? Um espírito humano limitado, condicionado, inconstante? Ou amamos com o Amor de Deus e não guardamos qualquer tipo de contabilidade, não abrigamos qualquer cobrança, não nos arvoramos em direitos, mas somos felizes por transmitir o que recebemos graciosamente do Pai?

Na terceira trilogia identificamos três trilhas no caminho sobremodo excelente do Amor que nos conduz à plenitude.

A primeira trilha nesse caminho tem a ver com a aceitação de nossa incompletude, que transparece dolorosa e verdadeiramente no casamento.

Somos parciais, incompletos, inacabados. O Amor não vê isso como um problema, mas como motivação para o progresso na senda espiritual, por meio da aceitação, do estímulo, do compartilhamento, da sinergia, da comunhão e da cooperação. Pelo vínculo matrimonial, somos cônjuges (suzugos, mesmo jugo), cooperadores (synergos, mesma obra) e comungantes (koinonos, mesma comunhão com Cristo). Imperfeitamente conhecemos e falamos, mas um dia o pleno e perfeito se manifestará nas nossas vidas. O amor caminha para esse encontro, espera por ele, busca levar o outro até a Presença.

A segunda trilha se apresenta em forma de um desafio, o desafio da intimidade.

Quando amamos e somos amados nos revelamos e nos conhecemos. Mas conhecer e se dar a conhecer é um processo doloroso que envolve o medo da rejeição, que só pode ser vencido pela perseverança do Amor. Somos desafiados na exposição íntima do casamento. Em alguns momentos somos tentados a retroceder e a nos fecharmos novamente e, assim, limitarmos o Amor. É necessário continuar nessa trilha até que sejamos alcançados pelo pleno conhecimento do Deus que nos conhece plenamente. O ser uma só carne é a representação e experiência da intimidade que deve haver entre o Senhor e Sua Noiva e no casamento temos oportunidade de viver e receber dessa graça.

A terceira trilha, que fecha a terceira trilogia, ser refere ao paradoxo que opõe e harmoniza a concretude da fé e a inconcretude da esperança na essencialidade do Amor.

A fé torna concreta, existencial, a verdade revelada, produz na existência presente a realidade eterna do Reino de Deus. A fé nos conduz nas circunstâncias e dificuldades concretas da vida, nos conferindo conhecimento e capacidades e produzindo em nós as virtudes divinas.

A esperança, por sua vez, nos leva aos portais da outra dimensão da realidade de Deus, que é a eternidade. Ela nos mantém seguros e direcionados nos lugares sombrios e nos mares revoltos por onde havemos de passar.

Na dinâmica do relacionamento pessoal e íntimo do casamento, fé e esperança compartilhadas a alimentadas, são essencial para nos manter ligados à fonte do Amor de Deus, ou melhor, a Deus, que é a fonte de todo Amor.

A fé nos dá o poder de viver o Reino de Deus agora, na vida que temos. A esperança nos acalenta, nos envolve e nos alegra na expectativa da manifestação do Reino. O Amor nos transforma continuamente na imagem de Deus, desde o princípio e até o fim.

 

As Trilogias do Amor

 

A alma do amor é calma

E descansa

No conforto de seu corpo

Que é acolhimento

Na essência de um espírito manso

E intenso

Que comunica a felicidade amiga

Da Presença de Deus

 

O amor revela a alma

Quando fala e quando se cala,

O amor serve o corpo

Quando faz e quando espera,

O amor eleva o espírito

Quando luta e quando sofre

 

Os caminhos do amor

Plenificam a intimidade

Aproximam as incompletudes

Na vivência da fé

Nas viagens da esperança

Nas vitórias do Amor de Deus


                  Fernando Sabóia Vieira, junho de 2015.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

As Coisas em Sua Identidade


 

Thomas Merton

 

“Dizer que eu nasci no pecado é dizer que eu vim ao mundo com um falso eu.” Merton

“O pecador é um caçador de sombras”. Agostinho

 

         Uma árvore glorifica a Deus, antes de tudo, sendo uma árvore. Pois sendo o que Deus entende que ela seja, ela imita uma ideia que está em Deus e que não é distinta da essência de Deus e é essa a razão pela qual, sendo uma árvore, ela imita Deus.

         Quanto mais uma árvore se parece consigo mesma, mais ela se parece com Deus. Se ela tentasse se parecer a qualquer outra coisa que ela nunca foi destinada a ser ela se pareceria menos com Deus e, por consequência, O glorificaria menos.

         Não há dois seres criados que sejam exatamente iguais. E sua individualidade não é uma imperfeição. Ao contrário: a perfeição de cada coisa criada não consiste simplesmente na sua conformidade a um tipo abstrato, mas na sua identidade individual consigo mesma. Essa árvore particular glorificará Deus estendendo suas raízes na terra e elevando seus ramos ao ar e à luz de uma maneira que nem antes nem depois nenhuma outra árvore o fez ou fará jamais.

         Você pensa que, consideradas individualmente, as criaturas do mundo são tentativas imperfeitas de reproduzir um tipo ideal que o Criador nunca conseguiu realizar plenamente sobre a Terra? Se fosse assim, elas não O glorificariam, ao contrário, proclamariam que Ele não seria um Criador perfeito.

         É porque cada ser em particular, na sua individualidade, em sua natureza concreta e em sua entidade, com todas as suas características, todas as qualidades que lhe são próprias e sua identidade inviolável glorifica a Deus sendo exatamente o que Ele quer que ele seja, aqui e agora, nas circunstâncias prescritas para ele pelo Seu Amor e Sua Arte infinita.

          As formas e os caracteres individuais das coisas que vivem e crescem, das coisas inanimadas, dos animais, das flores e de toda a natureza constituem sua santidade aos olhos de Deus. É sendo o que elas são que elas são santas.   A beleza patusca desta ave, neste mês de abril, neste bosque, sob estas nuvens é algo consagrado a deus por Sua Arte e proclama a Sua Glória. As flores brancas deste arbusto que se pode ver por esta janela são santas. As pequenas flores amarelas que ninguém percebe à beira do caminho são santas que contemplam a Deus face a face.  Esta folha possui seu tecido caprichoso de veias e sua forma santa. Sua beleza e sua força canonizam a truta escondida nas grutas profundas dos rios. A grande montanha escapada, seminua é também uma das santas de Deus. Não existe nenhuma outra como ela. Ela é única em seu caráter, nenhuma outra neste mundo jamais a imitou ou imitará. E essa é a sua santidade.

         Mas, e você? E eu?

         Diferentemente dos animais e das árvores, não basta que sejamos conformes à nossa natureza. Não é suficiente que sejamos homens segundo nós somos. Para nós, a santidade é mais do que a natureza humana. Se não somos jamais nada além de homens, nada além do que somos por nascimento, nós não seremos santos e seremos incapazes de render a Deus o culto de nossa imitação a Ele, que é a santidade.

         É verdadeiro dizer que, para mim, a santidade consiste em ser eu mesmo; para você, a santidade consiste em você ser você mesmo, e que, em última análise, sua santidade jamais será a minha e a minha jamais será a sua, salvo no que compartilhamos do Amor e da Graça.

         Para mim, ser santo significa ser eu mesmo. O problema da santidade e da salvação consiste, então, na realidade, em encontrar quem eu sou e descobrir meu verdadeiro eu.

         As árvores e os animais não têm um problema a resolver. Deus as fez como eles são sem os consultar e estão perfeitamente satisfeitos.

         Conosco é diferente. Deus nos deixa livres para ser o que nos agrada. Nós podemos ser nós mesmos ou não sê-lo, segundo nosso alvedrio. Mas o problema é o seguinte: uma vez que apenas Deus possui o segredo de minha identidade, somente Ele pode me fazer o que eu sou, ou melhor, somente Ele pode me fazer o que serei quando, ao final das contas, eu começar a ser eu mesmo de verdade.

         As sementes que são semeadas a todo instante na minha liberdade, pela vontade de Deus, são as sementes da minha identidade, da minha realidade, da minha felicidade, da minha santidade.

         Recusá-las é tudo recusar: é a recusa da minha existência e do meu ser, de minha identidade e da minha própria essência.   Não aceitar, amar e cumprir a vontade de Deus é recusar o cumprimento da minha própria existência.

         E se eu jamais me tornar o que eu sou destinado a ser, mas permanecer sempre o que eu não sou, eu passarei a eternidade a me contradizer, sendo ao mesmo tempo qualquer coisa e nada, uma vida que quer viver e que é morte, e uma morte que quer ser morte e que não consegue alcançar sua morte porque ela é de todo modo obrigada a existir.

         Dizer que eu nasci no pecado é dizer que eu vim ao mundo com um falso eu. Eu entrei no mundo sob o signo da contradição, sendo alguém que eu jamais fui destinado a ser e, por essa razão, sendo a negação do que eu sou destinado a ser. Assim, eu entrei, ao mesmo tempo, na existência e na não existência, porque, desde o começo, eu fui algo que nunca fui.

         Para dizer a mesma coisa de uma maneira menos paradoxal: enquanto eu não for nada além do que aquilo que nasceu de minha mãe, estarei tão longe de ser a pessoa que eu deveria ser que eu poderia muito bem não existir. Na verdade, seria mesmo melhor para mim não ter nascido.

         Cada um de nós está escondido por trás de uma personalidade ilusória: um falso eu. Esse é o homem que eu mesmo desejo ser, mas que não pode existir porque Deus nada sabe dele. E ser ignorado por Deus é discrição em excesso.    Minha falsa personalidade é aquela que quer existir fora do raio da vontade e do mor de Deus – fora da realidade e fora da vida. E tal eu não pode ser mais do que um ilusão.

         Nós não somos muito bons em reconhecer ilusões e menos ainda aquelas que temos sobre nós mesmos, aquelas com as quais nascemos e que alimentas as raízes do pecado. Para muita gente no mundo, não há maior realidade subjetiva do que esse falso eu que é o seu, que não pode existir. Uma vida dedicada ao culto dessa sombra se chama uma vida de pecado.

         Todo pecado tem como ponto de partida essa convicção que meu falso eu, o eu que existe apenas em meus desejos egocêntricos, é a realidade mais fundamental de vida à qual se subordina todo o resto do universo. Assim, eu utilizo minha vida me esforçando para acumular prazeres, experiências, poder, honra, ciência e amor para revestir esse falso eu a ataviar seu nada com uma realidade objetiva.

         E eu acumulo em torno de mim minhas experiências, eu me revisto de prazeres e de glórias como de bandeirolas, a fim de me tornar perceptível a mim mesmo e ao mundo, como seu eu fosse um corpo invisível que só pode se tornar visível se algo visível recobrir sua superfície.

         Mas, sob as coisas que eu acumulei em torno de mim, não há nada substancial, nada além do vazio. E minha camuflagem de prazeres e de ambições repousa sobre o nada. São eles que me objetivam, mas seu próprio caráter fortuito os condenam à aniquilação. E, uma vez que eles desapareçam, não resta nada de mim a não seu minha nudez, meu vazio e meu nada para me revelar que eu sou um erro.

         O segredo de minha identidade está escondido no amor e na misericórdia de Deus. Mas tudo o que está em Deus é idêntico a Ele, pois sua infinita simplicidade não admite nem distinção nem divisão. É por essa razão que não posso esperar me encontrar em nenhum lugar que não seja nEle.

         Em uma palavra, a única maneira pela qual eu posso ser eu mesmo é me identificar a Ele, em quem estão escondidas a razão e a plenitude de minha existência.

         Assim, há um único problema do qual depende inteiramente minha existência, minha paz e minha felicidade: descobrir-me a mim mesmo descobrindo Deus. Se eu O encontro, eu encontro a mim mesmo, e se eu encontro meu verdadeiro eu, eu O encontrei.

         No entanto, embora isso tenha um ar muito simples, se reveste, na realidade, de uma imensa dificuldade. Se eu for, de fato, entregue a mim mesmo, isso me será inteiramente impossível. Pois, mesmo que com a ajuda de minha própria razão eu possa conhecer um pouco da existência e da natureza de Deus, não existe nenhum meio humano e racional para chegar a esse contato, a essa união com Ele, que será a descoberta de quem Ele é realmente e de quem eu sou nEle.

         Isso é algo que homem algum pode fazer por si mesmo. E nenhum homem ou coisa criada existente no universo pode ajudar nessa tarefa.

         O único que pode me ensinar a encontrar a Deus é Deus, Ele mesmo, apenas.

 

         Traduzido de “Semences de Contemplation”, Éditions du Seuil, Paris, 1952, por Fernando Sabóia Vieira.

JESUS, PASTOR DE NOSSA ALMA


 
1ª de Pedro 2:25, 5:4; Hebreus 13:20; João 10:1-18
 

(Fernando Sabóia Vieira, BsB/15)

Para minha amiga Juçara, ovelha de Jesus e também apascentadora de almas.


I – INTRODUÇÃO

          Como nós vemos as pessoas? Nossos parentes e amigos, os irmãos na fé, os colegas e conhecidos, as pessoas com quem cruzamos pelas ruas ou que vemos nas mídias, como as vemos? Distinguimos aquelas que pertencem ao reino das que são “do mundo” e consideramos essas últimas como parte de uma geração “adúltera e pecadora”?

Certamente vivemos tempos especialmente difíceis para o Cristianismo, somos parte de uma sociedade hostil a Deus. Mas não podemos nos esquecer de que Jesus viveu tempos igualmente difíceis e que Ele, mesmo assim, embora reconhecesse que as pessoas eram inimigas de Deus, pecadoras carentes de arrependimento, também as via como ovelhas sem pastor: muitas aflitas, doentes, oprimidas, cansadas, sobrecarregadas, famintas, perdidas, aterrorizadas.
 

E Jesus ia passando por todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando as boas novas do Reino e curando todas as enfermidades e doenças. Ao ver as multidões, Jesus sentiu grande compaixão pelas pessoas, pois que estavam aflitas e desamparadas como ovelhas que não têm pastor. Então, falou aos seus discípulos: “De fato a colheita é abundante, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, orai ao Senhor da seara e pedi que Ele mande mais trabalhadores para a sua colheita”.” (Mateus 9:36-38).

         Deus criou o homem pleno de potencialidades a serem desenvolvidas e vividas. Colocou nele a Sua Imagem e instilou em suas narinas o Seu espírito vivificante. Foi o pecado que produziu o caos pessoal, a desintegração do indivíduo, a alienação de sua identidade e destino eternos e os conflitos de relacionamento. Também deu origem à hostilidade e decomposição da Criação, à decrepitude e à velhice de tudo o que vive. Foi esse mundo caído que Deus amou sobremaneira, ao ponto de dar seu Filho para morrer por ele. Embora a iniquidade aumente e o amor esfrie, Deus não amará menos o mundo por isso. Sua resposta à rebeldia e inimizade do homem continua sendo a graça oferecida na cruz, o chamado ao Seu Reino e à sua comunhão.
         Somos todos doentes terminais. Precisamos de salvação e de cura. Precisamos de ajuda para prosseguir e perseverar até o fim. Nossa redenção só será completa uma vez terminada nossa carreira terrena e conquistada a coroa da vida. No entanto, sem pastoreio, desanimamos, cansamos, eventualmente desistimos.
             Não nos basta saber o que fazer, ter mandamentos claros e estratégias definidas. Precisamos de ajuda com nossos pecados e nossas atrapalhações de sentimentos, de vontades e de sonhos, especialmente quando somos atingidos pelo caos das circunstâncias e dos relacionamentos, pela oposição do mundo e pela guerra espiritual em que estamos envolvidos.

         Temos enfatizado muito a porta estreita para ingresso no Reino de Deus – e essa é uma pregação crucial nos nossos dias de religiosidade vazia, de curas superficiais e de profecias ao gosto do consumidor – mas temos tido pouca ajuda oferecida para as dificuldades de andar no caminho apertado, e essa é parte essencial do ministério da igreja de fazer discípulos de Jesus, especialmente nesta nossa geração enferma, cercada de tensões, conflitos, perigos e oposições – ovelhas que não têm pastor e sequer se dão conta de sua necessidade de um.

         Temos aprendido e proclamado a necessidade imperiosa de sermos SALVOS E GOVERNADOS por Jesus. Precisamos, igualmente, aprender a sermos PASTOREADOS por Jesus.

         Nossa vida de Igreja, com a excelente restauração da prática do serviço dos santos na edificação do Corpo de Cristo, tem, por vezes, negligenciado o fato de que é Ele mesmo quem pastoreia as almas, quem alivia os cansados e sobrecarregados, quem recolhe as ovelhas perdidas, quem anima e consola os que têm o coração aflito, traz paz aos ansiosos e é a fonte de contentamento, de luz, de alegria, de vida abundante.

         Nós precisamos de ajuda para andar no caminho estreito. Precisamos de que o Pastor de nossas almas nos conduza. Não são suficientes o kerigma e a didaquê. É necessário recuperar a centralidade do relacionamento pessoal, íntimo, com o Senhor, que toque nossos pensamentos, sentimentos, vontades, idéias, imaginação, desejos. O pastoreio de nossa alma só pode ser feito por Jesus. Nem os irmãos, nem os pastores, nem os serviços e ministérios da Igreja e nem mesmo nossos melhores esforços podem produzir isso.

         Jesus tem sido muitas vezes substituído por técnicas, estratégias, serviços, métodos. Ministérios, organizações, formas de funcionamento, relacionamentos.  Mas nada disso pode, por si só, efetivamente, tocar nossa alma, produzir transformação no nosso ser interior e mudanças na nossa vida que não sejam apenas exterioridades. Há uma dimensão espiritual, sobrenatural, transcendente do relacionamento com Deus, operada diretamente pelo Espírito Santo, que não pode ser reduzida a ações humanas.

         Nós ansiamos por Deus mesmo, não por fórmulas, ritos, doutrinas, ensinos, por mais excelentes que sejam. Não nos satisfazem vitórias, bênçãos, performances espetaculares de ministros e pregadores. Infelizmente, a igreja moderna tem sido pródiga em oferecer essas coisas, tornando a vida espiritual um festival de cores, sabores e emoções, mas, paradoxalmente, mantendo as multidões famintas, sedentas, sem pastor, despedida vazia cada vez, tanto mais quanto intensa é a frustração que marca o dia seguinte a esses eventos espetaculares.

         Ao meditar no ministério de Jesus, em como Ele atingia as pessoas e as transformava, percebemos que é necessário e urgente que a Igreja do século XXI recupere a dimensão afetiva da fé, que responde à nossa necessidade existencial mais profunda de encontro e relacionamento pessoal com Deus, que se reencontre com o pastoreio de Jesus.

         A Igreja nominalmente cristã de nossos dias se divide, grosso modo, entre um emocionalismo meramente catártico, estéril de frutos, que confunde conforto psicológico com salvação e subjetivismo com verdade, e um racionalismo igualmente desértico que apenas lida com conceitos, proposições, discursos, conceitos, estratégias. Ou oscilamos entre um e outro.

         Em nosso meio, por receio dos perigos do primeiro, temos, talvez, caído na falsa segurança do segundo. Temos uma fé quase que exclusivamente propositiva, didática, dogmática e organizada, assentada mais em verdades e mandamentos do que na Pessoa que é a Verdade. Confiamos mais na doutrina do que na Presença vivificante, mais nas práticas do serviço bem ordenado de edificação dos santos do que na contemplação transformadora da face de Deus.

         Amar a Deus certamente inclui obedecer a Seus mandamentos, mas é mais do que isso. Desde o Velho Testamento, nos primeiros escritos sagrados encontramos o supremo dever de toda pessoa: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, de todas as tuas forças”.

         Todo o nosso ser está envolvido no todo amor que devemos a Deus. Essa é a lição maior dos santos e santas da Igreja, que precisa ser recuperada para que as almas famintas dos homens e mulheres desta geração possam ser apascentadas.

         Vejo essa fome e sede do cuidado pastoral de Deus em muitas das nossas modernas canções de louvor, mas tenho dúvidas de que saibamos viver essa dimensão de busca pessoal e íntima de Deus sem os intensos estímulos sensoriais desses momentos maravilhosos de adoração coletiva.

A verdade é que nosso silêncio é muito barulhento e nossa solitude muito povoada. Sem conhecer esses antigos caminhos de adoração e comunhão com Deus, a Igreja moderna tem, muitas vezes, encaminhado a profissionais as almas que Jesus mesmo quer curar, alimentar, fazer descansar, restaurar, tornar plenas em suas potencialidades. O resultado é que curas apenas superficiais são produzidas e a salvação não se torna efetiva e completa. Ilusão de conforto e bem-estar, mas não santidade.

Desde o Velho Testamento, uma das figuras do Messias, talvez não tão enfatizada quanto a de Rei e de Servo, é a de Pastor. Deus promete ao Seu povo um Pastor que cuide dele: Isaías 40:9-11; Jeremias 23:1-4; Ezequiel 34:23-24.

É possível ver a necessidade e mesmo uma carência desesperada do cuidado pastoral de Deus no meio de nossa sociedade moderna, ainda que os homens desta geração tenham cada vez menos consciência disso.

          Não foi por acaso que sugiram no último século e meio dezenas de tipos de curandeiros de alma e que a ciência racionalista e materialista tenha assumido isso como tarefa sua. Com pouquíssimo sucesso, diga-se. A despeito dos proclamados avanços do conhecimento humano, as doenças da alma se tornaram epidêmicas na virada do século.

Do lado da igreja, podemos constatar reflexos dessa crise em alguns aspectos dos recentes movimentos de avivamento e de restauração manifestados num tipo de adoração muito ligado ao sentimento e aos estímulos sensoriais: música estimulante, imagens, produções, espetáculos, pregações motivacionais, ambientes que visam proporcionar conforto emocional.

Mesmo considerando, como considero, que haja muita coisa genuína e espiritual em várias dessas manifestações, também há uma excessiva mistura, uma diversidade poluente, como é característico de nossa geração. É necessário, como pregou Jeremias, separar o precioso do vil para ser a boca de Deus.

Devemos, ainda, atentar para a advertência do profeta que viveu dias semelhantes aos nossos quanto a esse falso pastoreamento: Jeremias 2:8; 3:15; 10:21; 12:10; 23:1-4.

Precisamos aprender a andar o caminho que nos leva às águas tranqüilas, aos pastos verdejantes, onde a alma é restaurada e a Presença de Deus sentida mesmo nos lugares sombrios.

Só podemos ser conduzidos nesse caminho pelo Bom Pastor. Não o acharemos sozinhos. Não podemos andar nele sozinhos. Nenhum homem pode nos conduzir nisso: “O Senhor é o meu Pastor.”

Se nós queremos ser efetivamente pastoreados por Jesus e ajudar outros a seguir o Bom Pastor, talvez nós devamos voltar ao Evangelho e considerar o ministério pastoral de Jesus, para o compreendermos, nos submetermos a Ele como o Pastor de nossa alma e aprendermos a melhor seguir os Seus passos, tocados e cuidados por Ele.

         Esse é o tema desta mensagem. Jesus se apresenta como o Bom Pastor, como o Pastor de nossas almas. Podemos ver nos Evangelhos como Ele tratava a alma e o coração das multidões, das pessoas com quem se encontrava e dos seus discípulos.

         Não encontramos em Jesus apenas o Salvador que veio morrer na cruz em nosso lugar e o Senhor que veio restaurar a autoridade do Reino de Deus, mas encontramos a cada momento o Pastor que veio buscar as ovelhas perdidas para curá-las, alimentá-las, protegê-las e conduzi-las.

         Apenas Ele, por reunir essas três condições, pode nos trazer cura, salvação e vida abundante. O pastoreio de Jesus significa a chegada do Reino de Deus dentro de nós, no nosso ser interior, em nossa alma e espírito, atingindo nossos pensamentos, sentimentos, amores, vontades, ideias, inteligência, criatividade etc.

         O objetivo dessa meditação é perceber nos evangelhos a prática pastoral de Jesus, desde sua própria afirmação como o Bom Pastor, nos seus discursos públicos, nos seus diálogos com as pessoas, no relacionamento com seus discípulos, em suas parábolas.

Mais ainda, oramos para que essa revelação de Jesus como Pastor da nossa alma produza em nós seu efetivo pastoreio, nos resgatando, nos curando, nos alimentando, nos protegendo e nos conduzindo.