Thomas
Merton
“Dizer
que eu nasci no pecado é dizer que eu vim ao mundo com um falso eu.” Merton
“O
pecador é um caçador de sombras”. Agostinho
Uma árvore glorifica a Deus, antes de
tudo, sendo uma árvore. Pois sendo o que Deus entende que ela seja, ela imita
uma ideia que está em Deus e que não é distinta da essência de Deus e é essa a
razão pela qual, sendo uma árvore, ela imita Deus.
Quanto mais uma árvore se parece
consigo mesma, mais ela se parece com Deus. Se ela tentasse se parecer a
qualquer outra coisa que ela nunca foi destinada a ser ela se pareceria menos
com Deus e, por consequência, O glorificaria menos.
Não há dois seres criados que sejam
exatamente iguais. E sua individualidade não é uma imperfeição. Ao contrário: a
perfeição de cada coisa criada não consiste simplesmente na sua conformidade a
um tipo abstrato, mas na sua identidade individual consigo mesma. Essa árvore
particular glorificará Deus estendendo suas raízes na terra e elevando seus
ramos ao ar e à luz de uma maneira que nem antes nem depois nenhuma outra
árvore o fez ou fará jamais.
Você pensa que, consideradas
individualmente, as criaturas do mundo são tentativas imperfeitas de reproduzir
um tipo ideal que o Criador nunca conseguiu realizar plenamente sobre a Terra? Se
fosse assim, elas não O glorificariam, ao contrário, proclamariam que Ele não
seria um Criador perfeito.
É porque cada ser em particular, na sua
individualidade, em sua natureza concreta e em sua entidade, com todas as suas
características, todas as qualidades que lhe são próprias e sua identidade
inviolável glorifica a Deus sendo exatamente o que Ele quer que ele seja, aqui
e agora, nas circunstâncias prescritas para ele pelo Seu Amor e Sua Arte infinita.
Mas, e você? E eu?
Diferentemente dos animais e das
árvores, não basta que sejamos conformes à nossa natureza. Não é suficiente que
sejamos homens segundo nós somos. Para nós, a santidade é mais do que a natureza
humana. Se não somos jamais nada além de homens, nada além do que somos por
nascimento, nós não seremos santos e seremos incapazes de render a Deus o culto
de nossa imitação a Ele, que é a santidade.
É verdadeiro dizer que, para mim, a
santidade consiste em ser eu mesmo; para você, a santidade consiste em você ser
você mesmo, e que, em última análise, sua santidade jamais será a minha e a minha
jamais será a sua, salvo no que compartilhamos do Amor e da Graça.
Para mim, ser santo significa ser eu
mesmo. O problema da santidade e da salvação consiste, então, na realidade, em
encontrar quem eu sou e descobrir meu verdadeiro eu.
As árvores e os animais não têm um
problema a resolver. Deus as fez como eles são sem os consultar e estão
perfeitamente satisfeitos.
Conosco é diferente. Deus nos deixa
livres para ser o que nos agrada. Nós podemos ser nós mesmos ou não sê-lo,
segundo nosso alvedrio. Mas o problema é o seguinte: uma vez que apenas Deus
possui o segredo de minha identidade, somente Ele pode me fazer o que eu sou,
ou melhor, somente Ele pode me fazer o que serei quando, ao final das contas,
eu começar a ser eu mesmo de verdade.
As sementes que são semeadas a todo
instante na minha liberdade, pela vontade de Deus, são as sementes da minha
identidade, da minha realidade, da minha felicidade, da minha santidade.
Recusá-las é tudo recusar: é a recusa
da minha existência e do meu ser, de minha identidade e da minha própria
essência. Não aceitar, amar e cumprir a
vontade de Deus é recusar o cumprimento da minha própria existência.
E se eu jamais me tornar o que eu sou
destinado a ser, mas permanecer sempre o que eu não sou, eu passarei a
eternidade a me contradizer, sendo ao mesmo tempo qualquer coisa e nada, uma
vida que quer viver e que é morte, e uma morte que quer ser morte e que não
consegue alcançar sua morte porque ela é de todo modo obrigada a existir.
Dizer que eu nasci no pecado é dizer que
eu vim ao mundo com um falso eu. Eu entrei no mundo sob o signo da contradição,
sendo alguém que eu jamais fui destinado a ser e, por essa razão, sendo a
negação do que eu sou destinado a ser. Assim, eu entrei, ao mesmo tempo, na existência
e na não existência, porque, desde o começo, eu fui algo que nunca fui.
Para dizer a mesma coisa de uma maneira
menos paradoxal: enquanto eu não for nada além do que aquilo que nasceu de
minha mãe, estarei tão longe de ser a pessoa que eu deveria ser que eu poderia
muito bem não existir. Na verdade, seria mesmo melhor para mim não ter nascido.
Cada um de nós está escondido por trás
de uma personalidade ilusória: um falso eu. Esse é o homem que eu mesmo desejo
ser, mas que não pode existir porque Deus nada sabe dele. E ser ignorado por
Deus é discrição em excesso. Minha falsa
personalidade é aquela que quer existir fora do raio da vontade e do mor de
Deus – fora da realidade e fora da vida. E tal eu não pode ser mais do que um
ilusão.
Nós não somos muito bons em reconhecer ilusões
e menos ainda aquelas que temos sobre nós mesmos, aquelas com as quais nascemos
e que alimentas as raízes do pecado. Para muita gente no mundo, não há maior
realidade subjetiva do que esse falso eu que é o seu, que não pode existir. Uma
vida dedicada ao culto dessa sombra se chama uma vida de pecado.
Todo pecado tem como ponto de partida
essa convicção que meu falso eu, o eu que existe apenas em meus desejos
egocêntricos, é a realidade mais fundamental de vida à qual se subordina todo o
resto do universo. Assim, eu utilizo minha vida me esforçando para acumular
prazeres, experiências, poder, honra, ciência e amor para revestir esse falso
eu a ataviar seu nada com uma realidade objetiva.
E eu acumulo em torno de mim minhas
experiências, eu me revisto de prazeres e de glórias como de bandeirolas, a fim
de me tornar perceptível a mim mesmo e ao mundo, como seu eu fosse um corpo
invisível que só pode se tornar visível se algo visível recobrir sua
superfície.
Mas, sob as coisas que eu acumulei em
torno de mim, não há nada substancial, nada além do vazio. E minha camuflagem
de prazeres e de ambições repousa sobre o nada. São eles que me objetivam, mas
seu próprio caráter fortuito os condenam à aniquilação. E, uma vez que eles
desapareçam, não resta nada de mim a não seu minha nudez, meu vazio e meu nada
para me revelar que eu sou um erro.
O segredo de minha identidade está
escondido no amor e na misericórdia de Deus. Mas tudo o que está em Deus é idêntico
a Ele, pois sua infinita simplicidade não admite nem distinção nem divisão. É
por essa razão que não posso esperar me encontrar em nenhum lugar que não seja
nEle.
Em uma palavra, a única maneira pela
qual eu posso ser eu mesmo é me identificar a Ele, em quem estão escondidas a
razão e a plenitude de minha existência.
Assim, há um único problema do qual
depende inteiramente minha existência, minha paz e minha felicidade:
descobrir-me a mim mesmo descobrindo Deus. Se eu O encontro, eu encontro a mim
mesmo, e se eu encontro meu verdadeiro eu, eu O encontrei.
No entanto, embora isso tenha um ar
muito simples, se reveste, na realidade, de uma imensa dificuldade. Se eu for,
de fato, entregue a mim mesmo, isso me será inteiramente impossível. Pois,
mesmo que com a ajuda de minha própria razão eu possa conhecer um pouco da
existência e da natureza de Deus, não existe nenhum meio humano e racional para
chegar a esse contato, a essa união com Ele, que será a descoberta de quem Ele
é realmente e de quem eu sou nEle.
Isso é algo que homem algum pode fazer
por si mesmo. E nenhum homem ou coisa criada existente no universo pode ajudar
nessa tarefa.
O único que pode me ensinar a encontrar
a Deus é Deus, Ele mesmo, apenas.
Traduzido
de “Semences de Contemplation”, Éditions du Seuil, Paris, 1952, por Fernando
Sabóia Vieira.
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