quarta-feira, 17 de junho de 2015

As Coisas em Sua Identidade


 

Thomas Merton

 

“Dizer que eu nasci no pecado é dizer que eu vim ao mundo com um falso eu.” Merton

“O pecador é um caçador de sombras”. Agostinho

 

         Uma árvore glorifica a Deus, antes de tudo, sendo uma árvore. Pois sendo o que Deus entende que ela seja, ela imita uma ideia que está em Deus e que não é distinta da essência de Deus e é essa a razão pela qual, sendo uma árvore, ela imita Deus.

         Quanto mais uma árvore se parece consigo mesma, mais ela se parece com Deus. Se ela tentasse se parecer a qualquer outra coisa que ela nunca foi destinada a ser ela se pareceria menos com Deus e, por consequência, O glorificaria menos.

         Não há dois seres criados que sejam exatamente iguais. E sua individualidade não é uma imperfeição. Ao contrário: a perfeição de cada coisa criada não consiste simplesmente na sua conformidade a um tipo abstrato, mas na sua identidade individual consigo mesma. Essa árvore particular glorificará Deus estendendo suas raízes na terra e elevando seus ramos ao ar e à luz de uma maneira que nem antes nem depois nenhuma outra árvore o fez ou fará jamais.

         Você pensa que, consideradas individualmente, as criaturas do mundo são tentativas imperfeitas de reproduzir um tipo ideal que o Criador nunca conseguiu realizar plenamente sobre a Terra? Se fosse assim, elas não O glorificariam, ao contrário, proclamariam que Ele não seria um Criador perfeito.

         É porque cada ser em particular, na sua individualidade, em sua natureza concreta e em sua entidade, com todas as suas características, todas as qualidades que lhe são próprias e sua identidade inviolável glorifica a Deus sendo exatamente o que Ele quer que ele seja, aqui e agora, nas circunstâncias prescritas para ele pelo Seu Amor e Sua Arte infinita.

          As formas e os caracteres individuais das coisas que vivem e crescem, das coisas inanimadas, dos animais, das flores e de toda a natureza constituem sua santidade aos olhos de Deus. É sendo o que elas são que elas são santas.   A beleza patusca desta ave, neste mês de abril, neste bosque, sob estas nuvens é algo consagrado a deus por Sua Arte e proclama a Sua Glória. As flores brancas deste arbusto que se pode ver por esta janela são santas. As pequenas flores amarelas que ninguém percebe à beira do caminho são santas que contemplam a Deus face a face.  Esta folha possui seu tecido caprichoso de veias e sua forma santa. Sua beleza e sua força canonizam a truta escondida nas grutas profundas dos rios. A grande montanha escapada, seminua é também uma das santas de Deus. Não existe nenhuma outra como ela. Ela é única em seu caráter, nenhuma outra neste mundo jamais a imitou ou imitará. E essa é a sua santidade.

         Mas, e você? E eu?

         Diferentemente dos animais e das árvores, não basta que sejamos conformes à nossa natureza. Não é suficiente que sejamos homens segundo nós somos. Para nós, a santidade é mais do que a natureza humana. Se não somos jamais nada além de homens, nada além do que somos por nascimento, nós não seremos santos e seremos incapazes de render a Deus o culto de nossa imitação a Ele, que é a santidade.

         É verdadeiro dizer que, para mim, a santidade consiste em ser eu mesmo; para você, a santidade consiste em você ser você mesmo, e que, em última análise, sua santidade jamais será a minha e a minha jamais será a sua, salvo no que compartilhamos do Amor e da Graça.

         Para mim, ser santo significa ser eu mesmo. O problema da santidade e da salvação consiste, então, na realidade, em encontrar quem eu sou e descobrir meu verdadeiro eu.

         As árvores e os animais não têm um problema a resolver. Deus as fez como eles são sem os consultar e estão perfeitamente satisfeitos.

         Conosco é diferente. Deus nos deixa livres para ser o que nos agrada. Nós podemos ser nós mesmos ou não sê-lo, segundo nosso alvedrio. Mas o problema é o seguinte: uma vez que apenas Deus possui o segredo de minha identidade, somente Ele pode me fazer o que eu sou, ou melhor, somente Ele pode me fazer o que serei quando, ao final das contas, eu começar a ser eu mesmo de verdade.

         As sementes que são semeadas a todo instante na minha liberdade, pela vontade de Deus, são as sementes da minha identidade, da minha realidade, da minha felicidade, da minha santidade.

         Recusá-las é tudo recusar: é a recusa da minha existência e do meu ser, de minha identidade e da minha própria essência.   Não aceitar, amar e cumprir a vontade de Deus é recusar o cumprimento da minha própria existência.

         E se eu jamais me tornar o que eu sou destinado a ser, mas permanecer sempre o que eu não sou, eu passarei a eternidade a me contradizer, sendo ao mesmo tempo qualquer coisa e nada, uma vida que quer viver e que é morte, e uma morte que quer ser morte e que não consegue alcançar sua morte porque ela é de todo modo obrigada a existir.

         Dizer que eu nasci no pecado é dizer que eu vim ao mundo com um falso eu. Eu entrei no mundo sob o signo da contradição, sendo alguém que eu jamais fui destinado a ser e, por essa razão, sendo a negação do que eu sou destinado a ser. Assim, eu entrei, ao mesmo tempo, na existência e na não existência, porque, desde o começo, eu fui algo que nunca fui.

         Para dizer a mesma coisa de uma maneira menos paradoxal: enquanto eu não for nada além do que aquilo que nasceu de minha mãe, estarei tão longe de ser a pessoa que eu deveria ser que eu poderia muito bem não existir. Na verdade, seria mesmo melhor para mim não ter nascido.

         Cada um de nós está escondido por trás de uma personalidade ilusória: um falso eu. Esse é o homem que eu mesmo desejo ser, mas que não pode existir porque Deus nada sabe dele. E ser ignorado por Deus é discrição em excesso.    Minha falsa personalidade é aquela que quer existir fora do raio da vontade e do mor de Deus – fora da realidade e fora da vida. E tal eu não pode ser mais do que um ilusão.

         Nós não somos muito bons em reconhecer ilusões e menos ainda aquelas que temos sobre nós mesmos, aquelas com as quais nascemos e que alimentas as raízes do pecado. Para muita gente no mundo, não há maior realidade subjetiva do que esse falso eu que é o seu, que não pode existir. Uma vida dedicada ao culto dessa sombra se chama uma vida de pecado.

         Todo pecado tem como ponto de partida essa convicção que meu falso eu, o eu que existe apenas em meus desejos egocêntricos, é a realidade mais fundamental de vida à qual se subordina todo o resto do universo. Assim, eu utilizo minha vida me esforçando para acumular prazeres, experiências, poder, honra, ciência e amor para revestir esse falso eu a ataviar seu nada com uma realidade objetiva.

         E eu acumulo em torno de mim minhas experiências, eu me revisto de prazeres e de glórias como de bandeirolas, a fim de me tornar perceptível a mim mesmo e ao mundo, como seu eu fosse um corpo invisível que só pode se tornar visível se algo visível recobrir sua superfície.

         Mas, sob as coisas que eu acumulei em torno de mim, não há nada substancial, nada além do vazio. E minha camuflagem de prazeres e de ambições repousa sobre o nada. São eles que me objetivam, mas seu próprio caráter fortuito os condenam à aniquilação. E, uma vez que eles desapareçam, não resta nada de mim a não seu minha nudez, meu vazio e meu nada para me revelar que eu sou um erro.

         O segredo de minha identidade está escondido no amor e na misericórdia de Deus. Mas tudo o que está em Deus é idêntico a Ele, pois sua infinita simplicidade não admite nem distinção nem divisão. É por essa razão que não posso esperar me encontrar em nenhum lugar que não seja nEle.

         Em uma palavra, a única maneira pela qual eu posso ser eu mesmo é me identificar a Ele, em quem estão escondidas a razão e a plenitude de minha existência.

         Assim, há um único problema do qual depende inteiramente minha existência, minha paz e minha felicidade: descobrir-me a mim mesmo descobrindo Deus. Se eu O encontro, eu encontro a mim mesmo, e se eu encontro meu verdadeiro eu, eu O encontrei.

         No entanto, embora isso tenha um ar muito simples, se reveste, na realidade, de uma imensa dificuldade. Se eu for, de fato, entregue a mim mesmo, isso me será inteiramente impossível. Pois, mesmo que com a ajuda de minha própria razão eu possa conhecer um pouco da existência e da natureza de Deus, não existe nenhum meio humano e racional para chegar a esse contato, a essa união com Ele, que será a descoberta de quem Ele é realmente e de quem eu sou nEle.

         Isso é algo que homem algum pode fazer por si mesmo. E nenhum homem ou coisa criada existente no universo pode ajudar nessa tarefa.

         O único que pode me ensinar a encontrar a Deus é Deus, Ele mesmo, apenas.

 

         Traduzido de “Semences de Contemplation”, Éditions du Seuil, Paris, 1952, por Fernando Sabóia Vieira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário