(Fernando Sabóia Vieira)
"Portanto, eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração."
Oséias 2:14
O deserto sempre teve grande influência significado na vida do povo de Deus. Desde as peregrinações dos Patriarcas, até a travessia sob o comando de Moisés, representou, para a nação hebréia, um batismo, um caminho de provação, de esperança, de luta e, não raro, de tentação e de queda.
O deserto foi o caminho da promessa, quando o Senhor, com poder, conduziu o povo da escravidão do Egito para Canaã, moldando seu caráter e ensinado-o a depender totalmente dEle.
O deserto foi também o caminho para o exílio, quando, em fase mais adulta como nação, Israel desviou-se dos caminhos do Senhor e recebeu o castigo por sua rebeldia.
O deserto aguça o sentimento de fragilidade e de dependência do homem, revelando sua impotência diante de um ambiente totalmente hostil e agressivo. A amplidão selvagem esconde inimigos sem conta; a escassez quase absoluta de recursos provoca disputas; sua aridez confronta o homem com seus próprios limites, fazendo com que ele exclame: "de onde me virá o socorro?".
Deus sempre conduziu seu povo e pessoal individualmente para o deserto, a fim de falar na intimidade, de pôr à prova os corações e de santificar na Sua vontade.
Assim foi com Israel tanto a caminho da Terra da Promessa quanto da terra do exílio, assim foi com a mulher de Oséias, com quase todos os profetas, com o último deles, João Batista, e até mesmo com o Senhor Jesus, que foi tentado no deserto e que freqüentemente se retirava para orar em lugares ermos. Mesmo a igreja é descrita no Novo Testamento como "estrangeira e peregrina" , em busca de um "descanso" que ainda não se consumou.
Deus ainda hoje usa o método de conduzir pessoas ao deserto para manifestar-se a elas e para moldá-las segundo Seu caráter e vontade. Além dos desertos geográficos, quando nos vemos isolados do nosso ambiente natural de convivência, experimentamos, especialmente, nossos desertos pessoais, aquelas situações de carência íntima absoluta, de desamparo total, nas quais ansiamos, com todas as forças do nosso ser, por um livramento que só pode vir pelo milagre. Temos fome e sede, nos sentimos órfãos, nossa alma vibra pela Presença do Pai e pelos átrios de Sua morada.
Muitas vezes nos perguntamos como chegamos a tais desertos. Certamente nossos pecados podem ser determinantes: Israel ganhou quarenta anos "extras" no deserto por sua incredulidade e desobediência; Jacó teve que viver em tendas no exílio por conta de suas "espertezas"; a mulher de Oséias foi levada ao deserto por sua vida adúltera etc.
Contudo, sem desprezar tal possibilidade, devemos atentar para a realidade maior da soberania e do amor de Deus, que sempre superam o pecado e a rebeldia do homem.
Nosso Senhor, embora para ser tentado, foi conduzido ao deserto pelo Espírito Santo, e não pelo Adversário. É por graça que o Senhos nos conduz ao deserto, mesmo quando em conseqüência dos nossos pecados, pois é lá que Seu poder ser revela mais evidente e Seu amor mais constrangedor.
O silêncio do deserto leva à meditação e à contemplação, formas essenciais de ouvir a Deus. Apenas quando a provação produz silêncio em nossa alma, quando desistimos de nossas razões e argumentos, é que nasce a verdadeira vida de oração.
O clima árido e o solo quase estéril conferem valor e dimensão especial às coisas mais elementares da vida: a água, o alimento, o abrigo. No deserto, cada árvore, cada fonte de água, cada animal tem nome e importância própria. Cada fator vital é disputado, cada porção é preciosa. Isso faz um contraste tremendo com nossos desperdícios cotidianos da graça de Deus, dos milagre que Sua providência opera diariamente a nosso favor sem que percebamos e agradeçamos.
Quando estamos no deserto, o Senhor põe em relevo Seus atos graciosos, dá-nos a perspectiva correta do que tem realmente valor e significado na vida, daquilo que é essencial: o deserto não permite que sobrevivam nossas futilidades, nossos caprichos e fantasias. É o lugar onde a glória do homem fenece, como a erva e sua flor sopradas pelo vento.
Os desertos não são destinos em si mesmos, mas caminhos; não são o objetivo final, mas o meio de se chegar à Promessa. Podem ser, no entanto, caminhos de juízo ou de salvação, de morte ou de vida. Dependerá de como os encaramos e de como nos conduzimos neles.
Diremos, com o profeta, "ainda que a figueira não floresce, e nem há fruto na vide... exulto o Deus da minha salvação", ou faremos coro com o povo amargurado e rebelde exclamando "foi para morrer aqui que saímos do Egito?" ?
A história sagrada, o testemunho dos santos e o claro ensino do Espírito nos exortam a não desprezarmos os desertos do Senhor, mas, antes, a fazer deles caminho de passagem em direção ao centro de Sua vontade, que é sempre "boa, perfeita e agradável".
O verdadeiro deserto da alma é a negação de si mesmo, a renúncia. Quando abrimos mão de nossos direitos, posições e tentativas de autojustificação entramos no real e não simbólico deserto da alma, com toda a sua carência de ajuda e de esperança.
Colocar todos os desejos, necessidades e lutas nas mãos do Senhor e esperar por Ele, esse é o deserto que é caminho de cura, libertação e salvação.
Isso implica que, diferentemente do deserto geográfico, que se caracteriza pelo isolamento, o deserto da alma acontece no contexto dos relacionamentos pessoais, pois é aí que somos chamados à renúncia do discipulado e do amor de Jesus.
A renúncia e auto-negação em relação aos outros, por causa deles e para o seu bem, dão substância e significado – uma terra da promessa – à travessia dos nossos desertos pessoais.
Em uma palavra, a revelação do deserto da alma como negar a si mesmo e renunciar aos próprios direitos nos leva à conclusão de que esse deserto é precisamente o caminho para seguir a Jesus, para ser discípulo dEle. É o próprio Mestre quem a ele nos conduz quando, por seu chamado, nos separa de tudo e de todos, até mesmo do que somos, para termos, sermos e nos relacionarmos exclusivamente com nEle e através dEle.
Ao fazer essa travessia do deserto para o qual somos encaminhados pelo chamado de Jesus para segui-lO, criamos um imenso vazio em nossas vidas que somente pode ser preenchido pela Presença imergidora (batizadora) do Espírito Santo.
Assim, andar no deserto e andar no Espírito nos conduzem no mesmo caminho singular e estreito: a trilha do discipulado de Jesus, com todo o seu sofrimento, tentações e exigência, mas também com sua promessa, esperança, poder e glória, que são superiores "além de toda comparação".
Fernando Sabóia Vieira
In "Veredas no Deserto", 1995.
Gostei do post. Finalmente entendi o verso de Mt 4:1, pois ainda não o havia entendido plenamente.
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