segunda-feira, 16 de março de 2020


A Oração do Reino

O Diálogo Reestabelecido

“Precisas de um templo para orar? Ora em ti mesmo. Sê um templo de Deus e Ele ouvirá tuas orações.”
Santo Agostinho


                                                                     Brasília, em março de 2020,AD.

           

Queridos companheiros de jornada em busca da vida interior,


O diálogo interrompido no Jardim do Éden, quando o Senhor falava livremente com Adão e Eva no frescor das tardes, foi retomado com a manifestação da Palavra que se fez carne e habitou entre nós. Contudo, os anos de silêncio e de comunicação distorcida fizeram com que os homens não mais soubessem como participar dessas conversas com o Pai de maneira a permitir o fluir do Verbo Eterno, da palavra “viva e eficaz”, que nos revela, ilumina, transforma.
Assim foi que os discípulos de Jesus, vendo a intensidade e qualidade de Sua comunhão com o Pai, logo lhe pediram: “Senhor, ensina-nos a orar“. (Lucas 11:2-4). Não se tratava de buscar instruções sobre uma prática religiosa. Como judeus, eles sabiam muito bem recitar as orações dos ritos da lei mosaica. Mas percebiam que na vida do Filho do Homem essa comunicação com o Pai tinha uma dimensão muito diferente. Era uma conversa contínua, poderosa, reveladora, capaz de fazer fluir a Presença e a vontade de Deus.
“Senhor, ensina-nos a orar”. A instrução de Jesus sobre oração no Sermão do Monte não tinha o propósito de transmitir um método ou um novo ritual litúrgico. Muito ao contrário. Todo o contexto de suas palavras aponta para a nova dimensão de relacionamento entre Deus e os homens proporcionada pela chegada do Reino, especialmente com a recuperação da condição de filiação divina perdida com a Queda. Diversas vezes o Senhor se refere ao acesso que os discípulos têm agora ao Pai celestial, e destaca a repercussão desse status em tudo o que somos, vivemos, fazemos, sentimos, desejamos, falamos, experimentamos – “perfeitos, como perfeito é o Pai celeste”.



O AMBIENTE DA ORAÇÃO


            “Fecha a porta do teu quarto”, diz Jesus. A oração, como uma conversa íntima, precisa ser resguardada da ostentação piedosa para que não se torne uma prática religiosa vazia. Quando vamos a orar, vamos em busca de relacionamento pessoal, de contato de alma, de aproximação de coração. Não podemos fazer disso uma obra espiritual por meio da qual buscamos algum mérito diante dos homens ou mesmo de Deus. Como escreveu Bonhoeffer, é necessário que pratiquemos a justiça do Reino escondidos até de nós mesmos!
            Jesus nos ensina a orar ao Pai “que está em secreto” e que “vê em secreto”. Deus só pode ser encontrado intimamente “em secreto”, onde Ele está, porque a Presença d’Ele que buscamos não é geográfica (nesse sentido Ele está sempre em toda parte!), mas pessoal e comunicativa. Da mesma maneira, é claro que Deus vê todas as coisas, mas Ele recompensa de modo especial as que Ele vê “em secreto”.
            E qual seria essa recompensa que podemos esperar dessas nossas conversas particulares com o Pai? Lembro-me aqui de Bernard de Clairvaux, quando diz que Deus tem bênçãos e graças ricas e variadas para dar aos que O buscam, mas a dádiva mais preciosa que Ele quer nos oferecer é Ele mesmo! Esse, penso, é o bem inestimável da intimidade com o Senhor: estar com Ele, estar n’Ele, ser preenchido e atravessado pela Presença, conhecer e pertencer a Ele. Nas palavras do Apóstolo, “ser encontrado nele”!


O ESPÍRITO DA ORAÇÃO

Os gentios também tinham seus rituais religiosos e oravam aos seus deuses. Contudo, como não conheciam a Deus como Pai, oravam – e ainda oram - com ansiedade, cheio de conflitos, tentando convencer a divindade a quem dirigem suas petições fazendo da oração uma prática piedosa, sacrificial, ou esotérica, repetindo exaustivamente fórmulas e palavras místicas.
A oração não deve ser apenas uma descarga emocional, uma experiência de conforto psicológico, emocional ou religioso. A oração é uma experiência espiritual que atinge todo o nosso ser – razão, emoção, vontade. Ela só é possível porque Deus deseja esse encontro e a ele nos convida, e é Ele mesmo, por meio de Seu Espírito atuando em nosso ser, quem conduz o diálogo.


“Não façam como os gentios”, diz Jesus. “Vocês têm um Pai nos céus”. Deus é nosso Pai. Em Seu Ser infinito, Ele reúne amor, autoridade e santidade. Nas conversas conosco, Ele quer revelar Seu caráter e Seu propósito. Nele temos nossa verdadeira identidade, nossa origem e nosso destino.
Como Ele conhece nossas necessidades, que podem, aliás, ser muito diferentes dos nossos desejos, nos achegamos a Ele sem ansiedades e sem conflitos. Ao contrário, acalmamos nossa alma com a certeza de que o Pai nos conhece, nos protege e nos supre. Quando colocamos nossas petições diante d’Ele é para expressar nossa confiança e nosso desejo de dependermos d’Ele, e para que Ele se manifeste concretamente em nossas vidas.
Uma vez que a oração é uma experiência espiritual é não psicológica ou emocional, ela bem pode ser uma passagem pelo deserto, uma travessia de lugares áridos e desérticos, quer por conta de situações e circunstâncias da vida, quer por condições da nossa alma. Mas especialmente em tais ocasiões é que a oração se revela poderosa e transformadora.


PREPARAÇÃO

Como encontro pessoal e íntimo, a oração requer um ambiente adequado, tanto exterior quanto interior. Ele é uma experiência de comunicação, de diálogo, de Presença de Deus, como acontecia com Adão e Eva ao frescor das tardes.
“Fecha a porta do teu quarto” significa não apenas a busca de um lugar de solitude, longe dos olhares das pessoas e das perturbações do mundo exterior, mas também um convite ao recolhimento. Pouco adiantará fecharmos a porta do quarto se trouxermos para dentro do recinto, reverberando e acolhidos na nossa alma, todos os barulhos, ruídos, conflitos, discussões, desejos, conceitos, emoções e pensamentos que tumultuam nosso cotidiano.
Quando vamos nos encontrar com alguém a quem especialmente amamos, concentramos nossa atenção e cuidado na antecipação desse momento, e nos enchemos de expectativa e de pensamentos sobre a pessoa querida, nos lembrando de suas características, virtudes e qualidades e de quão preciosa ela é para nós. Do mesmo modo precisamos nos preparar para essas conversas com o Pai.
Um dos fundamentos da oração do Reino é a certeza de que Deus já sabe. Não temos que convencê-lo de nada. Ao contrário. Muitas vezes, nós é quem não sabemos quem somos e do que necessitamos. Mas nos aproximamos d’Ele com confiança porque Ele mesmo, nosso Pai, nos convida para essa conversa.
Lembrando, Richard Foster, orar é mudar. Se não estivemos dispostos a mudar, não iremos muito longe na experiência da oração. Não se pode estar na Presença de Deus sem ser transformado, sem refletir no rosto o brilho de Sua glória.


A ORAÇÃO DO SENHOR

            Ao meditarmos sobre a oração que Jesus nos ensinou, é útil lembrar que ela nos ajuda a compreender alguns eixos fundamentais que devem orientar nossa vida: o da verticalidade, ou seja, a atenção às “coisas do alto”; o da integralidade, que nos indica que o Senhor quer atingir nossa pessoa inteira; e o da simplicidade, que nos leva a discernir o que é essencial e necessário do que é superficial e supérfluo.
            Propomos, a seguir, um breve roteiro de meditação no Pai Nosso. É muito importante que o espírito dessa oração nos acompanhe em tudo o que fazemos e dizemos, e em todas as nossas petições e súplicas ao Senhor.
           

a)       “Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome”

Lembramos aqui nossa condição de filhos, de pertencentes à família de Deus. Essa é nossa identidade individual e também coletiva.

Deus é transcendente, infinito, habita “o alto e santo lugar”, todo perfeito e todo poderoso. É a Ele, o Criador de todas as coisas, a quem nos dirigimos.

O seu nome é santo, separado de todo mal. É esse nome que levamos, como filhos, e esse nome deve ser sempre honrado e preservado. Ele é o nosso amor, nosso temor e nosso Deus.         

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b)      “Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como nos céus”

Muitas vezes oramos buscando ver a realização do nosso próprio reino, dos nossos conceitos e ideias. Queremos prevalecer sobre os demais e ver as coisas sendo feitas à nossa maneira. Queremos impor nossas preferências, resolver nossos conflitos e ansiedades à nossa maneira.

Quantas vezes nossa oração não está repleta das nossas vontades? Não é errado expressarmos a Deus o que queremos, desde que estejamos sempre dizendo a Ele que deve prevalecer a vontade d’Ele, e não a nossa, toda as vezes em que elas estiverem em conflito.
Mas para isso é necessário que busquemos e peçamos que Ele nos revele a Sua vontade e que Ele também revele a verdadeira condição do nosso coração.

Se pedimos que o Reino de Deus venha sobre nós, precisamos começar nos dispondo a obedecer a vontade do Rei, sem o que nossa oração se tornará vazia e hipócrita.

Que o Seu Reino venha e Sua vontade seja feita na minha vida inteira!
Venha o seu Reino nos meus pensamentos, nos meus desejos, nas minhas vontades, nas minhas ideias, nos meus relacionamentos, nas minhas palavras, nas minhas ações.

Quando peço que seja feita a Sua vontade e medito sobre qual a vontade de Deus para cada situação e para cada disposição pessoal minha, sou imediatamente confrontado pela revelação de quanto sou mal, mesquinho, malicioso, egoísta, soberbo e confuso. Mas continuo orando, agora com mais intensidade e necessidade: seja feita, Senhor a tua vontade, e não a minha, venha o Teu Reino, Jesus, e não o meu!

Venha, Senhor, o Teu Reino e seja feita a Tua vontade neste meu dia, nesta minha noite, em cada momento de minha vida!

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c)      “O pão nosso de cada dia, dai-nos hoje”

É do Senhor que provém nosso sustento. Não do esforço do nosso trabalho ou do favor de qualquer pessoa. N’Ele depositamos nossa confiança. Dependemos d’Ele, mas como filhos dependem do Pai.

Pedir o pão “de cada dia” expressa nossa contínua necessidade da provisão de Deus. Renunciamos à busca de independência e de suficiência em nós mesmos ou em recursos materiais. Nos lembramos de que se o Senhor não nos abençoar inútil será nosso trabalho e nossas fadigas.

Ao orarmos dessa maneira também somos chamados a refletir sobre o que de fato nos é necessário e separar nosso coração das muitas coisas que por vezes desejamos e buscamos, mas que não nos são essenciais ou nem mesmo importantes.

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d)     “E perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”

Necessitamos diariamente de perdão tanto quanto de pão. Sem perdão nossa alma definha, vítima de sua própria contaminação.

Como filhos da Luz, precisamos andar na luz, como Ele na luz está. 

O Senhor disse que são os limpos de coração que verão a Deus.

Também somos chamados a nos comprometermos em perdoar os que nos ofendem, uma vez que o perdão é o canal pelo qual flui a graça de Deus, da qual tanto necessitamos. Jesus reforçou esse ponto dizendo enfaticamente que se não perdoamos os que nos causam danos também não seremos perdoados.

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e)      “Não nos deixeis cair em tentação”.

As tentações nos sobrevirão e não podemos ter a pretensão de a elas sermos capazes de resistir sozinhos. Precisamos da graça e do poder do Espírito para discernir os perigos do caminho, para escrutinar o nosso coração e para nos comunicar virtude e santidade.

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f)       “Mas livrai-nos do mal”

Somos frágeis diante do mal que assola este mundo caído. Ações de pessoas escravas do pecado, enfermidades, carestias, intempéries, guerras, injustiças, opressões.

O “mal”, nessas palavras de Jesus, também significa o Maligno, o inimigo de nossa alma. Há poderes espirituais tenebrosos em ação neste mundo e precisamos pedir diariamente ao Senhor livramento.

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g)     “Pois vosso é o reino, o poder e a glória para sempre”.

Ao final da oração voltamos ao início, e declaramos que a Ele pertencem o reino, o poder e a glória para sempre. E nos incluímos nessa adoração e reconhecemos que também nós pertencemos a Ele, que somos parte desse Reino, que sustentados por esse poder e que vivemos para Sua exclusiva glória.

            Finalmente, irmãos e irmãs, essa não é uma oração para ser simplesmente aprendida e repetida. Deve ser objeto de nossa meditação cotidiana e deve ser a inspiração e o espírito de todas as nossas conversas com o Pai.

            Mais ainda, deve ser o estilo de vida que vivemos e que buscamos viver a cada dia, em simplicidade, integridade e comunhão com nosso Pai que está nos céus e que também está em secreto, que nos vê na nossa intimidade e que nos abençoa com Sua Presença.

            Que a suficiente graça de Jesus seja com todos vocês.

            Seu conservo,

            Fernando Saboia Vieira



           



           

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