terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Santificação da Vida Comum


Brasília, DF, em janeiro de 2020, AD.


Caros companheiros de jornada em busca da vida interior,

Compartilho alguns pensamentos sobre a necessidade de vivermos a Presença de Deus momento após momento, em nossa vida comum.


Santificação da Vida Comum


- Colossenses 3:17

         “E tudo o que fizerem, seja em palavra, seja em ação, façam em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai.”

- Colossenses 3:23-24

         “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor e não para as pessoas, sabendo que receberão do Senhor a recompensa da herança. É a Cristo, o Senhor, que vocês estão servido.”

- 1ª aos Coríntios 16:14

         “Façam todas as coisas com amor.”


APROXIMAÇÃO


Como filhos de Deus, somos chamados a viver uma vida completa, santa e plena de sentido, valor e significado. Essa é a essência do seu propósito para nós, sermos um povo e família que reflete e vive o amor do Pai.
Ocorre que muitas vezes pensamos que isso significa viver e fazer grandes e maravilhosas coisas para Deus. Ouvimos muitas histórias de sucesso pessoal e ministerial medido em números de exposição midiática e de resultados financeiros, relatos de “start up” espirituais, de movimentos impactantes, lendas e mitos de homens e mulheres, fortes, empreendedores, motivadores, quase sobre-humanos.
Assim, criamos expectativas e alimentamos sonhos tremendos sobre nós mesmos, sobre nossas famílias, profissões, ministérios. Imaginamos e buscamos viver vidas perfeitas, assumimos uma visão desencarnada da espiritualidade que nos afasta da vida humana que fomos de fato chamados a viver a cada dia de nossa jornada.
Esquecemos que, com a vinda de Jesus, Deus assumiu a forma e o viver humanos, e não os homens foram chamados a viver como deuses!
Embalados pelos ventos da modernidade que prometem sucesso e realização a todos por meio de métodos tidos como “científicos” (em moda, no momento, a tal neurociência e o paradigma do empreendedor individual de sucesso), pelos quais criam ilusões emocionais sobre si mesmos e sobre a vida real, muitos cristãos passam a fazer “planejamentos estratégicos” com suas vidas, tentam se tornar empreendedores do próprio sucesso.
Estabelecem alvos elevados para suas realizações pessoais e mesmo espirituais, elegem prioridades, traçam propósitos, metas, planos e projetos, escolhem indicadores de eficiência, e aderem aos novos gurus e profetas da religião humanista deste século: os tais “coachs”, “influencers”, blogueiros, famosos, subcelebridades etc., gospeis ou incircuncisos, que impressionam com seus gritos e frases de efeito, seus truques motivacionais, suas estrambóticas peripécias cênicas, suas performances extravagantes nas redes sociais, suas palavras impactantes, frases, mantras e jargões hipnóticos e, principalmente, com suas piruetas e contorcionismos conceituais.
Oferecem com notável descaramento uma mescla de psicologia popular em linguagem neurológica, pseudocientífica, misticismo frouxo de várias tonalidades, versões enviesadas de cristianismo e de outras religiões, ufanismo, hedonismo, materialismo, egocentrismo e tudo o mais o que configura a mentalidade secular humanista. Os únicos que, de fato, ficam ricos e prosperam com o “método poderoso” que anunciam, curiosamente, são eles mesmos, e os que se tornam seus discípulos, franqueados ou piramidais!
Todavia, ao importar os métodos do mundo, fatalmente importamos também, às vezes sem sequer nos darmos conta disso, seus conceitos fundantes: sua visão do homem, da vida, do sentido da existência, dos valores. Métodos nunca são neutros. São fundados em crenças (científicas, ideológicas ou espirituais) e servem para alcançar alvos coerentes com essas convicções essenciais. Alvos espirituais só são alcançáveis por meios espirituais, assim será o fruto como o for a semente.
Infelizmente, nesse “combo”, as pessoas também inevitavelmente importam os efeitos colaterais dessa pretensa panaceia e as consequências inevitáveis dessa ilusão: a ansiedade, a frustração, o vazio, o medo, as dúvidas, a tristeza e a depressão, uma vez que, ao fim de tudo, não há como escapar da finitude da vida e da futilidade de quaisquer conquistas que se tornarão simplesmente nada com a morte.
Mas permanece a questão colocada de início: o que significa viver essa vida plena e completa em Deus e como podemos caminhar nessa direção? De que maneira a vida com o Senhor pode ser vivida em histórias humanas comuns, por pessoas que precisam trabalhar, cuidar da família, enfrentar as dificuldades econômicas e sociais, as enfermidades e adversidades da existência e mais os desafios da espiritualidade, da santidade, de ser discípulo, testemunhar a fé, anunciar o Reino, fazer discípulos e edificar a Igreja?
É nesse contexto que propomos aqui uma abordagem mais integrada e vivencial da espiritualidade, que não seccione a vida em vida espiritual e vida natural, mas que possa nos dar uma perspectiva de Deus, de Sua Presença e propósito em tudo o que fazermos a cada hora do dia que temos que viver concretamente, em nossa existência normal, em nossas atividades ordinárias. Por isso escolhemos para essa reflexão o título de “Santificação da Vida Comum”.


A SANTIFICAÇÃO DA VIDA COMUM

        
Santificar a vida comum significa ver o sentido eterno das coisas efêmeras. Não necessariamente viver grandes experiências, mas dar sentido e valor a cada uma, especialmente às mais comuns, que constituem nossa vida real cotidiana. A vida que de fato nós vivemos, não aquela com que sonhamos, com que nos iludimos.
A essência do sentimento de vazio e da ansiedade que adoece o homem moderno está na perda do sentido, do valor e do significado das lutas da vida comum que somos obrigados a viver. Suas raízes mais profundas estão na própria natureza humana: criados para uma vida com Deus, com os irmãos e conosco mesmos, mas condenados a uma vida exilada de Deus, dos outros e de nós mesmos.
A proposta de Jesus contra a ansiedade no Sermão do Monte aponta para as preocupações da vida comum: o alimento, o vestuário, o dia de amanhã. São essas inquietações que tiram nosso olhar do cuidado do Pai e levam nossa alma a vagar em lugares áridos do medo, da frustração, da insegurança, do vazio existencial.
No livro do Eclesiastes encontramos um testemunho contundente sobre esse vazio de valor e de significado que envolve toda a existência e todas as atividades e conquistas humanas “debaixo do sol” – nada tem sentido eterno, a vida é uma imensa ironia. O Pregador narra sua busca vã por sentido nas riquezas, nos prazeres e até mesmo na sabedoria, experimentando, ao final, o ceticismo, a tristeza e o desânimo que tanto caracterizam os homens modernos.
Vemos que as raízes mais profundas da ansiedade humana se revelam nessas tentativas de preencher o vazio existencial diante do inevitável desfecho da morte. Fazendo ou não fazendo, permanecemos inquietos e ansiosos quanto aos frutos de nossas escolhas, os riscos e custos envolvidos nos negócios da vida, o caos da existência, as opressões e dificuldades, a insegurança do dia de amanhã.
O fato é que não podemos tornar nossa vida – aquela que, de fato, nós vivemos, não aquela angelical em busca da qual muitas vezes nos desgastamos e nos iludimos – algo como uma odisseia, uma olimpíada, um supercampeonato, um “master chef”, algum tipo de “reality show” que, na verdade, tem muito de “show” e nada de “reality”!
Temos uma vida comum para viver, e ela nos ocupará a maior parte do nosso tempo e é ela que determinará o sentido e o valor de nossa existência, momento após momento, e nos dará plenitude de espírito, alma e corpo, a despeito de quaisquer projetos grandiosos em que eventualmente possamos estar envolvidos.
A cada dia, vamos acordar de manhã, tomar banho, fazer o café, cuidar da casa, dos filhos, ir à rua, trabalhar, ir ao mercado, pagar as contas, lidar com o caos da vida, enfrentar as dificuldades, a carestia, os perigos. Vamos nos relacionar com pessoas, boas ou nem tanto, sob o sol e a chuva, compartilhando os espaços, o ar, a água, a cidade, o país, o planeta.
         Podemos ter pelo menos duas maneiras negativas de considerar essa vida comum: uma, tê-la como um incômodo e uma interferência nos nossos planos e sonhos de vivermos uma vida plena e feliz, repleta de intensas experiências pessoais, espirituais, emocionais etc.; outra, podemos nos perder nas tarefas, rotinas e obrigações impostas por essa realidade e vivê-la alienadamente, assumindo sua falta de sentido.
         Os textos bíblicos citados ao início nos chamam, todavia, a algo muitíssimo diferente. Eles nos exortam a darmos sentido, valor e significado espiritual e eterno a cada ato, momento, gesto, tarefa e experiência da vida comum, momento após momento.
É em nossa vida cotidiana, nas escolhas que fazermos e em nossa disposição de coração em cada situação que tornamos concreta nossa consagração ao Senhor, nosso reconhecimento do Seu governo sobre nós, nossa gratidão e nosso amor a Ele e às pessoas a quem Ele ama.
Não é “espiritualizar tudo” no sentido de uma generalização religiosa que retira toda a substância concreta dessa expressão e produz novamente o vazio, numa desconexão com a existência encarnada que temos que viver, mas, sim, santificar tudo a Ele, compreendendo que esse tudo que deve ser feito “em nome do Senhor”, “de todo o coração”, “para Ele” e “com amor” significa cada ato, cada momento, cada ação, cada parte do nosso ser, sentir e agir.
         Vivemos apenas um momento e uma experiência de cada vez. Nossos olhos só focam um ponto e nosso pensamento só pode se concentrar em uma ideia de cada vez. É nessa particularidade que vivemos e pensamos concretamente e é nela que devemos expressar nossa espiritualidade, momento após momento. É nessa atenção recolhida a cada tarefa que está diante de nós que encontramos a comunhão contínua com o Pai e a percepção de sua constante Presença.
         A multifuncionalidade tão valorizada na sociedade moderna é desumanizante. Exila a alma, faz com que ela esteja sempre a vagar, a se dispersar e a se gastar por lugares distantes, onde consome todas as suas energias vitais. Nunca atenta ao presente, àquilo que é chamada a viver, fazer, suportar, experimentar momento após momento.
         Um foco de visão, de pensamento, de sentimento, de atenção e de amor de cada vez. É essa atitude que nos integra e que pode tornar o ideal real. Alguém já disse que é muito mais fácil amar a humanidade do que amar o próximo: a humanidade é uma abstração, um conceito; o próximo é concreto, não idealizado. Não se pode hoje reviver o passado nem antecipar o dia de amanhã. Apenas temos para viver o dia que se chama Hoje.
         Os nossos projeto e sonhos mais caros precisam ser construídos a cada dia: cada aula do curso até a formatura, cada dia de trabalho para cumprir uma carreira, cada interação com os filhos para formá-los, cada momento com as pessoas para amá-las, cada respirar para adorar a Deus e para experimentar o dom precioso da vida e a graça que Ele concede e torna concreta instante após instante.
         Somos chamados para amar e servir a Deus a cada dia em cada atividade ou tarefa, mesmo e principalmente aquelas da nossa vida comum. Não somos chamados a viver como anjos, mas como seres humanos. As parábolas de Jesus quase sempre se referiam a situações vividas pelas pessoas no seu cotidiano, no trabalho, em casa, na comunidade. É nelas que o Reino deve ser manifestado.
         O importante é não nos dividirmos, mas nos integrarmos. Não fazer e orar ao mesmo tempo, mas tornar, cada um por sua vez, a tarefa oração e a oração serviço. Não é estar aqui como o pensamento e atenção em outro lugar, mas viver inteiramente o momento e a experiência que o Senhor nos proporciona, seja no trabalho, seja nos cuidados comuns da vida, seja nas conversas triviais da convivência humana.
         Não tente fazer o café e orar ao mesmo tempo. Possivelmente, não será um bom café nem uma oração adequada. Se a você cabe a tarefa de fazer o café você deve se esmerar nisso e confiar que Deus está naquele momento cuidado dos anseios do seu coração! Faça o café de todo o coração, com amor, como para o Senhor! Essa é sua oração e serviço num só gesto.


PRINCÍPIOS DE SANTIFICAÇÃO DA VIDA COMUM


·         Tudo e cada coisa em nome de Jesus, dando por Ele graças a Deus (Colossenses 3:17).
·         Tudo e cada coisa de todo o coração, como para Ele. (Colossenses 3:23-24).
·         Tudo e cada coisa com amor (1ª aos Coríntios 16:14).

Esses princípios tornados práticas nos mantêm na Presença de Deus, dos outros, de nós mesmos e nos dispõem ao tão necessário recolhimento que nos leva à paz, à alegria e ao contentamento.
Eles também tratam imensamente nosso caráter, forjando humildade, nos dispondo ao serviço, levando-nos à dependência de Deus.
Vivendo por eles encontramos o sentido e o propósito do nosso viver mesmo em meio às lutas e apesar do caos das circunstâncias.

Caros, antes de mudarmos nossas agendas, vamos buscar mudar nosso coração.

Que a suficiente e poderosa graça de Jesus seja com o espírito de vocês.

Brasília, janeiro/fevereiro de 2020, AD.



Fernando Saboia Vieira


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