Estou me aposentando. Segue a mensagem que escrevi aos colegas.
Brasília, em 30 de abril de 2019.
Colegas,
Aposento-me.
O mundo que existia quando em 1981, aos 20 anos de idade, subi a rampa do Anexo I da Câmara dos Deputados pela primeira vez, para tomar posse no cargo de Assistente Legislativo, era muito diferente daquele que encontro ao descê-la agora, por último, aos 58.
E eu também!
As palmeiras imperiais eram jovens e havia cisnes negros – presentes da Rainha da Inglaterra, ao que se dizia - a nadar no espelho d’água. O horizonte era limpo, verde e azul, mas um silêncio que eu não entendia muito bem dominava a Esplanada.
Minha geração testemunhou, entre dois séculos, um período de transformação talvez inédito na história humana, pela velocidade dos processos e pela qualidade das mudanças. Vivi isso muito intensamente aqui na Câmara dos Deputados, com o final do regime militar, a redemocratização, a Assembleia Nacional Constituinte, a ressurreição do Parlamento brasileiro, a refundação política e administrativa da Casa para atender aos novos tempos e demandas advindos das reconfigurações do mundo e da sociedade na chamada modernidade. Sei que fui privilegiado por ter tido a oportunidade dessa experiência profissional e pessoal.
Hoje, as palmeiras estão adultas, não há mais cisnes no espelho d’água e no horizonte sempre fantástico de Brasília se vê menos natureza e mais cidade. E o silêncio abandonou a Esplanada. O desafio agora é distinguir as vozes que nela reverberam, seu sentido e razão. Elas são ecos do passado, vibrações do presente e utopias do futuro.
Despeço-me.
Muito feliz e agradecido a Deus por tudo o que pude viver, aprender, testemunhar e tomar parte ao longo desses anos. E, de modo especial, pelas pessoas que encontrei e com quem me relacionei. Ao final da jornada, percebemos que importa mais a maneira como fazemos as coisas do que as tarefas em si mesmo consideradas. Eu sempre encontrei nos lugares por onde passei na Câmara colegas, parceiros, instrutores, conselheiros, cooperadores, amigos. Fizemos mais do que bons trabalhos, construímo-nos como profissionais e como seres humanos.
Gosto de Thomas Merton: “O homem é um ser livre que está sempre se transformando em si mesmo. Mas essa mudança nunca é neutra: estamos a cada escolha nos tornando melhores ou piores”. Meus caros, que Deus ilumine e dirija suas escolhas ao longo da jornada, na profissão e na vida.
Deixo, assim, meu abraço e minha gratidão aos colegas do Departamento de Administração, do Departamento de Pessoal, da Consultoria Legislativa, do Cefor e da Secretaria-Geral da Mesa, onde trabalhei, e a todos os dos demais órgãos com quem tive relacionamento pessoal e profissional próximos.
Faço uma menção especial aos que dividiram comigo o espaço transformador da sala de aula, como gestores, educadores, professores, colaboradores, colegas e alunos. Acredito que na coragem e na generosidade de construir coletivamente e compartilhar o conhecimento está o caminho para a transformação das pessoas, sem o que nenhum avanço é possível ou terá valor nas construções humanas. Nos momentos mais difíceis e de maior desalento é aí que nosso esforço deve se concentrar, pois só assim haverá esperança de dias melhores.
Finalmente, não posso deixar de destacar os amigos e amigas da Secretaria-Geral da Mesa que compartilharam comigo mais de 25 anos de caminhada, às vezes turbulenta, quase sempre intensa e desafiadora. Aos mais antigos, agradeço a lealdade, a parceria e a cooperação. Aos mais novos preciso expressar meu emocionado constrangimento com o carinho e a honra imerecida com que me trataram nesses últimos anos de carreira. Vou sentir muita falta das conversas, dos debates, das discussões, dos novos olhares de vocês aos antigos dilemas do Parlamento. Espero continuar, de alguma forma, a participar disso!
Vamos continuar nos encontrando, sem dúvida.
Muito obrigado a todos vocês.
Soli Deo Gloria!
Fernando
PS: Um pouco de poesia, nesses tempos inóspitos e confusos.
Ciclos da vida e do tempo
I
Um pouco de solenidade
Nos gestos comuns da manhã:
Escovar os dentes
Sentir a água morna do banho
O primeiro toque ameno do dia
O ritual do nó da gravata
A primeira lembrança da lida
Demorar um pouco mais
Ao olhar e ver pela janela
O sol que se levanta
Iluminando a chuva que cai
Fazendo brilhar – e desaparecer –
O orvalho da madrugada
Como inspiração de viver
Os ciclos da eternidade
Um pouco de suavidade
Nas primeiras palavras
Um certo respeito ao silêncio
Como busca de uma atenção
Mais clara, mais admirada
À consciência da Presença
II
Meus passos andam sozinhos
Nos salões e túneis
Por onde o tempo não caminha
Embora nos surpreenda
Com inesperados percalços
E rostos jovens
E rostos envelhecidos
Salão Negro, solene
De festas e velórios
Salão Branco, funcional
Com a inexplicável chapelaria
Sem chapéus – sem cabeças? –
Salão Verde, desgastado, encardido, renovado Com sua arte invisível, incompreendida Perdida em meio a tantos perdidos passos
Corredores onde correm o bem e o mal
Profecia e alucinação
Demônios federais, estaduais e municipais E um ou outro anjo desgarrado Numa missão impossível
III
Na vida
É necessária uma certa liturgia
Para que nem tudo seja profanado
Na necessária eficiência da rotina
Menos humanos seremos
Se não nos tornarmos mais divinos
Fernando Sabóia Vieira
De “Ciclos das Terras dos Mundos e dos Sentimentos
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