quarta-feira, 23 de junho de 2010

UM POUCO DE DIETRICH BONHOEFFER (1906-1945), 2º Texto

Caros,

"Discipulado" e "Vida em Comunhão", de Dietrich Bonhoeffer, são dois dos livros que mais marcaram minha vida. Considero esse texto sobre a graça insuperável.

Que a graça "preciosa" de Jesus seja com todos.

Fernando

A Graça Preciosa


A graça barata é inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa.
Graça barata é graça como refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graça como inesgotável tesouro da Igreja, distribuído diariamente com mãos prontas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo.
A essência da graça seria, ao que pensamos, a conta ter sido liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o preço pago, são também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipação. Que seria graça, se não fosse barata?
Graça barata significa a graça como doutrina, como princípio, como sistema; significa perdão dos pecados como verdade geral, significa o amor de Deus como conceito cristão de Deus. Quem lhe responde com um sim já tem o perdão dos pecados. A Igreja participa da graça já pelo simples fato de ter essa doutrina da graça. Nesta Igreja o mundo encontra fácil cobertura para os seus pecados dos quais não se arrepende e não deseja verdadeiramente se libertar. A graça barata é, por isso, uma negação da Palavra viva de Deus, negação da encarnação do Verbo de Deus.
Graça barata significa justificação dos pecados, e não do pecador. Como a graça faz tudo sozinha, tudo pode também permanecer com dantes. “A minha força nada faz”. O mundo continua sendo mundo, e nós continuamos sendo pecadores “mesmo na vida mais dedicada”. Viva, pois, o crente como vive o mundo, coloque-se, em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e não se atreva – sob pena de ser acusado de heresia – a ter, sob a graça, uma vida diferente da que tinha sob o pecado! Que se guarde de se encolerizar contra a graça, de envergonhar essa graça grande e barata, e de instituir um novo culto do literalismo, tentando ter uma vida de obediência de acordo com os mandamentos de Jesus Cristo!
O mundo é salvo pela graça e, por isso, - por amor da seriedade dessa graça, para que não haja resistência a essa graça insubstituível! – que o crente viva como o resto do mundo! É certo que ele gostaria de realizar algo extraordinário e constitui, sem dúvida, um grande sacrifício não poder fazê-lo, mas ter que viver mundanamente. Contudo, há que fazer esse sacrifício, há que renunciar a uma vida que se distinga da do mundo. Tem que deixar a graça ser realmente graça, para não destruir ao mundo a fé nessa graça barata. Todavia, que o crente, no seu mundanismo, nessa renúncia necessária que tem de fazer por amor do mundo – não, por amor da graça! – continue consolado e seguro na posse dessa graça, que tudo opera sozinha! Por isso, que o crente não seja discípulo, antes se console com a graça!
Isto é graça barata como justificação do pecado, mas não justificação do pecador pronto à contrição, que abandona o pecado e se arrepende; não é o perdão que separa do pecado. A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios.
A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.

A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para a adquirir a qual o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o governo régio de Cristo, por amor do qual o homem arranca o olho que o escandaliza; o chamado de Jesus Cristo, ao ouvir do qual o discípulo larga as suas redes e o segue.
A graça preciosa é o evangelho que á que se procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater.
Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao homem, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por tê-lo sido para Deus, por ter custado a vida de seu Filho – “fostes comprados por preço” – e porque não pode ser barato para nós aquilo que para Deus custou caro. A graça é graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.
A graça preciosa é a graça considerada como santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo, não lançado aos cães; e é graça como palavra viva, a Palavra de Deus que ele próprio pronuncia de acordo com o seu beneplácito. Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como a palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a se sujeitar ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: “O meu jogo é suave e o meu fardo é leve” são expressão da graça.
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Houve, pois uma tripla intervenção da graça no caminho de Pedro, a mesma graça proclamada em três ocasiões diferentes; era, assim, de fato, a graça de Cristo e não a graça que Pedro atribuía a si próprio. Foi essa mesma graça de Cristo que venceu esse discípulo, levando-o a largar tudo por amor ao discipulado; foi ela que o impeliu a uma confissão blasfema aos ouvidos do mundo; foi ela que chamou o infiel Pedro à comunhão derradeira, a do martírio, pelo que lhe foram perdoados todos os pecados. A graça e discipulado permanecem indissoluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graça preciosa.

(Bonhoeffer, Dietrich, “Discipulado”, Sinodal, 2002)

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