sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Uma Jornada em Busca da Vida Interior - Prefácio

Companheiros de Jornada em Busca da Vida Interior,

        Tenho, finalmente, nos últimos anos, me aproximado de uma essência vital, de uma nova percepção de Deus, de uma nova experiência da espiritualidade. Mais expandida e mais simples, mais abrangente e mais focada, mais pessoal e mais integrada a tudo o que existe. Mais consciente de mim mesmo e ao mesmo tempo menos centrado em mim mesmo. Ser, existir e me expressar sempre em relação à Presença que tudo envolve e que habita dentro de mim. Ser integrado por ela, abrangido por ela, atravessado por ela, incluído, superado, transformado e, sobretudo, amado. Experimentar a suficiência da paternidade de Deus momento após momento, em cada instante de consciência, em cada tarefa, em cada conversa, em cada palavra. Orar e viver se tornam a mesma coisa. Palavra e silêncio se unem. Ação e quietude não se separam. A busca dessa vivência e espiritualidade se tornou mais intensa para mim e mais real. O Espírito tem me conduzido a ela e me instruído nela de diversas formas, se expressando por diferentes e surpreendentes fontes.
         Entre o final de 2016 e o início de 2017 vivi uma crise pessoal mais profunda do que podia esperar a essa altura da vida e já com tantos anos de caminhada com o Senhor. Foi intensamente íntima e solitária, foi extremamente dolorosa e obscura, foi desértica e árida e foi transformadora pelas expressões de graça e de verdade que me confrontaram e me consolaram. Quando cheguei à experiência de estar “vazio como quem foi esvaziado pela morte”, Ele me resgatou, tornou minha solidão em solitude, e me fez experimentar Seu amor e misericórdia de Pai. Me compreendi na minha miséria e na maravilha de Sua glória manifestada na minha vida. Encontrei o sentido, o contentamento, a completude e a alegria de minha identidade, de minha existência e de minha vocação.

         Também tenho aprendido a ver as pessoas de uma maneira diferente, a ler suas almas com outra linguagem, compreendê-las à luz da verdadeira luz. Tenho percebido a complexidade e profundidade de seus dramas, dores e enganos, a desconcertante simplicidade das soluções suficientes e necessárias para restaurá-las e a grande dificuldade que elas podem ter em encontrar esse centro vital, essa fonte interior de onde jorram os rios de água vida, esse tabernáculo do coração quebrantado, que é a morada favorita do Deus Altíssimo, e em aí permanecer e receber o poder da vida.
         Vivi, por anos demais, à margem dessa experiência da consciência constante da Presença de Deus e da Realidade espiritual que envolve todas as coisas, com uma fé racionalizada, estreitada, covarde e o coração cheio de sentimentos conflituosos. Sempre que não estamos recolhidos e alimentados em uma união completa com Deus - intelectual, afetiva, ativa, contemplativa, de corpo, alma e espírito, em solitude e em comunhão com as pessoas - segmentamos a vida no tempo e nos trabalhos, fracionamos a alma nas circunstâncias, sonhos e dores, corrompemos o corpo com carências e excessos, encolhemos o espírito, limitamos o amor, condicionamos o perdão, retemos a misericórdia, nos tornamos menos humanos, menos reais e menos filhos do Pai.
         Quero compartilhar sobre isso e, embora as palavras me pareçam sempre muito inadequadas para expressar essas realidades, é tempo, creio, de trazer à luz os textos, meditações e poesias que escrevi ao longo de já mais de década e que registram, quanto a mim, as experiências, dramas, dores e alegrias de “Uma Jornada em Busca da Vida Interior”, se o Senhor assim permitir, pois esse caminho, embora muitas vezes pessoal e em solitude diante de Deus, não pode ser percorrido solitariamente e sem a ajuda dos companheiros que estão nessa mesma vereda. Que a suficiente graça de Jesus seja com todos.
         Brasília, em 26 de janeiro de 2018.

         Fernando Saboia Vieira

terça-feira, 23 de janeiro de 2018


Esperar em Deus
Andrew Murray

“Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa, porque dele vem a minha esperança” Salmos 62:5 (ARA)

         Uma questão solene nos ocorre: “O Deus que eu tenho é um Deus que é para mim acima de todas as circunstâncias, mais próximo de mim do que pode ser qualquer circunstância? ”. Irmão, você aprendeu a viver sua vida tendo Deus realmente com você a cada momento, de tal modo que nas circunstâncias mais difíceis Ele está sempre mais presente e mais próximo a você do que qualquer coisa à sua volta? Todo nosso conhecimento de Deus será de pouca valia para nós a menos que essa se torne uma pergunta para a qual temos resposta.
Qual seria a razão pela qual tantos filhos amados de Deus continuamente reclamam: “Minhas circunstâncias me separam de Deus; minhas provações, minhas tentações, meu caráter, meu temperamento, meus amigos, meus inimigos, qualquer coisa pode se colocar entre mim e meu Deus”? Deus não é capaz de se apoderar de tal forma que Ele esteja mais próximo de mim do qualquer outra coisa no mundo? Devem riqueza ou pobreza, alegria ou tristeza terem um poder sobre mim que meu Deus não tem? Não. Mas, por que, então, os filhos de Deus tão frequentemente se queixam que suas circunstâncias os separam d’Ele? Só há uma resposta: “Eles não conhecem seu Deus”. Se existe perturbação ou fraqueza na Igreja de Deus é por causa disso. Nós não conhecemos o Deus que temos. É por isso que, em complemento à promessa “Eu serei vosso Deus”, é tão frequentemente acrescentado “E vós sabereis que eu sou seu Deus”. Se eu souber disso, não por meio do ensino de homens, não por minha mente e imaginação, mas se eu souber disso pela evidência viva que Deus imprime no meu coração, então eu saberei que a presença divina de Deus é tão maravilhosa e meu Deus, Ele mesmo, tão belo e tão próximo que eu viverei todos os meus dias e anos como um vencedor por meio d’Aquele que me amou. Não é essa a vida de que necessitamos?
A pergunta retorna: Por que o povo de Deus não conhece seu Deus? E a resposta é essa: As pessoas aceitam receber qualquer coisa, exceto Deus – ministros, pregações, livros, orações, obras, esforços, qualquer expressão do fazer humano, em lugar de esperar, e esperar muito, se necessário, até que Deus revele-se a Si mesmo. Nenhum ensino que recebamos e nenhum esforço que façamos pode nos colocar na posse dessa abençoada luz de Deus, que é tudo em tudo para nossas almas. Mas ainda assim ela é atingível, está ao alcance, se Deus revelar-se a Si mesmo. Essa é a única coisa necessária. Em Deus, eu gostaria que cada um se perguntasse no coração se já disse e se repete a cada dia: “Eu quero mais de Deus. Não me fale apenas das belas verdades da Bíblia. Isso não pode me satisfazer. Eu quero Deus”. Na nossa vida cristã interior, na nossa vivência cristã, nas nossas igrejas, nos nossos encontros de oração, na nossa comunhão, tudo deve apontar para isso – que Deus tenha sempre o primeiro lugar, e se isso for reconhecido a Ele, ele tomará completa posse. Ah, se em nossas vidas como indivíduos todos os olhos estivessem em Deus, no Deus vivo e cada coração estivesse clamando “Minha alma tem sede de Deus”, que poder, que bênção e que presença do Deus eterno não nos seria revelada!
...
Agora, quero compartilhar uns poucos pensamentos sobre o modo pelo qual podemos conhecer Deus como esse Deus que é acima de todas as circunstâncias e que enche meu coração e minha vida cada dia. A coisa essencialmente necessária para isso é: eu preciso esperar em Deus. No texto original, assim como se lê em nossa versão alemã, está escrito “minha alma está silenciosa em Deus”. O que seria esse silêncio da alma diante de Deus? Seria uma alma consciente de sua pequenez, de sua ignorância, de seus preconceitos e dos seus perigos provenientes das paixões e de tudo o que é humano e pecaminoso. Uma alma consciente disso e que diz: “Eu quero que o Deus eterno venha e se apodere de mim e se apodere de mim de tal forma que eu possa ser guardada na palma de Sua mão por toda a minha vida; eu quero que Ele se apodere de mim de tal modo que a cada momento Ele opere tudo em mim”. Isso é inerente à própria natureza de nosso Deus. Ah, como devemos silenciar diante d’Ele e esperar n’Ele!
Permitam-me perguntar, com toda reverência: para que existe Deus? Deus existe para isso: para ser a luz e a vida da criação, a fonte e o poder de toda existência. As belas árvores, a grama verde, o sol brilhante, Deus os criou para que eles revelem Sua beleza, Sua sabedoria e Sua glória. Uma árvore centenária, quando foi plantada, Deus não deu a ela um estoque de vida para que ela usasse durante toda a sua existência. Não, na verdade Deus veste os lírios novamente a cada ano com sua beleza e frescor, todos os anos Deus reveste a árvore com sua folhagem e frutos. Cada dia e a cada hora é Deus quem mantém a vida de toda a natureza. E Deus nos criou para que sejamos vasos vazios nos quais ele possa trabalhar e expressar Sua beleza, Sua vontade, Seu amor, e a semelhança de Seu Filho bendito. É para isso que Deus existe, para operar poderosamente em nós incessantemente.
Quando eu começo a me apossar disso eu não mais penso que a verdadeira vida cristã seja uma grande impossibilidade ou algo não natural, mas eu posso dizer: “É a coisa mais natural na criação que Deus me tenha a cada momento, e que meu Deus seja mais próximo de mim do que tudo mais”. Pense por um momento o quão tolo é imaginar que eu não possa esperar que Deus esteja comigo a cada momento. Apenas olhe para o brilho do sol. Alguma vez, ao trabalhar, estudar ou ler um livro, você teve problemas com a luz que o sol dá? Alguma vez você disse: “Oh, como eu posso manter essa luz, como eu posso segurá-la firmemente, como eu posso ter certeza de vou continuar a tê-la para usar”? Você nunca pensou nisso. Deus providenciou para que o próprio sol forneça luz a você, e, sem sua participação, a luz vem sem restrições. E eu lhe pergunto: o que você acha? Deus providenciou para que a luz daquele sol que um dia se extinguirá venha até você, sem que você tenha consciência disso, e o abrigue poderosa e abençoadamente, e Deus não estará desejoso ou não será capaz de fazer que Sua luz e Sua presença brilhem através de você a fim de que você possa caminhar o dia todo com Deus mais próximo de você do que qualquer coisa natural? Louve a Deus pela certeza de que Ele pode fazer isso! E por que Ele não o faz? Por que o faz tão raramente e em tão pouca medida? Só há uma resposta: porque você não permite que Ele o faça. Você está tão ocupado e cheio de outras coisas, coisas religiosas, pregar e orar, estudar e trabalhar, tão ocupado com sua religião que você não dá a Deus o tempo para que Ele se faça conhecido, para que Ele entre e tome posse. Irmão, ouça a palavra do homem que conhecia Deus tão bem e comece a dizer: “Espera, oh minha alma, apenas em Deus”.
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Andrew Murray, “The Secret of the Master’s Indwelling”, capítulo III, excerto.
Tradução de Fernando Saboia Vieira




        

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Sobre Meditação - Thomas Merton

ORAÇÃO MENTAL

Thomas Merton

         A melhor coisa que os iniciantes na vida espiritual podem fazer, depois de terem de fato adquirido a disciplina de mente que lhes possibilite se concentrar num tema espiritual e ir além da superfície de seu significado e incorporá-lo a suas próprias vidas, é adquirir a agilidade e liberdade de mente que os ajude a encontrar luz e calor e ideias e amor a Deus em toda parte por onde forem e em tudo o que fizerem. As pessoas que só conseguem pensar em Deus durante certos períodos fixos do dia nunca irão muito longe na vida espiritual.
         Aprenda a meditar no papel. Desenhar e escrever são formas de meditação. Aprenda a contemplar obras de arte. Aprenda a orar nas ruas ou no campo. Aprenda a meditar não apenas quando tiver um livro nas mãos, mas também quando estiver esperando um ônibus ou indo num trem.
         A meditação é uma disciplina dupla, que tem uma dupla função. Em primeiro lugar, ela é capaz de lhe dar suficiente domínio de seu espírito, de sua memória e de sua vontade para torná-lo capaz de se concentrar e de se desviar das coisas exteriores, dos afazeres, das ocupações, dos pensamentos e das preocupações de sua existência temporal; e, em segundo lugar, o que é o verdadeiro objetivo da meditação, ela lhe ensina a se tornar consciente da Presença de Deus, e, principalmente, ela tende a levar você a um estado quase constante de amor e de cuidado por Deus, e de esperança nEle.
         Eis a que se propõe realmente a meditação: ensinar-nos como nos libertarmos das coisas criadas e das preocupações temporais, nas quais encontramos apenas inquietação e tristeza, e nos fazer entrar em contato consciente e amoroso com Deus, contato que nos dispõe a receber dEle o auxílio de que tanto necessitamos e a tributar a Deus o louvor, a honra, as ações de graça e o ar que agora somos felizes em Lhe oferecer.

Thomas Merton, “Seeds of Contemplation”, cap. 20.

         Tradução de Fernando Saboia Vieira.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Texto sobre Solitude - Merton

SOLITUDE
Thomas Merton
         Solitude física, silêncio exterior e verdadeiro recolhimento todos esses são moralmente necessários para qualquer um que queira ter uma vida contemplativa, mas, como tudo o mais na criação, eles não são nada mais do que meios para um fim, e se não entendermos que fim é esse faremos mal-uso dos meios.
         Assim, devemos nos lembrar de que procuramos a solitude para nela crescer em amor a Deus e aos homens. Não vamos ao deserto para escapar das pessoas, mas para aprender como encontrá-las: nós não as deixamos para não ter mais nada a ver com elas, mas para encontrar maneiras de lhes fazer mais bem. Mas esse é sempre um fim secundário. O fim único que inclui todos os outros é o amor de Deus.
         A verdadeira solitude não é algo exterior a você, não é a ausência de barulhos à sua volta: ela é um abismo que se abre no centro da sua alma. E o que criou esse abismo interior foi uma fome que não será jamais saciada por qualquer ser criado.
         O único caminho para encontrar solitude é pela fome e sede e tristeza e pobreza e desejo, o homem que encontrou a solitude é vazio, como se tivesse sido esvaziado pela morte. Ele foi além de todos os horizontes. Não há mais direções em que possa viajar. Esse é um país cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma. Você não o encontra viajando, mas permanecendo quieto.
         No entanto, é nessa solidão que as atividades mais profundas começam. É aqui que se descobre ato sem movimento, trabalho que é profundo repouso, visão na obscuridade, e, superando todo desejo, um preenchimento cujos limites se estendem ao infinito.
         Thomas Merton, “Seeds of Contemplation”, cap. 6.

Tradução de Fernando Saboia Vieira

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Sobre Humildade e Santidade - Andrew Murray

HUMILDADE E SANTIDADE
(Andrew Murray)

“povo que diz: Fica onde estás, não te chegues a mim, porque sou mais santo do que tu” Isaías 65:5

         Falamos de um movimento de Santidade nos nossos dias, e louvamos a Deus por isso. Ouvimos muito sobre pessoas em busca de santidade e mestres de santidade, de ensinos e encontros de santidade. As benditas verdades sobre santidade em Cristo e santidade pela fé estão sendo enfatizadas como nunca antes. O grande teste para saber se a santidade que professamos buscar ou ter alcançado é verdade e vida será a manifestação de uma crescente humildade por ela  produzida. Na criatura, a humildade é a única e indispensável condição capaz de permitir que a santidade de Deus nela habite e nela brilhe. Em Jesus, o Santo de Deus que nos santifica, uma humildade divina era o segredo da Sua vida e da Sua morte e da Sua exaltação. O teste infalível de nossa santidade será a humildade diante de Deus e dos homens que nos caracterize. Humildade é o desabrochar e a beleza da santidade.
         A principal marca de uma falsa santidade é a sua falta de humildade. Todo aquele que busca santidade precisa se precaver contra isso, para que não ocorrer que inconscientemente o que começou no espírito seja aperfeiçoado na carne, e o orgulho se infiltre onde sua presença é menos esperada. Dois homens foram ao templo para orar: um Fariseu e um publicano. Não existe lugar ou posição mais sagrada, mas o Fariseu pode entrar aí. O orgulho pode levantar sua cabeça até mesmo no templo de Deus, e fazer de Sua adoração o cenário de sua própria exaltação. Desde que Jesus expôs seu orgulho, o Fariseu colocou as vestes do publicano, e tanto aquele que confessa os mais profundos pecados quanto o mestre da mais elevada santidade devem vigiar. Precisamente quando nós estamos mais ansiosos para colocar nosso coração no templo de Deus podemos encontrar esses dois homens vindo para orar. E o publicano descobrirá que seu perigo não vem do Fariseu ao seu lado, que o despreza, mas do Fariseu que está dentro dele, que o elogia e o exalta. No templo de Deus, quando pensamos estar no lugar mais santo, na presença de Sua santidade, tenhamos cuidado com o orgulho. “Um dia os filhos de Deus vinha se apresentar perante o Senhor, e Satanás veio entre eles.”
         “Deus, eu te agradeço porque não sou como os demais homens, nem mesmo como esse publicano.” É naquilo que se constitui causa justa de agradecimento, nas próprias ações de graças que rendemos a Deus, até mesmo no próprio reconhecimento de que Deus fez tudo, é nisso que o ego encontra seu motivo de complacência. Sim, mesmo quando no templo apenas a linguagem da penitência e da confiança na misericórdia de Deus é ouvida, o Fariseu pode tomar a nota de louvor e, ao agradecer a Deus, estar a congratular-se consigo mesmo. O orgulho pode se vestir com os trajes do louvor e da penitência. Ainda que as palavras “eu não sou como os demais homens” sejam rejeitadas e condenadas, o seu espírito pode ser encontrado com demasiada frequência nos nossos sentimentos e linguagem em relação a nossos companheiros adoradores e aos nossos semelhantes. Se você quer saber se de fato é assim, apenas preste atenção na maneira como igrejas e cristãos frequentemente se referem uns aos outros. Quão pouco da mansidão e da gentileza de Jesus se pode ver. Tão poucas vezes é lembrado que a mais profunda humildade deve ser a principal nota no que os servos de Jesus dizem sobre si mesmos ou uns para os outros. Não há muitas congregações e assembleias de santos, muitas missões e convenções, muitas sociedades e comitês e até mesmo muitas missões distantes em que a harmonia foi perturbada e a obra de Deus prejudicada porque homens que são considerados santos provaram nos seus melindres, irritação e impaciência, em suas autodefesas e autoafirmações, em julgamentos ríspidos e em palavras grosseiras que eles não consideram os outros superiores a si mesmos e que sua santidade tem muito pouco da mansidão dos santos? Em sua história espiritual, alguns homens podem ter tido momentos de grande humilhação e quebrantamento, mas que grande diferença há entre ser vestido de humildade e ter um espírito humilde, e ter aquela humildade de mente na qual cada um se considera servo dos outros e assim mostra  ter a mesma disposição mental que havia em Jesus Cristo!
         “Para trás, pois eu sou mais santo do que vocês!” Que paródia da santidade! Jesus, o Santo, é o Humilde: o mais santo sempre será o mais humilde. Não há nenhum Santo a não ser Deus: nós temos de santidade o quanto temos de Deus. E nossa santidade será real de acordo com o quanto tivermos de Deus, porque humildade nada mais é do que o desaparecimento do ego diante da revelação de que Deus é tudo. O mais santo será o mais humilde. Mas, infelizmente, embora o judeu arrogante descarado dos dias de Isaías não seja mais frequentemente encontrado, até por termos sido educados para não falar desse modo, seu espírito ainda é muito frequentemente encontrado, tanto no tratamento dos santos da igreja quanto dos filhos do mundo. No espírito em que opiniões são dadas, em que o trabalho é realizado, em que os erros são expostos, quantas vezes, embora as vestes sejam do publicano, a voz ainda é a do Fariseu: “Oh, Deus, eu te agradeço porque não sou como os demais homens.”!
         Existe algum lugar onde se possa encontrar essa humildade em que os homens de fato se considerem “menos do que o menor de todos os santos” e servos de todos? Existe. “O amor não se ufana, não se ensoberbece, não busca seus próprios interesses”. Onde o espírito do amor é derramado abundantemente no coração, onde a natureza divina nasce plenamente, onde Cristo, o manso e humilde, é verdadeiramente formado no interior, aí é concedido o poder do perfeito amor que se esquece de si mesmo e encontra sua bênção em abençoar os outros, em suportá-los e honrá-los por mais débeis que sejam. Onde esse amor entra, Deus entra. E onde Deus entra com Seu poder e Se revela como Tudo a criatura se torna nada. E onde a criatura se torna nada diante de Deus não pode existir senão humildade no relacionamento com seus semelhantes. A presença de Deus se torna não algo de tempos ou épocas, mas a cobertura sob a qual a alma habita a cada momento, e sua profunda humildade diante de Deus se tona o lugar santo de Sua presença de onde todas as palavras e ações procedem.
         Que Deus possa nos ensinar que nossos pensamentos e sentimentos em relação aos nossos semelhantes são Seu teste de nossa humildade em relação a Ele, e que nossa humildade diante dEle é o único poder capaz de nos levar a sermos sempre humildes diante dos homens. Nossa humildade deve ser a vida de Cristo, o Cordeiro de Deus, em nós.
         Que todos os mestres de santidade, nos púlpitos ou nas cátedras, e todos os que buscam santidade, quer na intimidade do seu quarto, quer nos congressos, estejam advertidos. Não há orgulho tão perigoso, porque tão sutil e insidioso, quanto o orgulho da santidade. Não que alguém de fato diga ou mesmo pense “para trás, pois eu sou mais santo do que você”. Não, isso seria considerado uma aberração. Mas em algum lugar cresce, inconscientemente, um hábito secreto da alma, que se agrada de seus próprios sucessos e não pode deixar de ver o quanto avançou mais do que os outros. Isso pode ser reconhecido nem sempre em alguma afirmação ou elogio pessoal, mas simplesmente na ausência daquela profunda auto- humilhação que é a marca inconfundível de uma alma que contemplou a glória de Deus (Jó 42:5,6; Isaías 6:5). Isso se revela não apenas em palavras e pensamentos, mas num tom, num modo de falar dos outros, nos quais aqueles que têm o dom do discernimento espiritual não podem deixar de reconhecer o poder do ego. Até mesmo o mundo com seus olhos aguçados o percebem e o apontam com prova de que professar uma vida celestial não produz nenhum fruto realmente celestial. Oh, irmãos! Tenhamos cuidado. A menos que tornemos cada avanço que façamos em santidade um aumento na busca de humildade, podemos descobrir que estamos nos deliciando em belos pensamentos e palavras, em atos solenes de consagração e fé, enquanto a única verdadeira marca da presença de Deus, o desaparecimento do ego, está ausente o tempo todo. Vamos correr para Jesus e nos esconder nEle até sermos revestidos por Sua humildade. Essa é unicamente nossa santidade.

         Andrew Murray, “Humility”, capítulo 7, “Humility and Holiness”.
         Traduzido a partir do original em domínio público disponível em www.ccel.org, por Fernando Saboia Vieira.