terça-feira, 24 de maio de 2016

Simplicidade, 2º Texto


A concupiscência como perda da simplicidade

1ª de João 2:15-17; Tiago 4:1-6; Romanos 7:7-9

 

Na raiz da natureza maléfica da concupiscência está a perda simplicidade.

A concupiscência, o desejo desmedido e impuro por aquilo que não nos é lícito ter, nasce quando deixamos de querer as coisas e os bens da vida por sua utilidade e significado e passamos a cobiçá-los de uma maneira excessiva, distorcida e perniciosa pelo prazer que eles podem nos proporcionar, pela simples satisfação de possuí-los, pelo poder que nos conferem ou pelo status e imagem que nos proporcionam diante dos outros.

Nossa noção do que é necessário se torna deturpada e sem fundamento em valores reais para assumir complexidades e excessos artificializados. As coisas passam a atender não mais a necessidades, mas a desejos, cobiças, avarezas, medos, fantasias.

Podemos observar esse fenômeno, que é uma das bases econômicas na moderna sociedade consumista, a partir de exemplos simples. Posso propor um bem pessoal. Uma caneta serve bem para escrever. Uma de melhor qualidade servirá melhor ao fim a que se destina. Posso desejar ter várias para usos diversos, com cores e traços diferentes. No entanto, em algum momento, sou tentado a adquirir canetas apenas por não ter ainda daquele determinado tipo, embora, possivelmente, nunca venha a utilizá-las. Depois, descubro que canetas podem ser símbolos de status, de sucesso profissional, de sofisticação intelectual ou artística. E as adquiro com essa finalidade, mesmo que não pretenda usá-las para escrever, mas apenas para exibi-las nos círculos apropriados. Também passo a desejar ter várias para acumular, para garantir um suprimento ou apenas para contemplá-las e as obtenho numa quantidade de utilização impossível mesmo ao longo de várias vidas!

Complexidade, excesso. Deslocamento do necessário para o cobiçado. Adquiro não porque me atende a algum valor, mas porque desejo. Eis o caminho do vício na alma humana pelo qual se forjam correntes de escravidão unindo argolas de coisas lícitas e úteis.

Assim, a concupiscência da carne nasce da perda da simplicidade da satisfação de nossas necessidades mais elementares essenciais, ligadas à nossa existência como indivíduos e como espécie: alimento, água, proteção, abrigo, reprodução. Afetividade, expressão pessoal, relacionamentos. Ambiente para crescer e se desenvolver.

Quando atividades elementares como comer e beber, por exemplo, passam a ter como principal motivação o prazer e não o fim a que se destinam – uma vida saudável – as pessoas começam a se perder na complexidade de demandas artificiais e de excessos, que passam a dominá-las ao ponto de produzirem o efeito exatamente oposto – enfermidade e morte. Esse desvio de finalidade é o que a Bíblia chama, literalmente, de pecado.

Isso vale para carros e sapatos, roupas e bebidas, comidas e joias, brinquedos e celulares, e tudo o mais que nos é oferecido em nossa moderna sociedade de consumo e que pode nos proporcionar algum tipo de prazer.

Essa deturpação advinda da perda da simplicidade produz efeitos particularmente maléficos nos desvios que ela causou na natureza humana em relação aos seus instintos mais poderosos, aqueles relacionados à sobrevivência pessoal à preservação da espécie, que são os da sexualidade.

Talvez em nenhuma outra manifestação humana a concupiscência revele mais suas nefastas consequências do que na exacerbação do instinto sexual, completamente desconectado de seus propósitos naturais e comandado pelo princípio do prazer, do poder, da dominação. Todas as depravações, taras, perversões e abominações que decorrem dessa distorção se revelam como as forças mais potencialmente destrutivas das pessoas, dos relacionamentos e das sociedades.

Vivemos numa geração completamente contaminada pelos excessos, pelas fantasias, pela ausência de limites para a busca do prazer, pela criatividade perversa, pelo oferecimento de satisfação fácil e barata da sensualidade.

O caminho da santidade do corpo e da alma deve passar, então, necessariamente, pela simplificação da nossa percepção em relação à nossa natureza humana, tal como criada por Deus, dos seus valores e propósitos espirituais, aos efeitos provocados pelo pecado e à restauração imagem de Deus e da sua soberania em Cristo Jesus. Sem artificialidades, sem complexidades, sem excessos.

Homens e mulheres expressando sua sexualidade dentro da vontade de Deus e, assim, atingindo a plenitude como pessoas criadas para refletir a semelhança, o amor e a vida de Deus, como cônjuges, como pais e mães.

Esta nossa geração, contudo, vive escravizada pelo hedonismo, pela busca do prazer em suas diversas formas, pelo império da sensualidade como critério de valor. O resultado disso é a perda da dimensão pessoal e espiritual da vida, do seu sentido e, afinal, da alegria.

Para além dos excessos do sentir, também percebemos as distorções da perda da simplicidade quanto aos excessos do ter. Nesse sentido, a Palavra também nos adverte quanto à concupiscência dos olhos.

Essa se desenvolve quando nossa alma assume a complexidade e o excesso das possibilidades de possuir como sua forte inclinação e desejo. Assim, ainda que não tenhamos as coisas que vemos e nem mesmo nos seja possível adquiri-las, nós as amamos e cobiçamos.

Que desastre nesta geração global e midiática! Hoje, é possível cobiçar não apenas a mulher e os bens do próximo, mas qualquer mulher e qualquer bem de qualquer pessoa do Planeta. As pessoas vivem intoxicadas pelas imagens dos excessos e perversões das vidas dos ricos, famosos e poderosos. São elas aliciadas todos os dias pelos apelos a cobiçar e possuir uma infinidade de coisas e de sensações tanto inalcançáveis para a grande maioria quanto incapazes de proporcionar identidade, significado e valor pessoal à vida, porque as afastam de sua natureza espiritual e eterna.

Disse Jesus: “Se os teus olhos forem bons (literalmente, simples), todo o teu corpo terá luz”. No entanto, se temos olhos maus, contaminados pelos excessos da concupiscência, podemos saber que todo o nosso ser estará em trevas.

Mais profundamente ainda, somos exortados a não cedermos ao espírito deste século manifestado na maneira desafiadora e despudorada com que expressa a soberba da vida. Essa é aquela pretensão nascida no coração de nossos primeiros pais no sentido do ser autônomo, que fomentou a rebelião da criatura contra seu Criador.

Senhores do conhecimento do bem e do mal, autores do próprio destino. O mito de que deu posso ser e ter tudo o que eu quiser desde que acredite em mim mesmo, nas minhas capacidades e possibilidades tem causado danos, enfermidades e morte mormente nesses nossos dias de humanismo exacerbado.

No entanto, o princípio de vida que há no homem não tem nele mesmo sua fonte e alimento, mas é o efeito de uma causa que tem sua origem, sustento e destino em Deus. A humanidade se apartou da simplicidade que deve reger o relacionamento com o Criador e se perdeu em uma complexidade de explicações, de buscas, de falsas origens e de falsos destinos. Ao complicarmos, confiados em nós mesmos, perdemos a noção de sua profundidade de significado e de valor na confusão de nossas ideias, conceitos e paixões.

Ora, diz o Apóstolo, o mundo passa e com ele passam suas concupiscências – seus excessos, suas artificialidades, suas cobiças. Por isso não podemos ser amigos do mundo, pois isso nos tornaria inimigos de Deus.

De onde procedem nossas guerras e conflitos? Tiago nos diz claramente: das nossas cobiças e paixões. Por que não obtemos satisfação com as coisas que buscamos e pelas quais nos desgastamos? Porque fazemos isso para atender aos excessos da nossa concupiscência e não às nossas verdadeiras necessidades. Confusos são nossos pedidos porque confusa é nossa fé, contaminada com tantos desejos e fantasias.

Caros, a simplicidade, como negação dos excessos da cobiça e da soberba e como afirmação do sentido e do valor da vida, das pessoas e das coisas criadas é caminho essencial para a santidade e, em consequência, para a felicidade. Precisamos descobrir e praticar a ascese do necessário, do suficiente e do útil para nossa vida física, mental e espiritual. Necessidades artificiais nos tornam pessoas artificiais. Precisamos nos simplificar, desejar e buscar o que é essencial, valioso e eterno para sermos mais autênticos e profundos no que somos, no que buscamos e no que fazemos.
 
Fernando Saboia Vieira

2 comentários:

  1. Pôxa, mano querido, há meses que medito nesse texto de 1ª de João 2:15-17... Há muito penso nesta coisa de "não amar o mundo, nem as coisas que há no mundo"... E me deparo com uma interpretação que em muito responde o que questiono em mim mesmo...

    Obrigado por compartilhar de forma tão preciosa suas percepções...

    Valeu mesmo!

    ResponderExcluir
  2. Fernando, muito boa a reflexão. O mundo, hoje, busca o que é imediato, busca prazeres, busca reconhecimento, satisfação de desejos e até esbanjamento do que se tem em nome de um falso e "necessário" prazer. A simplicidade é o contrário de tudo isso. Ao mesmo tempo, é o caminho de volta para Deus e para Jesus.
    Mateus 6
    "Mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde a traça nem a ferrugem podem destruir, e onde os ladrões não arrombam e roubam. Porque, onde estiver o teu tesouro, aí também estará o teu coração.
    (Mateus 6.20,21)

    ResponderExcluir