A concupiscência como perda da simplicidade
1ª de João 2:15-17; Tiago 4:1-6; Romanos 7:7-9
Na raiz da natureza maléfica da
concupiscência está a perda simplicidade.
A concupiscência, o desejo desmedido e
impuro por aquilo que não nos é lícito ter, nasce quando deixamos de querer as
coisas e os bens da vida por sua utilidade e significado e passamos a cobiçá-los
de uma maneira excessiva, distorcida e perniciosa pelo prazer que eles podem
nos proporcionar, pela simples satisfação de possuí-los, pelo poder que nos
conferem ou pelo status e imagem que nos proporcionam diante dos outros.
Nossa noção do que é necessário se torna
deturpada e sem fundamento em valores reais para assumir complexidades e
excessos artificializados. As coisas passam a atender não mais a necessidades,
mas a desejos, cobiças, avarezas, medos, fantasias.
Podemos observar esse fenômeno, que é uma
das bases econômicas na moderna sociedade consumista, a partir de exemplos
simples. Posso propor um bem pessoal. Uma caneta serve bem para escrever. Uma
de melhor qualidade servirá melhor ao fim a que se destina. Posso desejar ter
várias para usos diversos, com cores e traços diferentes. No entanto, em algum
momento, sou tentado a adquirir canetas apenas por não ter ainda daquele
determinado tipo, embora, possivelmente, nunca venha a utilizá-las. Depois,
descubro que canetas podem ser símbolos de status, de sucesso profissional, de
sofisticação intelectual ou artística. E as adquiro com essa finalidade, mesmo
que não pretenda usá-las para escrever, mas apenas para exibi-las nos círculos
apropriados. Também passo a desejar ter várias para acumular, para garantir um
suprimento ou apenas para contemplá-las e as obtenho numa quantidade de
utilização impossível mesmo ao longo de várias vidas!
Complexidade, excesso. Deslocamento do
necessário para o cobiçado. Adquiro não porque me atende a algum valor, mas
porque desejo. Eis o caminho do vício na alma humana pelo qual se forjam
correntes de escravidão unindo argolas de coisas lícitas e úteis.
Assim, a concupiscência da carne
nasce da perda da simplicidade da satisfação de nossas necessidades mais
elementares essenciais, ligadas à nossa existência como indivíduos e como
espécie: alimento, água, proteção, abrigo, reprodução. Afetividade, expressão
pessoal, relacionamentos. Ambiente para crescer e se desenvolver.
Quando atividades elementares como comer e
beber, por exemplo, passam a ter como principal motivação o prazer e não o fim
a que se destinam – uma vida saudável – as pessoas começam a se perder na
complexidade de demandas artificiais e de excessos, que passam a dominá-las ao
ponto de produzirem o efeito exatamente oposto – enfermidade e morte. Esse
desvio de finalidade é o que a Bíblia chama, literalmente, de pecado.
Isso vale para carros e sapatos, roupas e
bebidas, comidas e joias, brinquedos e celulares, e tudo o mais que nos é
oferecido em nossa moderna sociedade de consumo e que pode nos proporcionar
algum tipo de prazer.
Essa deturpação advinda da perda da
simplicidade produz efeitos particularmente maléficos nos desvios que ela causou
na natureza humana em relação aos seus instintos mais poderosos, aqueles
relacionados à sobrevivência pessoal à preservação da espécie, que são os da
sexualidade.
Talvez em nenhuma outra manifestação humana
a concupiscência revele mais suas nefastas consequências do que na exacerbação
do instinto sexual, completamente desconectado de seus propósitos naturais e
comandado pelo princípio do prazer, do poder, da dominação. Todas as
depravações, taras, perversões e abominações que decorrem dessa distorção se
revelam como as forças mais potencialmente destrutivas das pessoas, dos
relacionamentos e das sociedades.
Vivemos numa geração completamente
contaminada pelos excessos, pelas fantasias, pela ausência de limites para a
busca do prazer, pela criatividade perversa, pelo oferecimento de satisfação
fácil e barata da sensualidade.
O caminho da santidade do corpo e da alma deve
passar, então, necessariamente, pela simplificação da nossa percepção em relação
à nossa natureza humana, tal como criada por Deus, dos seus valores e propósitos
espirituais, aos efeitos provocados pelo pecado e à restauração imagem de Deus
e da sua soberania em Cristo Jesus. Sem artificialidades, sem complexidades,
sem excessos.
Homens e mulheres expressando sua
sexualidade dentro da vontade de Deus e, assim, atingindo a plenitude como
pessoas criadas para refletir a semelhança, o amor e a vida de Deus, como
cônjuges, como pais e mães.
Esta nossa geração, contudo, vive
escravizada pelo hedonismo, pela busca do prazer em suas diversas formas, pelo
império da sensualidade como critério de valor. O resultado disso é a perda da
dimensão pessoal e espiritual da vida, do seu sentido e, afinal, da alegria.
Para além dos excessos do sentir, também
percebemos as distorções da perda da simplicidade quanto aos excessos do ter. Nesse
sentido, a Palavra também nos adverte quanto à concupiscência dos olhos.
Essa se desenvolve quando nossa alma assume
a complexidade e o excesso das possibilidades de possuir como sua forte
inclinação e desejo. Assim, ainda que não tenhamos as coisas que vemos e nem
mesmo nos seja possível adquiri-las, nós as amamos e cobiçamos.
Que desastre nesta geração global e midiática!
Hoje, é possível cobiçar não apenas a mulher e os bens do próximo, mas qualquer
mulher e qualquer bem de qualquer pessoa do Planeta. As pessoas vivem
intoxicadas pelas imagens dos excessos e perversões das vidas dos ricos, famosos
e poderosos. São elas aliciadas todos os dias pelos apelos a cobiçar e possuir
uma infinidade de coisas e de sensações tanto inalcançáveis para a grande maioria
quanto incapazes de proporcionar identidade, significado e valor pessoal à
vida, porque as afastam de sua natureza espiritual e eterna.
Disse Jesus: “Se os teus olhos forem bons (literalmente, simples), todo o teu corpo terá luz”. No entanto, se temos olhos
maus, contaminados pelos excessos da concupiscência, podemos saber que todo o
nosso ser estará em trevas.
Mais profundamente ainda, somos exortados a
não cedermos ao espírito deste século manifestado na maneira desafiadora e
despudorada com que expressa a soberba
da vida. Essa é aquela pretensão nascida no coração de nossos primeiros
pais no sentido do ser autônomo, que fomentou a rebelião da criatura contra
seu Criador.
Senhores do conhecimento do bem e do mal,
autores do próprio destino. O mito de que deu posso ser e ter tudo o que eu
quiser desde que acredite em mim mesmo, nas
minhas capacidades e possibilidades tem causado danos, enfermidades e morte mormente nesses nossos dias de humanismo exacerbado.
No entanto, o princípio de vida que há no
homem não tem nele mesmo sua fonte e alimento, mas é o efeito de uma causa que
tem sua origem, sustento e destino em Deus. A humanidade se apartou da
simplicidade que deve reger o relacionamento com o Criador e se perdeu em uma
complexidade de explicações, de buscas, de falsas origens e de falsos destinos.
Ao complicarmos, confiados em nós mesmos, perdemos a noção de sua profundidade
de significado e de valor na confusão de nossas ideias, conceitos e paixões.
Ora, diz o Apóstolo, o mundo passa e com
ele passam suas concupiscências – seus excessos, suas artificialidades, suas
cobiças. Por isso não podemos ser amigos do mundo, pois isso nos tornaria
inimigos de Deus.
De onde procedem nossas guerras e
conflitos? Tiago nos diz claramente: das nossas cobiças e paixões. Por que não
obtemos satisfação com as coisas que buscamos e pelas quais nos desgastamos? Porque
fazemos isso para atender aos excessos da nossa concupiscência e não às nossas
verdadeiras necessidades. Confusos são nossos pedidos porque confusa é nossa fé,
contaminada com tantos desejos e fantasias.
Caros, a simplicidade, como negação dos
excessos da cobiça e da soberba e como afirmação do sentido e do valor da vida,
das pessoas e das coisas criadas é caminho essencial para a santidade e, em consequência,
para a felicidade. Precisamos descobrir e praticar a ascese do necessário, do
suficiente e do útil para nossa vida física, mental e espiritual. Necessidades artificiais
nos tornam pessoas artificiais. Precisamos nos simplificar, desejar e buscar o
que é essencial, valioso e eterno para sermos mais autênticos e profundos no
que somos, no que buscamos e no que fazemos.
Fernando Saboia Vieira