Mateus 4:12-22; Marcos 1: 14-24; Lucas 5:1-11
A cena é de uma simplicidade comovente e confortadora: Jesus encontra homens do povo, trabalhadores, envolvidos com suas prosaicas tarefas diárias. Ele os chama para O seguirem, sem lhes dar quaisquer motivos ou explicações. Não faz concessões de nenhum tipo, exige uma obediência imediata. Aqueles que ouvem o chamado, de imediato, abandonam seus afazeres, suas famílias, seus relacionamentos, sua cidade, seu lugar na sociedade, seus planos de vida, sua religião, seus conceitos e O seguem para viverem o Reino que lhes é anunciado, arrependidos, convencidos do próprio pecado e rebeldia. Vencidos por Seu amor e graça, renunciam a tudo, até à própria vida, e O seguem, sem saber a onde essa decisão os levaria.
Meditando sobre a natureza e as conseqüências desse chamado, não apenas nas vidas daquelas pessoas que o ouviram de viva voz do Senhor, nas ermas paragens da Galiléia do primeiro século, mas também nas experiências de muitos que o temos ouvido, por todos os lugares do planeta, nesses dois milênios, pela pregação dos profetas de Deus e pelo ministério do Espírito Santo, quatro aspectos ou implicações da convocação de Jesus para segui-lO têm ocupado meu pensamento e orações.
Quero enunciá-los de pronto, para depois compartilhar o que Deus tem me falado sobre cada um deles: o chamado de Jesus produz solidão; o chamado inclui na comunhão; o chamado envia ao serviço; e o chamado transforma.
Essas implicações paradoxais e exigentes do chamado de Jesus produzem, na vida do discípulo uma constante reflexão e busca. Devem acompanhá-lo a cada instante, produzindo oração, quebrantamento, dependência do Pai.
“Como é possível essa seqüência imediata de chamado e obediência?... Porque para essa seqüência de chamado e obediência só existe uma razão válida: Jesus Cristo... O chamado ao discipulado é, portanto, comprometimento exclusivo com a pessoa de Jesus...”
Dietrich Bonhoeffer, “Discipulado”
O chamado de Jesus produz solidão. Lucas 9:57-62, 14:26-33.
Quando Jesus nos chama ele nos desconecta de nossos vínculos e pertencimentos naturais: relacionamentos, cultura, valores, posição social, profissão, projetos de vida, sonhos, bens. Somos completamente desencaixados de tudo o que nos dava conforto, segurança, realização e um sentido aparente à vida.
As próprias leis da natureza são suspensas e não se aplicam mais da mesma forma.
Até de nós mesmo somos afastados, de nossa própria vida e identidade. Não somos mais quem pensávamos que éramos, não nos pertencemos mais.
Jesus não aceita qualquer tipo de intermediação entre Ele e a resposta ao chamado, nem espiritual, nem moral, nem social e nem mesmo psicológica.
Ele não nos dá razões ou convencimentos emocionais. Somos apartados de nossos parâmetros de decisão e de nossos sentimentos e levados à dimensão da fé, que é operada pela manifestação da autoridade suprema de Deus, que reivindica Sua posição diante do ser criado, e pelo obediente reconhecimento deste daquela autoridade.
Assim, o chamado de Jesus ao discipulado provoca uma crise, nos leva a um deserto, a uma completa solidão. É certo que em seguida nos incluirá na comunhão dos discípulos, da família de Deus, mas não devemos nos esquivar da contundente confrontação pessoal e solitária a que o Senhor nos leva quando nos chama e na qual nos mantém, enquanto nos dispusermos a seguí-lO.
O deserto é necessário por ser o lugar da intensa e exclusiva comunhão com Deus. O Senhor precisa nos separar de tudo o mais, nos despojar completamente, para que possamos estar diante dEle como Ele nos criou e nos vê: despidos de tudo, sem conceitos, sem pretensões, sem passado, sem pertencimentos, completamente livres e totalmente dependentes do único relacionamento que subsiste: o de criatura e Criador, que pode se tornar, dali em diante, de Pai e filho. Esse esvaziamento é absolutamente imprescindível para que possamos pertencer exclusivamente a Ele.
Esse é o movimento duplo da santificação: afastamento e reencontro, renúncia e consagração, perda e ganho, confissão e perdão, condenação e justificação, morte e vida, lei e graça.
Podemos ver isso na vida de Jesus. A Sua perfeita comunhão com o Pai o levava a constantemente se retirar para lugares desertos e ali orar e ouvir a Deus. Antes, o povo de Israel havia sido tratado na pedagogia do deserto. Do deserto o Senhor chamava Seus profetas na economia da Velha Aliança, até o último e maior deles, João Batista.
Precisamos ter claro que o chamado de Jesus e suas implicações nos acompanham toda a vida. Fomos chamados pelo nome, individual e particularmente, e aquela solidão absoluta, aquela renúncia completa que marcou nossa conversão precisa ser renovada constantemente para que possamos ter uma vida de comunhão plena com o Pai.
Temos que voltar, cada dia, a esse lugar solitário de adoração e santificação. Foi ali que fomos achados e resgatados, libertos de nossas fantasias e pecados e salvos da condenação de nossa vida rebelde contra Deus. Ali, fizemos com Ele uma aliança e entregamos nossa vida, nossos direitos, nossa honra, imagem. Tudo colocamos em Suas mãos. Ali, Ele se tornou precioso para nós, como um tesouro oculto no campo, como uma pérola única. Ali, fomos completamente conquistados por Seu amor e graça. Ali, nos comprometemos com Seu Reino e vontade. Ali nos esvaziamos para sermos cheios dEle.
Quando não retornamos a esse lugar, quando deixamos de estar a sós com o Senhor nessa solidão e deserto a que Ele nos chama, não nos esvaziamos e permanecemos cheios de nós mesmos e de nossos conceitos e vontades. Retomamos o controle e o cuidado de nossas vidas, voltamos a buscar segurança, conforto e sentido no que fazemos, nas circunstâncias da vida, nas obras dos homens, nos relacionamentos que nos são caros.
Fazendo isso, perdemos o sentido, a motivação, a alegria de segui-lO. Tudo nos parece difícil e pesado. Não há poder nem graça em nossas vidas, pois o Reino de Deus só chega a nós a partir do nosso encontro com o Rei, e nele apenas permanecemos na medida em que continuamos em Sua presença.
Nos momentos críticos e decisivos da vida é na nossa solidão diante de Deus que nós nos encontramos, nos fundamentamos e nos mantemos íntegros, nas provações e nas alegrias. É no altar dessa Presença que oferecemos nossas ansiedades como oração e súplica e nosso júbilo como louvor.
Precisamos ter nossos lugares e momentos de particular e íntima comunhão com o Pai, para onde sempre voltamos para orar, conversar, chorar, celebrar.
Embora Deus esteja em todo lugar, não estamos o tempo todo diante dEle da mesma maneira. Assim, é preciso buscar a Deus, mesmo que, pela fé, já saibamos que O temos. Aliás, ensinam os pais da Igreja, é justamente por isso que podemos buscá-lO, porque Ele mesmo já se deu a nós, pois do contrário inutilmente inventaríamos ciências, filosofias, ritos, religiões e sacrifícios, sem jamais encontrá-lO.
E essa busca de Deus deve ter princípio, direção e sustento em nossa comunhão pessoal com Ele, em momentos e lugares que a Ele consagramos como altares erguidos em nossa peregrinação pelo deserto. Deus anseia por esses encontros, e deles tem saudades, quando nós nos afastamos, quer por rebeldia, quer por envolvidos com os cuidados do mundo ou mesmo atarefados com a obra do Reino.
Jesus nos disse para buscarmos a recompensa do “Pai que vê em secreto”. Ali está toda a satisfação e graça de Deus: na esmola escondida, no jejum discreto, na oração a portas fechadas. Boas obras, sacrifício e devoção prestados apenas a Ele, para Sua exclusiva glória e inteiro agrado.
Se não temos o hábito de estarmos a sós com Deus, ou se, na nossa vida agitada, cheia de atividades e de interações nos distanciamos e perdemos o caminho para nosso lugar de comunhão solitária, ou, ainda, se o chamado de Jesus começa a nos parecer distante, preso a um passado que nos dá nostalgia, mas que não repercute hoje, então precisamos desenvolver de novo algumas disciplinas associadas à solidão. Mencionamos algumas que podem nos ajudar a encontrar ou reencontrar nossos altares no deserto.
Disciplina do silêncio. Deus fala aos silenciosos. Quando sossegamos e calamos nossas vozes interiores, entramos no santo silêncio da maravilhosa e temível presença de Deus e nos preparamos para ouvir. Os tagarelas estão por demais cheios de si mesmos e de mundo para poderem escutar o Espírito. Disciplina da contemplação. Somos transformados naquele cuja imagem contemplamos. Embora possamos contemplar nos encontros públicos, ou mesmo em qualquer hora ou lugar, é no nosso tempo reservado que aprendemos a admirar e amar as virtudes de Deus, e somos confrontados por elas. Disciplina da meditação. Não apenas ler e compreender a Palavra, não apenas lembrar-se dos preceitos e verdades de Deus, mas deixar que o Espírito as faça penetrar profundamente na nossa mente e coração, nos enchendo com Sua Presença e poder.
O chamado inclui na comunhão
É o estar a sós com Deus que nos prepara e orienta para a comunhão. É a partir do nosso encontro solitário com o Senhor que somos devolvidos à sociedade dos homens e aos negócios do mundo, que reencontramos nossos vínculos, relacionamentos e atividades. Contudo, agora como alguém que não pertence mais a si mesmo, que esteve na presença do Deus Altíssimo e foi por ele enviado, dado às pessoas como servo do Reino.
Todos os nossos relacionamentos, afetos e atividades são, desde então, mediados e condicionados por nossa comunhão com Ele, em solidão: é em Cristo que nos conhecemos, é nEle que permanecemos ainda neste mundo e é por Ele que falamos e vivemos.
Vamos, pois, para a comunhão, vazios de direitos, reivindicações e pretensões. Ao contrário, nos encontramos com os homens na condição de seus devedores por amor a Cristo. É com o Senhor que resolvemos nossos problemas e questões de relacionamento.
Acertados com Ele, nos voltamos uns para os outros e pedimos perdão e restituímos, perdoamos e abençoamos, nos reconciliamos, nos suportamos, nos amamos como o Senhor nos amou, nos auxiliamos com as cargas uns dos outros, para que todos sigamos a caminhada após Ele.
Quando nos parece difícil o relacionamento com alguém, precisamos voltar a estarmos a sós com Deus, para novamente nos esvaziarmos de nós mesmos e sermos cheios dEle. Assim, nos reencontrarmos com nosso semelhante, marcados pela Presença e pela Palavra do Senhor, por Seu amor e graça, como seus portadores de Seus dons e testemunhas de Seus feitos. Vasos vazios e santos, prontos para serem cheios do tesouro da revelação de Deus e da vida de Jesus.
Se não procedemos assim, violamos a comunhão na Igreja, usando-a para nossos próprios interesses e conforto emocional, dando lugar a nossas preferências e sentimentos, formando nossos partidos e nos encastelando em nossas razões, opiniões e direitos. Vivemos uma geração que tem uma mentalidade reivindicatória, consumista, individualista. Só nosso encontro a sós com o Senhor nos livra da tirania no nosso ego, levando-o à cruz, e nos abre as portas da comunhão espiritual em Cristo, que se fundamenta na Graça repartida a cada um em seu encontro pessoal e solitário com Ele.
“A comunhão cristã não é sanatório espiritual. Quem se associa à comunhão por estar fugindo de si mesmo, abusa dela, usando-a para conversação e divertimento, por mais espiritual que isso possa parecer.”
“A pessoa que não suporta a solidão deve tomar cuidado com a comunhão.”
“Se não queres ficar sozinho rejeitas o chamado de Cristo e não terás parte na comunhão dos eleitos.”
(Dietrich Bonhoeffer, “Vida em Comunhão”)
“somente andando nos lugares desertos
de sua própria alma
é que pode um homem tornar-se
verdadeiro amigo de Deus”
(de “Veredas no Deserto”)
O chamado envia ao serviço
Jesus veio para servir. Ele, o maior de todos, fez-se servo de todos. Os discípulos do Senhor são chamados para uma vida de serviço, pois não há outro modo de seguir ou imitar o Mestre.
O serviço me mantém no meu lugar, afasta-me do trono, lembra-me continuamente de quem eu sou e de qual o propósito da minha vida.
O servo não controla a própria existência, não tem agenda pessoal, direitos, preferências. Sua vida é totalmente dependente do seu Senhor, a quem busca unicamente agradar. Muitas vezes nos esquecemos disso. Vivemos vidas agitadas, cheias de compromissos, de obrigações e de projetos. Talvez tenhamos muitos sonhos, talvez sequer tenhamos tempo para sonhar, envolvidos com nossas tarefas. No entanto, se somos discípulos, somos servos e, nessa condição não vivemos para nós mesmos.
Proclamação e edificação, socorros, ajudas, diaconias, serviços são partes do que somos, conseqüências do nosso chamado e conteúdo da nossa comunhão.
Não há chamado sem serviço e não pode haver comunhão sem serviço. Somos servos do Senhor e servos uns dos outros. Sem serviço a comunhão não produz a vida de Jesus. Torna-se teórica, vazia, sem alegria e sem frutos.
Nosso principal serviço em relação ao mundo é sermos sal e luz, proclamadores das virtudes de Deus, do Seu reino. Se somos seguidores de Jesus temos que nos perguntar continuamente onde Ele estaria, o que estaria fazendo se estivesse fisicamente neste mundo.
O servo não distingue tarefas comuns ou nobres. Quem faz essa distinção já não é servo, mas senhor da obras. Quando servimos, o que nos importa é o Senhor, e não a tarefa.
O chamado transforma
Estar com Jesus transforma. A comunhão com o corpo transforma. O serviço transforma.
Não ser continuamente transformado é doentio, é sinal de que algo não está bem em nossas vidas. O Senhor está continuamente empenhado em nos levar à completa estatura de Cristo, a sermos santos e irrepreensíveis.
Essa transformação começa no momento da conversão e deve prosseguir todos os dias da nossa vida. Trata-se de abandonar os vícios adquiridos e desenvolver as virtudes de Jesus. Mudar comportamentos, sentimentos, pensamentos, propósitos, hábitos.
Fazemos muitos planos quanto ao futuro em relação a nossos planos de vida, profissão, filhos etc. Temos que ter também alvos a respeito da nossa santificação, do nosso crescimento espiritual. Como eu quero ser daqui a alguns anos? O que o Senhor quer mudar em mim?
Andar com Jesus transforma. A Sua companhia é desafiadora e poderosa. Suas palavras produzem vida e virtude.
“Vinde a mim ... aprendei de mim...” . Ir até Jesus implica aprender com Ele. E a primeira lição é essa: mansidão e humildade (Mateus 11:28-30).
Fernando Sabóia, de “Crônicas do Reino”.