quarta-feira, 25 de agosto de 2010

UM POUCO DE PAUL TOURNIER (1898-1986)

Paul Tournier

Médico-Psicólogo, nascido em Genebra, Suíça. De confissão Evangélica, fundou e militou o movimento "Medicina da Pessoa". É autor das obras: Bíblia e Medicina, Desarmonia da Vida Moderna, Medicina da Pessoa, Da Solidão à Comunidade, Os Fortes e os Fracos, Envelhecer é uma Arte, O Segredo, Violência e Poder, A Personagem e a Pessoa.
Obtida de "http://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Tournier"


MEDICINA DA PESSOA


Artigo escrito por Paul Tournier, a pedido de Suzanne Fouché, para os Cadernos de l’ADAPT (1).


Nós pertencemos a dois mundos, o mundo das coisas e o mundo das pessoas. Bem entendido, não se trata senão do mesmo e único mundo. Mas isso depende de nossa visão, de nossa maneira de o observar por fora ou de o sentir por dentro. Ou, se preferirmos, por detrás ou por adiante, face ou coroa. A face, é a pessoa.
Quando se diz que Javé conhecia Moisés face a face, não é uma questão do Deus dos filósofos, de um conceito, de uma idéia, por mais elevada que seja, mas trata-se de um Deus pessoal, vivo, que fala e ao qual pode-se responder; e que nossa resposta não consiste mais em idéias, mas na nossa pessoa. O face a face é o encontro pessoal, uma comunidade verdadeira, que é, como disse Emmanuel Mounier, uma pessoa de pessoas.
É essa comunidade, essa necessidade de comunidade, que eu quero invocar aqui, um vínculo direto, autêntico, de pessoa a pessoa. Quando São Francisco de Assis conversava com o “irmão sol”, ele não conversava mais com o sol dos astrônomos e dos físicos, mas ele personificava o sol, se dirigia a ele como a uma pessoa, fazia dele uma pessoa. Esses dois modos de se relacionar são, certamente, igualmente legítimos: os astrônomos e os físicos são necessários, e toda a ciência. Mas eles apenas nos trazem um aspecto do mundo: há duas vias para o conhecimento, a da inteligência e a do coração.
Foi o filósofo Martin Buber, recém-falecido, que exprimiu essa dupla abordagem colocando a relação “Eu-Tu” em oposição à relação “Eu-aquilo”. Na relação “Eu-aquilo”, o Eu relação “Eu-Tu”, ele se engaja pessoalmente na direção de um outro sujeito. Para se fazer compreender, Martin Buber nem mesmo escolheu o exemplo de um homem, mas o de uma árvore.
Essa árvore pode ser observada por um sábio, que estudará seus órgãos, suas funções, acumulará conhecimentos a seu respeito. Ela pode, diz ele, também ser observada por um artista, que detalhará os efeitos da luz em suas folhas e a bela escultura do seu tronco. Mas ela permanece ainda assim separada dele, pela objetividade de seu olhar. Ao contrário, ele pode falar com essa árvore, ele pode lhe dizer “Tu”, mesmo silenciosamente, e, dessa forma, fazer dela uma pessoa, ele pode se ligar a ela pessoalmente.
É pelo encontro pessoal que nós nos tornamos uma pessoa e que nós fazemos do outro também uma pessoa. A criança logo toma consciência de ser uma pessoa quando seus pais a tratam como uma pessoa, quando eles, por exemplo, lhe perguntam: “o que você mesmo pensa disso?” ou invés de lhe dizer: “devemos fazer isso ou aquilo”. Ele se dá conta de que ele deverá assumir sua vida como uma pessoa responsável ao invés de a suportar passivamente, de que a pessoa é sempre singular, enquanto que o “nós” é sempre plural.
Mas nós estamos todos mergulhados, como dizia Emmanuel Mournier, neste “mundo do nós”. Nós somos todos cordeiros de nossa civilização técnica e racional. Toda nossa formação escolar, universitária, profissional e social nos condiciona à objetividade. Se nossas duas visões do mundo são complementares, a do coração está muito atrasada em relação àquela da inteligência.
E se nós podemos considerar o sol ou uma árvore como uma pessoa, podemos também estudar o homem como uma coisa, um objeto. Devemos até mesmo encará-lo como um objeto para elaborar as ciências humanas, a anatomia, a fisiologia, a patologia, a psicologia, a etnologia, a sociologia. Mas então nós o “coisificamos”. Esse termo é de Pégny, creio, de onde sabemos a influência que ele teve sobre Emmanuel Mournier. Deveríamos citar Pascal, Camus, Saint-Exupéry e muitos outros pensadores que sentiram o perigo da perda daquilo de mais humano que existe no homem, o significado da pessoa, por meio de manipulá-lo como uma coisa.
Mas não se trata apenas da influência de nossos estudos e de nossa rotina intelectual, mas trata-se de toda a mentalidade de nossa civilização técnica, que faz do homem um instrumento de produção, que o reduz a não mais do que uma engrenagem anônima na grande máquina socio-econômica. Que o homem do nosso tempo o sente, que ele o sofre, que um pesado sentimento de solidão o invade, mesmo no meio da multidão atarefada, isso me parece evidente.
E uma vez que a doença o conduza a um encontro face a face com o médico, o enfermeiro e o assistente social, eficientemente colocados a postos por essa máquina bem lubrificada que é a medicina técnica, ele arrisca se sentir mais um caso do que uma pessoa, uma vez que ninguém se ocupa senão, precisamente, do seu caso, das radiografias, dos exames de laboratório e do diagnóstico científico. E se seu caso for de difícil elucidação, ele desfrutará da atenção que desperta nos sábios que o examinam, mas percebe que o interesse deles está no problema científico suscitado, e não em sua pessoa.
Mas trata-se, ainda assim, de nós mesmos, condicionados por nossa rotina profissional, especialistas nesse mundo das coisas onde nos enclausura a ciência, reduzidos a nossa função, técnicos hábeis, mas totalmente inabilitados para voltarmos a ser simplesmente homens. Assim, numa reunião de médicos, vejo algum especialista eminente, que poderia, sem qualquer esforço, nos fazer uma conferência científica, ficar completamente embaraçado se eu lhe peço que nos fale de sua vida pessoal, não na forma de um currículo, mas com a emoção de quem viveu e revive ao recordar.
Nós temos, então, diante dos doentes e, de resto, de qualquer homem, uma dupla tarefa. É bem claro que nossa tarefa técnica é primordial. Esse imenso poder que constitui a ciência, ela nos foi ensinada para curar as doenças, esse é o nosso primeiro dever. Está fora de questão subestimarmos sua importância. Mas a sabedoria secular consagrou a divisa: “curar, às vezes; aliviar, freqüentemente; consolar, sempre.” Ora, consolar não se aprende na Faculdade. Mas isso também contribui para a cura.
Todos os médicos sabem da influência do “moral” no curso da cura. Eles também se esforçam para manter o moral. Nesse sentido, aparentam uma certa jovialidade que é benfazeja, mas que não vai muito longe porque o doente pode logo sentir que está sendo tratado como criança e não como uma pessoa responsável, o que dificilmente o estimula a confidências profundas. Ou então demonstra um otimismo que nem sempre é sincero, na idéia de que o “moral” depende apenas de uma cega confiança na cura. Os doentes são menos enganados por tal manobra do que pensam os médicos.
Nossa tarefa é dupla porque dupla é a necessidade dos enfermos, necessidade de tratamento científico o mais eficaz possível e necessidade de não estar sozinho durante a provação. E se o doente percebe que o otimismo de seu médico é falso, ele se sente ainda mais solitário diante dos problemas morais que deve enfrentar na provação da doença. Toda enfermidade traz consigo um cortejo de renúncias difíceis de aceitar, algumas das quais se tornarão definitivas, mesmo após a cura clínica.
Toda revolta e um fator de agravamento, toda a aceitação, um fator de cura. Mas a aceitação é dura. O que pode contribuir para isso? Eu creio que, sobretudo, se sentir compreendido. Pode-se aceitar tudo quando não se está só. E é sempre difícil para alguém saudável compreender verdadeiramente o enfermo, assim como para o rico compreender o pobre, a pessoa feliz a infeliz.
Um doente pode me dizer: “eu confio em você, porque você me compreende”. E isso antes que eu tenha compreendido qualquer coisa sobre o seu caso. Ele percebe então que se sente compreendido como pessoa, e não caso. Há, pois, dois sentidos para a palavra compreender, conforme se considere o caso ou a pessoa. E a medicina da pessoa, penso, consiste nessa dupla atenção ao caso e à pessoa.
Não se trata, me parece, de acumular todas as ciências em busca de uma síntese inatingível. Nem mesmo de agregar às ciências do corpo a psicologia, que permanece como um conhecimento objetivo. Mas, sim, de ser, ao mesmo tempo, homem de ciência e apenas homem, simplesmente homem, apto ao contato pessoal, à relação pessoa a pessoa.
Mas seria subestimar gravemente a importância dessa relação pessoal ver nela apenas um meio de retirar de sua solidão moral e de consolá-lo na sua provação. A questão é muito mais ampla: é torná-lo uma pessoa, não apenas uma coisa insignificante, jogada de um especialista a outro, e que só espera socorro de fora, daquilo que fazem com ele. É arrancá-lo de sua passividade e fazer um apelo a sua colaboração ativa no tratamento, a que ele assuma a responsabilidade sobre si mesmo.
A tarefa do médico é, a princípio, curar, mas é também ajudar os homens a crescerem como pessoas, a enfrentarem seus problemas, a se desenvolverem plenamente. Isso implica considerá-los como parceiros idôneos, parceiro no diálogo e na ação. Não objetos, mas sujeitos. Isso implica, especialmente, explicar-lhe o que vai ser feito com eles como a pessoas livres e responsáveis.
Na relação objetiva só há assimetrias: o médico é saudável e sábio, o doente é ignorante e impotente. Na relação pessoal há simetria, reciprocidade, solidariedade, igualdade entre pessoas, pois o médico é também uma pessoa que se esconde, muito freqüentemente, sob sua roupa branca, assim como o padre pode se esconder sob a batina. Negro ou branco, o hábito é, ao mesmo tempo, um sinal e um álibi, um sinal da função e um álibi da pessoa.
O médico é também uma pessoa, com suas alegrias e tristezas, seus conflitos e amores, suas esperanças e decepções, suas revoltas e inclinações. Também com seus remorsos: C.G. Jung teve um sonho que lhe mostrava que na véspera ele havia tido uma atitude de julgamento em relação a uma doente, julgamento que ele havia cuidadosamente escondido. Ele teve, então, a coragem de contar a essa enferma o sonho e seu significado. Habitualmente, são os pacientes que contam seus sonhos ao psiquiatra, e não o inverso. Mas esse incidente tão pessoal logo mudou o clima do relacionamento. Reciprocidade.
Freqüentemente é uma pequena confidência irrefletida do médico que quebra o gelo, que revela ao doente que está ali não apenas um técnico, mas um homem. Freqüentemente também é um simples olhar, por sua maneira de chamar pelo seu nome e não pelo de sua doença, por sua simplicidade ou pela emoção do aperto que mão que o paciente sente que está se relacionando não apenas com um personagem importante, mas com uma pessoa autêntica.
Sim, parceiros no diálogo. Mas não é raro que o diálogo desemboque, cedo ou tarde, em problemas que afligem o médico tanto quanto o paciente: o sentido do sofrimento, da doença e do mal, a injustiça da vida e da sociedade, o significado da existência, sobretudo quando ela é reduzida pela doença ou não tem outra perspectiva além da morte. O médico pode se furtar, mesmo habilmente, com uma brincadeira ou citando um provérbio banal que não resolve nada; ou pode dizer humildemente: “sabe, eu não sou filósofo nem teólogo, é melhor você se dirigir a alguém mais qualificado do que eu.”
Mas isso rompe o diálogo, o laço de confiança que começava a se estabelecer, do qual o enfermo tem tão grande necessidade. Na verdade, tanto quanto fica o médico à vontade no domínio científico fica ele tímido em falar de suas experiências pessoais, de suas convicções, de sua concepção de vida, humilhado, talvez, por saber tão pouco sobre essas coisas ele mesmo.
Isso é nos limitarmos a oferecer cuidados e nos recusarmos a dar de nós mesmos, como somos, com nossas certezas e nossas dúvidas, nossa vivência pessoal, com suas luzes e sombras.

(1) ADAPT - Association pour l’Insertion Sociale et Professionalle des Personnes Handicapées (www.adapt.net)

Paul Tournier

Tradução: Fernando Sabóia Vieira

Um comentário:

  1. Boa Noite.
    Estou a procura do livro "A Bíblia e a Medicina " de Paul Tournier, em português, o senhor poderia me ajudar nessa busca?
    Grata.
    Jeane Mota

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