Páscoa: uma crônica sobre a liberdade cristã
Irmãos queridos,
Nesses dias somos chamados a meditar no sacrifício de Jesus, nosso Cordeiro Pascal. Os elementos da história de Israel, na qual se insere a Ceia do Senhor e Seu martírio, nos inspiram e nos revelam o mistério de Deus em Cristo: a escravidão, o chamado, a resistência, a mão poderosa de Deus, o sacrifício dos primogênitos, a expiação pela morte vicária do animal, o sangue, a aliança, a peregrinação pelo deserto, a Terra Prometida.
Libertados do jugo do Faraó, os hebreus descobriram, na passagem pelo deserto, que a escravidão lança seus grilhões e algemas profundamente na alma humana e, assim, eles não conseguiram viver a liberdade naquela geração que fora criada no Egito. Deus teve que esperar os filhos nascidos no deserto, mas nascidos livres, para dar cumprimento a Sua promessa feita a Abraão.
Também nós fomos libertados da escravidão do pecado, chamados à comunhão com o Senhor, enviados a uma peregrinação e a uma missão até o dia em que estaremos no Reino Eterno.
"Foi para a liberdade que Cristo vos libertou", proclama o apóstolo. Jesus nos libertou para vivermos como livres. No entanto, como ocorreu com aquela geração que saiu do Egito, nossa alma permanece, muitas vezes, encolhida, tímida, temerosa de sua liberdade diante do desconhecido, das imprevisíveis e incríveis possibilidades que se nos apresentam como desafios existenciais no seguir Jesus e viver o Seu Reino neste mundo hostil.
Fomos, por muito tempo, escravos do tempo, da razão, do natural, do possível. Fomos escravos da história, da cultura, da sociedade que criamos, dos costumes que inventamos, dos valores que incorporamos para tornar tolerável a existência, para apaziguar nossa angústia e alienação. Fomos escravos de nós mesmos, de nossas limitações e do nosso egoísmo, forças que nos atraem poderosamente para o centro de nós mesmos. Fomos escravos e em nós ainda permanecem, profundas em nossa alma, marcas das algemas que nos prendiam. Não raro, nos comportamos como se ainda estivéssemos presos a elas.
Lembro a história de um menino que mantinha um grande elefante preso a um barbante. Perguntado por que o animal não se soltava, o garoto respondeu: "É que eu o mantenho preso assim desde filhote, quando ele não tinha forças para romper o laço. Agora, está acostumado, nem tenta mais...".
Amados, Jesus nos libertou para que fôssemos livres. Livres para andar pela fé, e não pela razão, para experimentar o sobrenatural, além do natural, para vencermos os desafios que nos levarão à eternidade, para amarmos contra o nosso egoísmo, para sermos santos a despeito do pecado, para a comunhão com Ele, embora criaturas imperfeitas e limitadas. Habita em nós o poder que ressuscitou Cristo dentre os mortos. Por que não o usamos? Porque fomos criados escravos e não sabemos viver a liberdade que temos.
Os hebreus não eram guerreiros até aquele momento de sua história. Haviam sido pastores nômades, agora eram escravos. Quando chegaram ao Egito não passavam de um clã familiar. Quatrocentos e trinta anos de servidão não os haviam preparado para a vida em liberdade.
Desse modo, sua libertação não veio por meio de um processo de conscientização, de reivindicação de direitos ou de luta de classes. Não foi obra do povo e nem de seus líderes. Não teve a ver com nenhuma lógica de dialética histórica. Sua libertação foi um ato poderoso da soberania de Deus. Eles foram violenta e quase forçosamente lançados à liberdade!
Nós, cristãos, muitas vezes nos vemos assim: desafiados a uma vida de liberdade, de lutas, de confrontos, de experiências tremendas com o Senhor, com Sua Presença, Sua Santidade e Poder para a qual não nos sentimos capacitados ou preparados.
No entanto, podemos ter a confiança de que contamos com melhor ajuda do que a obtida por Israel, com melhores promessas, com um superior sacrifício e com uma mais perfeita aliança. Alguém maior do que Moisés. Um Cordeiro humano, sem defeito, provido pelo próprio Pai. A vitória sobre a morte na manhã de domingo, o Espírito de Deus derramado sobre os homens.
Não apenas libertados de uma escravidão social ou política, mas libertados de nós mesmos, do pecado, do poder das trevas e do domínio da morte. Ele mesmo, o Cordeiro que esteve morto mas que vive, vem habitar em nós, pelo Seu Espírito eterno.
Não podemos nos esquecer de que um dos significados da Páscoa é passagem, caminho, saída, peregrinação para o lugar da promessa. Nós, às vezes, cuidamos muito mais do que ficou para trás, do Egito que abandonamos, nos fixando no que renunciamos, nos vícios que tínhamos e na morte na cruz do que no que o Senhor nos propõe à frente, em Canaã para onde vamos, contemplando suas delícias e virtudes, desejando viver a vida que desceu da cruz.
Olhando para trás, o caminho sempre nos parecerá ter sido até ali longo e penoso, cheio de dores e de perdas, o que nos dá pouco ânimo para prosseguir. Olhando para frente, entretanto, para a promessa, somos renovados, como Calebe, que, aos oitenta anos, após quarenta de caminhada pelo deserto, se declara tão forte e disposto quanto no início da jornada. Calebe não envelheceu porque embora seus olhos naturais vissem o deserto, sua alma guardava a imagem da Terra Prometida que ele tinha visitado como espia, e a contemplava intimamente, a tornava atual e poderosa pela fé, se enchia dela. Assim, o caminho não lhe foi longo e as aflições tidas como "leves e momentâneas".
Caros irmãos, o sacrifício de Jesus nos convoca a vivermos contemplando a promessa, com os olhos na eternidade, no Autor e Consumador da nossa fé, enquanto cumprimos nossa jornada e nossa missão como servos do Reino.
Seremos, assim, continuamente renovados e sustentados pelo Senhor, vivendo a liberdade para a qual Ele nos libertou. O caminho não nos parecerá penoso, deixaremos "as coisas que para trás ficam" e seguiremos para o alvo, para o "prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus".
Graça seja com todos.
Brasília, Páscoa de 2010, aD.
Fernando Sabóia Vieira
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É uma grande verdade, muitas vezes vivemos como se ainda fôssemos escravos do pecado, como que olhando para trás. Gostei muito do texto. Um abraço,
ResponderExcluirAndré