quinta-feira, 7 de julho de 2022

 A Politização do Evangelho e a “Cristianização” da Política

 

Fernando Saboia Vieira

Bel. em Relações Internacionais

Advogado

Mestre e Doutor em Ciência Política

 

Brasília, julho de 2022, AD.

 

 

         Por politização do Evangelho, queremos nos referir à tentativa de extrair do Novo Testamento um modelo institucional “cristão” de sociedade e de governo, ao esforço interpretativo das Escrituras no sentido de legitimar ou prescrever, do ponto de vista bíblico, uma forma específica de ordenamento social, econômico ou político. 

Em releituras “modernas” das Escrituras, em geral anacrônicas e orientadas por interesses seculares e ideologias, buscam-se nas palavras de Jesus e dos Apóstolos prescrições normativas quanto a estruturas e classes sociais, instituições políticas, modelos econômicos, formas de organização da sociedade, do estado e do exercício poder. 

Trata-se, em verdade, de uma abordagem tão antiga quanto o próprio Evangelho. Esse foi, no entanto, um caminho que Jesus recusou expressamente, o de reformar a sociedade e o estado por meio da restauração do trono de Davi, da libertação política de Israel e da recomposição da estrutura social do Antigo Testamento, ou da instauração de qualquer outra considerada adequada a Seus ensinos sobre o Reino de Deus, ou deles decorrente.

         Não há nas palavras de Jesus, nem nos ensinos dos Apóstolos, qualquer prescrição, orientação, conselho ou princípio no sentido de recomendar um modelo ou desenho institucional de sociedade, de governo ou de ordenação política.

         Chega a ser embaraçoso para os leitores contemporâneos o silêncio do Novo Testamento quanto ao imperialismo romano, à brutalidade de suas guerras de conquista, à escravidão e à exploração econômica dos povos dominados, por exemplo. E quase escandaloso o mandamento de sujeição às autoridades civis e políticas num momento histórico em que quem governava o Império era Nero, o maior perseguidor e assassino de cristãos.

         Na Idade Média, a Igreja Católica Romana, institucionalizada e secularizada, buscou legitimar a autoridade e o poder dos reis e governantes políticos, ou mesmo exercê-los diretamente, combinando elementos do Antigo Testamento com fórmulas oriundas de teocracias não cristãs, como a islâmica, à falta de qualquer base para tanto no Novo Testamento.         

 

         Ainda na modernidade não cessaram as tentativas de ver em Jesus Cristo um reformador social e de fazer, a partir de leituras descontextualizadas e ideologicamente enviesadas de seus ensinos, ilações e prescrições sobre formas e estruturas de sociedade, de governo e de instituições políticas.

         Há, até mesmo, quem espere, ainda hoje, a restauração política do trono de Davi e de Israel como nação escolhida de Deus!

         Na segunda metade do século passado, diversas formulações teológicas foram produzidas com o objetivo de tentar fazer derivar um modelo institucional de organização social e política a partir do Evangelho e do Novo Testamento, e de inserir a Igreja nos embates pelo poder secular a fim de implementá-lo.

Partindo da correta percepção de que os cristãos não podem ser insensíveis nem omissos diante do sofrimento dos desvalidos e socialmente oprimidos, transitou-se de propostas de participação e atuação na sociedade, com vistas à proclamação do Reino, como os movimentos do Evangelho Social e da Missão Integral, para doutrinas e práticas de enfrentamento aberto das estruturas sociais tidas como injustas, culminando por se chegar à busca  efetiva pelo poder a fim transformá-las por essa via, tanto na esfera da disputa política, quanto, até mesmo, em combates armados, a exemplo do defendido pelas chamadas Teologias da Libertação, de viés marxista.

         Nos últimos anos, temos presenciado uma nova vertente dessa tentativa de politizar o Evangelho, utilizando-se a ponte conceitual e ideológica do que se tem denominado de neoconservadorismo. Diz-se novo porque, entre outras características, diferentemente do conservadorismo clássico, essa versão atual foca, do ponto de vista discursivo e de estratégia de ação, principalmente, em valores morais, e não diretamente nas estruturas sociais. 

No entanto, cada vez mais, os movimentos conservadores hodiernos têm buscado expressão política e atuado para obter e exercer o poder e, por esse caminho, tentar mudar as leis, as instituições e as estruturas sociais na direção do que consideram ser um modelo de sociedade e de governo mais de acordo com seus valores, em grande parte qualificados como valores “cristãos”.

Ou seja, trata-se de obter o poder político para implementar um tipo de sociedade que se pretende estar em consonância com o Evangelho de Jesus e o Novo Testamento, e por eles legitimado ou mesmo requerido.

         Consideramos importante e necessário, nesse passo, distinguir participação e atuação social de politização do Evangelho.

Cristãos devem ser sal e luz, devem agir para tornar a sociedade mais justa, para que haja paz e prosperidade para todos, inclusive na esfera política. Devem fazer o bem e proclamar o Reino de Deus tanto em palavras quanto em obras, seguindo o exemplo de Jesus.

Cristãos devem, quando necessário, assumir posturas de denúncia profética quanto à imoralidade, à corrupção, à opressão e às injustiças na sociedade, principalmente aquelas promovidas ou toleradas pelas autoridades às quais caberia a administração da paz e da justiça. Isso pode levar, e, de fato, levou ao longo da história, a confrontos com pessoas poderosas e regimes políticos iníquos, ao ponto da perseguição e retaliação por parte desses.

Todavia, os cristãos não têm um modelo institucional de sociedade para oferecer e, menos ainda, de organização política, simplesmente porque Jesus Cristo não os tinha, nem os Apóstolos.

         A politização do Evangelho tem como inferência lógica e como sua necessária contraface o que estamos chamando de “cristianização” da política: não apenas influenciar, mas assumir o poder político para usá-lo como meio adequado e legítimo para a implementação de um modelo “cristão” de sociedade.

         A “cristianização” da política, então, seria a estratégia de usar o poder secular e político, seus recursos, influências, métodos e capacidade de pressão para “cristianizar” a sociedade a partir da transformação de suas estruturas institucionais e políticas.

         Dessa maneira, o neoconservadorismo se apresenta como expressão necessária do cristianismo para implementação do Reino de Deus na sociedade, e se arvora na condição de ideologia política “cristã”, inspiradora, orientadora e motivadora de seus agentes na luta pelo poder, por meio de seus mestres, filósofos e doutrinadores.

         No entanto, qualquer leitura honesta do Novo Testamento, sob a ótica da fé nas Escrituras, não pode deixar de reconhecer que a política é um meio completamente inadequado para a proclamação e propagação do Reino de Deus. Esse caminho também foi expressamente recusado por Jesus e pelos Apóstolos.

         O Reino que o Senhor pregava não é deste mundo e o poder para implementá-lo é espiritual, e não natural. Estruturas sociais, por melhores que sejam, não podem produzir conversão ou santidade. Não existem países, nações ou governos “cristãos”, no sentido bíblico desse termo. Existem, sim, homens e mulheres convertidos ao Evangelho de Jesus Cristo, oriundos de todos os povos, culturas e nações, ao longo dos séculos e em todos os lugares do planeta, em sociedades organizadas politicamente das mais diferentes maneiras.

 

         Essa estratégia, a de tentar “cristianizar” a política, foi utilizada nos séculos seguintes à vinda de Jesus, e é até hoje, desde a aliança da Igreja Católica Romana com o Imperador Constantino, com nefastas e tristes consequências para a causa do Reino de Deus. 

Infelizmente, ao longo desses dois milênios, em diversas ocasiões, a Igreja institucionalizada deixou de lado as palavras de Seu Senhor: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21), e se envolveu em alianças e negócios espúrios deste mundo.

         É com espanto e tristeza que vemos, nos nossos dias, postulantes ao poder político serem “ungidos” por líderes de instituições identificadas com a Igreja, como se fossem esses disputantes os escolhidos de Deus para a transformação da sociedade e implementação dos chamados valores “cristãos”.

         A politização da interpretação e do ensino das Escrituras, das pregações e mensagens dos púlpitos presenciais e virtuais, das ditas profecias, dos ministérios, dos movimentos, das manifestações feitas em nome do cristianismo, assim como a tentativa de legitimar lideranças e práticas políticas como instrumentos de implementação do Reino, por vezes a despeito de suas evidentes contrariedades com os ensinos de Jesus, nos lembram, tragicamente, as palavras do profeta Ezequiel:

 

         “Os seus sacerdotes transgridem a minha lei e profanam as minhas coisas santas; entre o santo e o profano, não fazem diferença ... Os seus príncipes no meio dela são como lobos que arrebatam a presa para derramarem o sangue, para destruírem as almas e ganharem lucro desonesto. Os seus profetas lhes encobrem isto com cal por visões falsas, predizendo mentiras e dizendo: Assim diz o Senhor, sem que o Senhor tenha falado” (Ezequiel 22:26-28).

 

 

         Soli Deo Gloria

 

         Fernando

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