terça-feira, 29 de junho de 2021

 Como o Evangelho de Jesus poderá sobreviver num Brasil evangélico?

 

Fernando Saboia Vieira

Junho/2021


 

         Pode escolher um nome: evangélico, cristão, discípulo, protestante, neopentecostal, qualquer um. Em pouco tempo nenhum desses significará mais nada. Vamos considerar o termo “evangélico”, que é como o censo demográfico, as pesquisas sociais e os meios de comunicação identificam, de modo geral, no Brasil, os cristãos não católicos. E como cada vez mais brasileiros se autodenominam.

         Viver num país evangélico. Esse tem sido um grande temor e uma real preocupação para mim em todo esse cenário confuso que vivemos hoje. Tira-me mais o sono do que a economia, a pandemia e a política. 

As tentações e provações mais perigosas para a Igreja, ao longo de sua história de já mais de dois milênios, nunca vieram de perseguições e rejeições, mas, sim, da aceitação e convivência amena com o mundo, da satisfação com alvos e conquistas seculares, de encontrar espaços confortáveis no reino dos homens, quer de participação, quer de isolamento.

Se formos fiéis a Jesus e a Sua mensagem, devemos esperar sermos sempre uma minoria perseguida e rejeitada por um mundo inimigo de Deus, regido por homens escravos do pecado e sujeitos aos poderes espirituais da maldade. Infelizmente, parece que boa parte dos que agora se identificam como Igreja de Jesus tem uma expectativa muito diferente disso.

No nosso País, hoje em dia, os cristãos não católicos são classificados, de modo geral, em duas categorias: os neopentecostais e os demais evangélicos. 

É claro que não é assim que nos vemos, mas é desse modo que temos sido vistos e considerados pelas pessoas. E, sejamos honestos, o mundo tem o direito de nos julgar pelo que em nós vê e de nós ouve. É, de fato, sobre nós que recai o ônus e pesa a obrigação de darmos um testemunho claro, verdadeiro e perceptível da nossa fé no Evangelho de Jesus. É da essência do nosso chamado para sermos e fazermos discípulos do Senhor.

Enquanto os denominados neopentecostais vão se escondendo nos seus guetos sociais e nos seus discursos radicais, pronunciados mais para si mesmos, para reforço interno de suas posições, do que para proclamação do Reino e testemunho da fé aos de fora, os outros evangélicos vão se confundindo com o mundo, se mimetizando, buscando espaço, reconhecimento e aceitação, e também, evidentemente, os confortos e recompensas daí decorrentes, materiais ou não.

Não podemos esquecer, nesse contexto, um número significativo de grupos, ministérios e pessoas que flutuam entre uma coisa e outra, com elementos de radicalização e de conformação, de isolamento e de integração, curiosa e convenientemente combinados, a oscilar entre o escapismo e a assimilação pelo mundo.

Enquanto os neopentecostais vão, de certo modo, se retirando da cena, se não por diminuírem em número, mas por perderem a relevância no que diz respeito ao testemunho e ao anúncio do Evangelho de Jesus para os incrédulos, os demais evangélicos crescem em quantidade e em influência, com mais adeptos e mais espaços nos diversos segmentos sociais.

De um modo ou de outro, vai-se tornando popular e se disseminando, presencial e virtualmente, uma estranha religião, sincrética, amorfa, ao mesmo tempo humanista e espiritualista, secular e mística, hedonista e ascética, que pretende se considerar cristã e que se apropria, de algum modo, do linguajar evangélico, tornado cultura religiosa e superstição.

O sucesso dessa distorção do Evangelho de Jesus vem, em grande medida, de sua plasticidade, de sua adaptabilidade a diferentes propósitos, verdades, ideologias e códigos morais, da facilidade de ser afirmada, e da sua capacidade de até mesmo conferir aos seus professantes um certo status social, de atrair um público consumidor, de consagrar carreiras, de viabilizar projetos, de construir histórias de sucesso. 

Aproxima-se, assim, desta nossa geração, a imensa tragédia da prevalência e da consagração de um cristianismo tolerável, quase consensual, aceito e assimilado pela sociedade dos homens, quer quando se isola, quer quando participa: sal que não salga, luz que nada ilumina. E é até mesmo aplaudido e honrado, convidado a participar dos círculos de decisão e de influência nas diversas esferas sociais e a ser protagonista no mundo cultural, econômico e político

Afinal, muitos dos que se dizem evangélicos em pouco ou nada se distinguem das demais pessoas, mesmo daquelas assumidamente incrédulas ou que rejeitam explicitamente o Evangelho de Jesus. Talvez possam ser identificados por um certo jargão religioso que inclui citações bíblicas, em geral descontextualizadas e distorcidas, talvez por algumas cerimônias um tanto bizarras, por alguns costumes antiquados ou até mesmo por uma certa presunção de superioridade. 

No mais, vivem como seus contemporâneos, buscando as mesmas coisas, as mesmas recompensas, os mesmos confortos, se relacionando da mesma forma com as pessoas e com a vida. 

Os mesmos temores e os mesmos amores.

Os seus “famosos”, influenciadores, artistas, políticos, intelectuais e expoentes nos diversos setores e atividades da sociedade buscam os mesmos alvos de sucesso, as mesmas recompensas e os mesmos espaços de reconhecimento, medidos pelos mesmos critérios das demais pessoas, independentemente de sua postura em relação a Deus e ao Evangelho de Jesus.

Testemunhei, ao longo de minha carreira profissional e acadêmica, os evangélicos crescerem como uma força social e política relevante, com peso cada vez maior nas eleições e na ocupação de espaços de poder. E se tornarem massa de manobra, e serem manipulados por líderes inescrupulosos, em favor de projetos pessoais e de grupos particulares, religiosos ou não.

Isso, naturalmente, com as devidas elaborações discursivas, piedosas e teológicas, a tentar dissimular, um tanto descaradamente, ideologias e interesses subjacentes, tanto à esquerda quanto à direita no espectro político e social.

Defender os valores e a conduta cristã como padrões para políticas públicas, como estilo de vida a ser imitado por todos ou como expressões culturais perverte a essência do Evangelho de Jesus, que é o chamado a um encontro pessoal com o Deus que existe e se manifesta, mediante o arrependimento dos pecados, negação de si mesmo e a obediência ao Senhor.

Usar o Evangelho de Jesus como receita de sucesso, como jargão espiritual, como uma variante da religião humanista da virada deste século é negar às pessoas uma real oportunidade de entrar nesse relacionamento com Deus, único capaz de responder a suas necessidades, questionamentos e angústias existenciais.

         É tempo de sermos claros sobre algumas coisas, se é que pretendemos continuar a nos identificar como cristãos e, principalmente, se somos, de fato, seguidores de Jesus e do Seu Evangelho.

         Certamente não falo pela coletividade dos evangélicos de qualquer tipo ou pela generalidade de cristãos não católicos. O uso da primeira pessoa do plural a seguir é apenas um convite àqueles que porventura compartilhem essa minha preocupação pessoal a nos unirmos em torno de alguns posicionamentos, a meu ver necessários nesses dias.

 

Não queremos consertar este mundo, mas anunciar o seu fim e a chegada do novo! Vamos nós, a Igreja, trabalharmos em sentido oposto ao que cremos ser, segundo as Escrituras, o desfecho que a história humana terá até a volta do Senhor? Ou vamos nós, no outro extremo, nos eximir da tarefa de anunciar o Seu Reino até que Ele venha? 

         Não queremos que as pessoas concordem conosco, vivam como vivemos, ouçam nossas músicas, falem como nós falamos, defendam os valores e causas que defendemos, comprem nossos produtos, sejam nossas seguidoras presenciais ou virtuais, frequentem nossas reuniões, nos acompanhem nas redes sociais ou financiem nossos projetos!

Queremos que elas se encontrem com o Deus vivo, se arrependam dos seus pecados e sejam resgatadas pelo sangue de Jesus derramado na cruz. E, assim, encontrem o sentido e valor eterno de suas existências!

         O Senhor quer que nos preparemos para sermos perseguidos e rejeitados, quanto mais o tempo de Sua vinda se aproxima, e estamos nós a lutar para sermos aceitos, considerados, ouvidos e honrados por um mundo ímpio, governado impiamente em nome da impiedade?

         Quem nos enviou a mudar a sociedade, as leis ou os governos? Quando isso se tornou nossa missão? Por ordem de quem? Que projeto de governo ou de sociedade podemos, honestamente, apresentar às pessoas como em nome de Jesus, ordenado por Ele?

         Que as pessoas e o mundo nos rejeitem, nos odeiem e nos persigam por causa do escândalo da cruz, e não por nossas opiniões e posicionamentos em questões que nada têm a ver com a proclamação do Reino!

         Que vergonha sermos rejeitados e perseguidos, ou aceitos e honrados, porque nos veem como direitistas ou esquerdistas, conservadores ou não conservadores, como defensores de posturas políticas e ideológicas ou de códigos morais, e não por sermos identificados como imitadores de Jesus!

         Não podemos ser prisioneiros nem das utopias humanistas, que são, na verdade, desespero, nem do ufanismo religioso, que nada mais é senão uma outra forma de desespero, ainda mais aguda e perigosa. 


A fé nos revela e nos leva a participar da totalidade da Realidade, que integra o humano, o natural, o espiritual, o visível, o invisível, o tempo e a eternidade, Realidade essa que subsiste e é sustentada pela Presença do Ser pessoal e infinito que a criou.

         Apenas o Evangelho de Jesus, com sua convocação ao arrependimento e o anúncio do Reino dos Céus, com seu chamado à fé no Criador e à obediência a Sua vontade revelada, expurgado de contaminações ideológicas, filosóficas, doutrinárias, culturais ou políticas, poderá sustentar a vida da Igreja e o seu testemunho em tempos tão críticos, e continuar a ser “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rom 1:16), manifestado, sem temor, em qualquer sociedade, cultura, povo ou nação. 

 

 

         É esse Evangelho que temos que viver e anunciar. É a pregação desse Evangelho que vai carregada e potencializada pelo poder do Espírito Santo. Apenas nela há esperança.

 

         Caros companheiros e companheiras de jornada, que a suficiente graça de Jesus seja com todos.

 

         Fernando

 

         

 

2 comentários:

  1. Texto irretocável! Deus continue a abençoá-lo e a inspirá-lo.

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  2. Amém. Ou seja, imitar a Jesus e seus discípulos, que confrontavam mesmo era o pecado e a religiosidade, sem inclinação nem discursos para alianças e alinhamentos políticos.

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