sexta-feira, 10 de julho de 2020

Sossegar a alma

SALMO 131

“Fiz sossegar a minha alma”

(Fernando Saboia Vieira)



Queridas irmãos e irmãos, companheiros de jornada,


Nesses dias de luta contra essa enfermidade que atinge a humanidade em escala global não tem sido fácil encontrar sossego de alma. E, assim mesmo, nada mais parece tão necessário em tais circunstâncias.
Sossegar a alma não é fácil em nenhuma situação. Desde a Queda, cada pessoa nascida de Adão e Eva encontra-se acometida de um desequilíbrio interno e de um desencaixe externo que tornam a paz interior uma experiência extremamente rara. A angústia existencial, marca inescapável da condição humana, e os conflitos interpessoais e com o próprio meio ambiente nos colocam a todos numa precária condição emocional e espiritual no que diz respeito à possibilidade de ter tranquilidade de coração.
No entanto, são grandes os perigos do desassossego interior, amplificados ainda mais nesses dias de pandemia: a ansiedade, o medo, a depressão, o desespero e todas as demais patologias da alma já endêmicas na modernidade.
Em tal cenário, são oferecidos, infelizmente, um número cada vez mais elevado de enganosos caminhos de autoajuda humanista ou religiosa, como as reprogramações mentais e os treinamentos emocionais, promovidos por coachs, facilitadores, pastores e diversos “gestores de alma”, os quais preconizam desde exercícios, relaxamentos e truques psicológicos até mesmo drogas, ideologias e estilos de vida.
O grande problema dessas abordagens é elas ficam na superficialidade e exterioridade do drama da alma humana e não produzem efeitos transformadores permanentes, exatamente por não preencherem a necessidade mais profunda do nosso ser. Nas palavras de Santo Agostinho, 

“Fizeste-nos, ó Deus, para Ti mesmo, e nosso coração permanece desassossegado até encontrar sossego em Ti”.

Mais ainda, com sua ênfase no fortalecimento da vida do self – do ego, do eu voltado para si mesmo – essas alternativas apresentadas nos afastam do caminho do recolhimentoesse, sim, capaz de nos levar à experiência do encontro pessoal e íntimo com o Pai, nossa única possibilidade de realmente aquietarmos e sossegarmos a alma, enchendo-nos de confiança e esperança.
O que é, todavia, esse recolhimento a que nos referimos? Para os Pais da Igreja e mestres da espiritualidade cristã, o recolhimento é a busca conscientee contínua da percepção da Presença íntima de Deus que habita dentro de nós, a busca de uma constante atenção a essa Presença interior e a busca, finalmente, de união ao Pai num vínculo de amor.
É, pois, recolhimentouma mudança de foco, de atenção, do exterior – do mundo que nos cerca, das circunstâncias que nos acometem, das preocupações e medos que nos assaltam, dos encantos e prazeres que nos atraem – para o interior do nosso ser, onde Deus habita no santuário do nosso coração. É a busca de uma sintonia com a dimensão espiritual da nossa pessoa, dos outros, da nossa existência e da realidade.
Para caminharmos no sentido desse recolhimento, é necessário, inicialmente, que nos desprendamos de coração do mundo e das coisas que nele há, tanto as boas e alegres, quanto as más e tristes, atentando para o caráter efêmero e para a natureza transitória delas. Encontramos a seguinte exortação da parte do Apóstolo Paulo sobre esse necessário desprendimento:

“Isto, porém, vos digo, irmãos: o tempo de abrevia; o que resta é que não só os casados sejam como se não o fossem; mas também que os que choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como não se alegrassem; e os que compram, como se nada possuíssem; e os que se utilizam do mundo, como se dele não usassem, porque a aparência deste mundo passa”

E na 1ª Carta de João:

“Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade do Pai permanece eternamente”


Jesus declarou a nós, seus discípulos:

“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas acumulai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração”

Esse desprendimento do mundo e de sua aparência nos inicia na jornada até o encontro com a Presença, que vai ordenar nossa vida interior e, a partir desse centro vital dinâmico do Espírito Santo transmitindo a vida de Deus ao nosso espírito, também vai ordenar e dar sentido ao mundo exterior e à nossa vida nele.
Essa experiência de desprendimento, de recolhimentoe de encontro com a Presença vai nos possibilitar ver as coisas do mundo e da vida como elas são, perceber qual o valor que porventura tenham dentro do propósito de Deuse aprender a nos relacionarmos com elas segundo a vontade do Pai para nós .
 
Caros irmãos e irmãs, a proposta deste exercício de meditação que compartilho com vocês é usarmos o Salmo 131 como um caminho de desprendimento recolhimentoaté encontrarmos o silêncio, o sossego de alma e a esperança, por meio da comunhão consciente da presença de Deus dentro de nós.
Davi começa o Salmo descrevendo uma atitude de humildade, que é a condição inicial necessária e imprescindível para se desprender de si mesmo e do mundo e para se aproximar do Deus vivo. Humildade que é a consciência de nossa condição de criaturas diante do Deus criador de quem flui momento após momento nossa própria vida e existência.
Depois, ele nos leva a uma busca do silêncio e da solitude do recolhimento por meio de um diálogo íntimo do nosso espírito com nossa alma que comunica ao nosso mundo interior o Verbo eterno, a Presença vida e amorosa do Pai.
Finalmente, somos conduzidos ao descanso e confiança de quem espera no Senhor, de quem coloca n’Ele toda a sua esperança.

O que proponho aqui é refletirmos sobre cada declaração do Salmo como um caminho em busca do recolhimento e da união da alma com o Criador. O mais importante é que cada um de nós possa fazer isso de forma íntima e pessoal com o Senhor, tornando nossas as declaração de Davi nessa oração.


SALMO 131


v. 1. Senhor, não é soberbo o meu coração, nem altivo o meu olhar; não ando à procura de grandes coisas, nem de coisas maravilhosas demais para mim.
Logo ao início do Salmo, Davi nos traz uma declaração sobre a necessidade de humildade do coração, do olhar e da procura.

Um coração humilde. 

Só podemos aprender verdadeiramente a humildadeolhando e imitando Jesus, seu esvaziamento, serviço e sujeição até a morte na cruz, Ele que subsistia na forma de Deus!
Queridos, para encontrarmos o caminho do recolhimento e da união com Deus é necessário, absolutamente imprescindível, que renunciemos ao orgulho, à soberba, à própria imagem, opiniões, posições, demandas, direitos. 
Devemos considerar, em oração diante do Senhor, quanta soberba há no nosso coração e quanto orgulho revelamos nas nossas palavras, sentimentos e relacionamentos.
Jesus disse que o Reino dos Céus é dos pobres em espírito. As Escrituras afirmam que Deus resiste aos soberbos, mas aos humildes concede graça.

Um olhar humilde.

Muitas vezes a maneira como olhamos para as pessoas , como nos postamos diante das circunstâncias da vida e como percebemos as coisas que nos acontecem ou não acontecem revelam nossa altivez e arrogância.
Somos também vítimas, não raro, da “concupiscência dos olhos”, cobiçando e medindo as coisas e pessoas pelo bem e prazer que elas podem nos proporcionar.
Jesus disse que os olhos são as lâmpadas do corpo. Se nosso olhar for mau, todo nosso ser estará em trevas. 
No caminho do recolhimento é imprescindível que aprendamos a ter um olhar humilde para com a vida, com as pessoas e até conosco mesmos.




Uma procura humilde.

Vivemos um tempo em que todos querem grandes projetos e realizações. A “soberba da vida está apregoada por todas as partes como condição de felicidade e sucesso. Soberba das riquezas, soberba do conhecimento, soberba do poder, soberba dos estilos de vida.
Nunca tivemos tantas pessoas se arvorando na condição de especialistas e dando conselhos de todos os tipos, fazendo “ousadas asseverações” sobre assuntos que absolutamente desconhecem!
Queridos companheiros e companheiras, se queremos seguir adiante nesse caminho do recolhimento e da união com Deus precisamos renunciar às coisas “grandes e maravilhosas demais” para nós.
Vamos nos lembrar que a oração desse Salmo foi feita por um homem que foi um grande guerreiro, rei, profeta, artista... Mas que almejava algo ainda mais imenso e maravilhoso: o sossego da alma e a esperança do coração em Deus.


v. 2. Pelo contrário, fiz calar e sossegar a minha alma; como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe, como essa criança é a minha alma para comigo.

Seguimos agora a jornada em busca do recolhimento, do silêncio e da solitude.

“Eu fiz”. Para buscarmos o recolhimento e a união com Deus, é necessário desenvolver uma conversa íntima consigo mesmo. O Espírito de Deus fala com nosso espírito; e nosso espírito deve dialogar com a alma, fazendo com que o Logos divino flua e atinja todo nosso ser interior.
Encontramos essa linguagem no Salmo 42, que expressa o mais profundo desejo da alma sedenta por Deus: 

“Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu”

Amados, devemos constantemente fazer calar e sossegar nossa alma falando a ela as palavras divinas que o Espírito comunica ao nosso espírito, pois essas palavras carregam sentido, significado e poder para restaurar e transmitir vida ao homem por inteiro, corpo, alma, mente, coração, vontades, propósitos, inteligência, ânimo.

“Eu fiz calar”. Muitas vozes falam o tempo todo em nossa alma: pessoas do presente e do passado, memórias, amigos e inimigos, professores e influências, livros e experiências, o ambiente, as redes sociais e mídias etc. Também vozes do mundo espiritual, conceitos, ideias, ideologias, propagandas. Vivemos numa geração em que somos a todo momento literalmente atingidos por um sem número de imagens e informações que tornam muito difícil encontrar o sossego e a quietude interior, na insanidade de um mundo conectado globalmente todas as horas do dia.
Todavia, precisamos buscar o silêncio interior e a solitude para que possamos ouvir a Voz que fala continuamente sem sons e sem palavras, mas que em todas as linguagens da Criação transmite sua mensagem e Sua Vida.
Não podemos sossegar a alma dialogando, discutindo, debatendo, argumentando com todas as vozes angustiadas, assustadas, sedutoras ou confrontadoras que falam dentro de nós o tempo todo.
É necessário trazer constantemente à consciência a Presença do Deus Todo Santo e Todo Poderosos, perante o qual o temor e a fascinação da Sua manifestação devem preencher nossa alma com silêncio e adoração.
Não se trata de um truque psicológico ou de uma reprogramação mental. Não é uma questão de estilo de vida ou de treinamento emocional ou comportamental. É uma experiência espiritual que transcende nossa emoção e nossa razão, o que fazemos e não fazemos, para atingir a essência do nosso ser e da nossa existência.

“Eu fiz sossegar a minha alma”. Muitos sentimentos e emoções nos atravessam a alma a cada instante da existência, produzindo ansiedades, expectativas, temores, alegrias, desejos, frustração. 
Se nos permitirmos seguirmos o curso de nossa natureza humana caída, vamos deixar que nossa alma se canse e se desgaste viajando para lugares distantes, no mundo das possibilidades, nas lembranças de passados e expectativas de futuros, alegres ou tristes, em conflitos reais ou imaginados, em perigos presentes ou ausentes e que ela se quebre e adoeça vítima do caos de uma existência, distante do centro dinâmico que move todo o universo, que é a vontade e o amor de Deus.
Davi usa uma expressão cheia de significado e de ternura para descrever como ele tratava sua alma: recolhida, alimentada e sossegada, como uma criança que acaba de ser amamentada e adormece nos braços de sua mãe!


Ele diz, “como essa criança para com sua mãe, tal é minha alma para comigo”. Temos que sossegar nossa alma para conosco mesmos. É pessoal, é íntimo, é uma experiência vivida no nosso ser interior que se conecta diretamente com Deus, pois fomos animados pelo sopro do Seu Espírito na Criação exatamente para sermos capazes de ter com o Pai essa conexão que nos comunica, momento após momento, a Sua Vida e Natureza, produzindo em nós a Sua Imagem.
Muitas vezes tratamos dura e mesmo cruelmente nossa alma, exigindo dela atitudes, posturas, disposições, convicções, pensamentos, emoções, reações e atitudes perante a existência que ela não é absolutamente capaz de prover, a não ser que esteja alimentada e sossegada na Fonte da Vida, que flui do interior daqueles que foram enchidos pelo Espírito Santo!

Queridos irmãos e irmãs, vivemos numa geração absolutamente obcecada pelo corpo, pela aparência e pela saúde física. E absolutamente ignorante e displicente quanto os cuidados com alma. Não me refiro aqui à busca de bem-estar emocional e psicológico, que tem conduzido muitos aos enganos da religião humanista deste século, mas a um encontro com o Deus que nos criou e com o propósito para o qual fomos chamados à existência.
E é precisamente esse o desfecho do Salmo, o ponto de chegada dessa jornada em busca do recolhimento e da união com Deus.


v. 3. Espera, ó Israel, no Senhor, desde agora e para sempre.

Por meio da jornada do recolhimento criamos o ambiente de silêncio e solitude propício à experiência do encontro com o Senhor, à atenção consciente e contínua a Sua Presença dentro de nós.
Agora podemos experimentar o sossego e a paz de quem espera no Senhor, de quem se entrega completamente ao Seu cuidado.
Acerca dessa esperança, escreveu Thomas Merton:

“Sem esperança, nossa fé nos proporciona apenas uma aproximação com Deus. Sem amor e esperança, a fé apenas O conhece de longe, como a um estranho. Porque a esperança nos lança nos braços de Sua misericórdia e de Sua providência. Se esperamos n’Ele, não apenas saberemos que Ele é misericordioso, mas nós experimentaremos em nossa vida a Sua misericórdia”

Devemos, no entanto, estarmos atentos para o fato de que essa não será, na maioria das vezes, uma experiência de grandes emoções ou de êxtase espiritual. Mais comumente, o fortalecimento de nossa fé e confiança em Deus por meio da comunhão íntima com Ele e da percepção contínua de Sua Presença interior e de Sua açãoem todos os momentos do nosso dia nos levará a viver de uma maneira mais tranquila, sóbria, paciente, humilde, generosa, misericordiosa, operosa e frutífera no desempenho de nossas atividades comuns, nos nossos relacionamentos, nas circunstâncias favoráveis ou adversas que se nos apresentarem.
Que a suficiente graça de Jesus seja com todos vocês.

Seu conservo e companheiro de jornada,

Fernando Saboia

Brasília, julho de 2020, AD.

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