Simplicidade
Fernando Saboia Vieira
ISN/BSB/2023, AD
I - INTRODUÇÃO
1) Reino de Deus, Reino dos Céus
Estrangeiros e peregrinos, não somos do mundo, mas vivemos no mundo e temos nele uma missão.
Assim, uma questão fundamental que enfrentamos diariamente é sobre como devemos lidar ou como devemos nos relacionar com os bens materiais, enquanto estamos na nossa jornada terrena.
Eles podem ser necessários, úteis, desejáveis, mas também sedutores e perigosos, para nós, pessoal e individualmente e para a coletividade familiar, comunitária, social, para a vida natural e espiritual.
Que exemplos e ensinos encontramos no Evangelho sobre esse assunto?
2) A renúncia dos discípulos de Jesus
Lucas 14:25-33
Um ponto inicial é ter em mente que a renúncia radical que nos é exigida para sermos discípulos de Jesus inclui os bens materiais.
No entanto, não tendo sido retirados imediatamente do mundo, deles necessitamos para viver e mesmo para cumprir os propósitos do Reino de Deus até a volta do Senhor.
Essa dualidade se manifesta em nossas vidas como um paradoxo e nos impõe uma reflexão sobre como devemos lidar com os bens materiais, qual seu valor e utilidade para nós e que lugar eles devem ocupar em nossa vida, nos nossos projetos, nas nossas ações, no nosso coração.
Passamos pela “porta estreita” e renunciamos a tudo para seguir Jesus, mas continuamos a viver neste mundo, libertos do pecado, desprendidos das coisas transitórias, transformados e movidos pelo propósito eterno de Deus e, assim, necessitados de recursos materiais para viver e realizar tarefas e cumprir objetivos.
3) A sociedade dos homens
Um outro aspecto é que vivemos numa sociedade construída pelos homens ao longo dos séculos e milênios que sempre tem, como um dos seus fundamentos, nas diversas formas como se organiza, a obtenção, posse e utilização dos bens materiais.
Desde o final do feudalismo medieval, a civilização ocidental experimentou o mercantilismo, o capitalismo, a sociedade de consumo, o comunismo, o socialismo, o estado de bem-estar social, em diversas versões.
Pode-se dizer que a nossa sociedade pós-moderna se caracteriza pela concentração de capital e produção de bens em grande escala, pelo consumismo, pela acumulação de riqueza, pela busca de conforto e sucesso materiais, pelo supérfluo, pelo desperdício, pela ostentação, pelos símbolos de status, pela exposição do sucesso e da boa vida em perfis sociais.
Os ricos querem ser também famosos, influenciadores, o que lhes gera mais riqueza e satisfação.
A vaidade, a soberba, a cobiça, o personalismo, a agressividade são, em muitos ambientes, elevados à categoria de virtudes!
Enquanto isso, milhões de seres humanos continuam na miséria, carentes de itens básicos de sobrevivência, como alimentos, água, remédios, segurança.
Obra do acaso? Carma? Loteria cósmica?
Na verdade, fruto do pecado e de suas consequências – Isaías, Miquéias. Provérbios 13:23.
Devem, os cristãos, serem indiferentes a isso, ou, pior ainda, se deixarem absorver, envolver e contaminar pela mentalidade de sua geração?
4) O manifesto
Não vamos discutir aqui a sociedade, mas sondar nossos corações – nossos conceitos, valores, atitudes, propósito, estilo de vida, amor a Deus e aos homens e testemunho como discípulos de Jesus.
Não pretendo, também, nesta breve reflexão, esboçar uma teologia sobre o envolvimento dos cristãos nos problemas sociais, embora ela seja muito necessária e quase premente nestes dias em que vivemos.
Fomos da teologia da libertação para a da prosperidade, passando por várias formulações de doutrinas de participação e atuação sociais da Igreja, e agora nos deparamos com o chamado conservadorismo que, curiosamente, se assume, no mais das vezes, nesse aspecto dos bens materiais, como uma proposta de Evangelho para segmentos e grupos que desejam ascensão social, silenciando, indesculpavelmente, a meu ver, sobre as desigualdades e injustiças econômicas e sociais.
Mas nós fomos enviados a todos os homens e, especialmente, aos pobres e desvalidos. Se queremos levar a sério o exemplo e os mandamentos de Jesus, não podemos “passar ao largo” e não nos envolvermos com a injustiça, sofrimento e violência que abatem as pessoas próximas a nós, a quem devemos amar tanto quanto amamos ao Senhor!
Essa, me parece, uma reflexão que deverá ser refeita ainda nesta geração.
Não pretendo, nem mesmo, avançar em uma proposta de doutrina de aplicação pessoal ou na indicação de “passos” ou de “práticas”. Não tenho um “padrão” ou “modelo” a sugerir ou indicar, a não ser aquilo que decorre diretamente das páginas do Evangelho e da vida de Jesus.
Também não considero coerente, nem bíblica, uma leitura super espiritualizada, desencarnada, do Evangelho que nos aliene do mundo em que vivemos, das pessoas à nossa volta e dos problemas, necessidades, dramas e angústias que compartilhamos com nossos contemporâneos.
O que quero compartilhar com vocês nesta mensagem é tão somente um manifesto, uma declaração de valores e de princípios nos quais creio, uma tomada de posição pessoal que fiz há muitos anos, uma proclamação de algo que me parece necessário e inerente a uma vida que busca imitar Jesus e cumprir seus mandamentos e propósitos.
Um manifesto de amor a Deus e ao próximo, de comprometimento existencial com o Evangelho, com a misericórdia e bondade do Pai, de fé em Sua justiça, de esperança na Sua vinda e no Seu Reino eterno.
Um manifesto contra o materialismo, o hedonismo, a vaidade, o egoísmo e a futilidade que impregnam nossa sociedade, formam a mentalidade desta geração, e que são cultuados como virtudes pela religião humanista, secularizada e desesperada do século XXI.
Um manifesto em defesa da simplicidade como estilo de vida decorrente da condição de discípulo de Jesus.
COMO CRISTÃO, SOU CHAMADO À SIMPLICIDADE, A DESENVOLVER UM ESTILO DE VIDA SIMPLES, QUE REFLITA MEU DESPRENDIMENTO DO MUNDO, MINHA FÉ E ESPERANÇA NO REINO ETERNO, O AMOR, A MISERICÓRDIA E A BONDADE DE DEUS PAI, COMO NECESSÁRIA DECORRÊNCIA DE UMA AUTÊNTICA IMITAÇÃO DE JESUS.
II – A SIMPLICIDADE NA VIDA E NO ENSINO DE JESUS
Mateus 5:3; Lucas 6:20 – a felicidade dos pobres
Aos pobres pertence o Reino dos Céus. Isso não significa, naturalmente, que todos os pobres ingressarão no Reino por essa simples condição, mas significa que não se pode ter o Reino dos Céus sem se tornar pobre, isto é, completamente desapegado dos bens materiais e totalmente dependente de Deus. Essa é uma clara condição do discipulado de Jesus.
Mateus 5:8 – simplicidade/pureza de coração
Pureza de coração é desejar uma única coisa, sem misturas, sem reservas, sem contaminações. Envolve simplicidade no querer, no admirar, no buscar.
Um dos textos que melhor expressa isso é o poema de Søren Kierkegaard, que transcrevo a seguir:
“Pureza de Coração é Desejar uma Única Coisa
Pai, que estás nos céus! O que somos nós sem Ti? O que é todo o nosso conhecimento, por mais que o acumulemos, a não ser um pequeno fragmento, se não conhecemos a Ti? O que são todos os nossos esforços, ainda que abarquem um mundo inteiro, a não ser um trabalho nunca terminado, se não conhecemos a Ti: o Único, Aquele que é a Única Coisa e que é todas as coisas?
Que Tu dês, então, ao intelecto,
Sabedoria para compreender essa Única Coisa;
Ao coração,
Sinceridade para receber esse entendimento;
À vontade,
A pureza que deseja uma Única Coisa.
Que, na prosperidade, Tu concedas
Perseverança para desejar uma Única Coisa;
Em meio às distrações,
Recolhimento para desejar uma Única Coisa;
No sofrimento,
Paciência para desejar uma Única Coisa.
Tu que propicias tanto o início quanto a plenitude, que Tu possas, logo cedo, ao nascer do dia, dar ao jovem a resolução de querer uma Única Coisa. À medida em que o dia declina, que Tu dês ao ancião uma lembrança renovada dessa primeira resolução, de modo que o primeiro seja como o último e o último como o primeiro, no decurso de uma vida que desejou uma Única Coisa.”
Søren Kierkegaard
In “Prayers from the Heart”, Foster, Richard, ed. Harper/Collins.
Tradução: Fernando Saboia Vieira
Mateus 5:42 – desprendimento, generosidade
Simples as palavras como deve ser simples o gesto: dá a quem te pede. É certo que nem sempre poderemos fazer isso, mas essa deve ser a disposição permanente do nosso coração, a de repartir, abençoar, fazer o bem, sem nos apegarmos egoisticamente aos bens materiais.
A bondade é fruto do Espírito Santo, é uma condição do caráter de Jesus em nós. Ela deve se expressar em atos concretos de generosidade, ajuda, socorro.
Mateus 6:9-15 – simplicidade na oração
O Pai Nosso é uma oração de simplificação. Aponta para as coisas essenciais para nossa vida natural e espiritual. Reflete um total confiança em Deus. Confronta nossos muitos e variados desejos, anseios, temores, cobiças.
Começa exaltando e santificando a Deus, nosso Pai, que é a fonte de nosso sustento material e espiritual, a origem, o sentido e o propósito da nossa existência.
Mateus 6:19-21 – tesouros no céu
Nossos tesouros são aquelas coisas, valores bens e recursos, materiais ou não, que podem suprir nossas necessidades, nos garantir segurança e proteção e nos proporcionar satisfação, prazer e poder.
Os tesouros acumulados na terra são inseguros e transitórios. Podemos perdê-los a qualquer momento e não são capazes de nos proporcionar os bens eternos.
Nosso coração está inevitavelmente ligado aos nossos tesouros, e tenderá a seguir o destino deles, quer o perecimento, quer a eternidade. Assim, precisamos, como discípulos, colocar nosso coração e nossas ações em busca dos tesouros celestiais.
Mateus 6:24-34 – os dois senhores, ansiedade e confiança
O fundamento de uma vida sem ansiedade está na escolha que fazemos sobre a quem serviremos, se a Deus ou às riquezas.
Se dedicarmos nossas vidas à busca de segurança e conforto materiais, estaremos sempre ansiosos quanto a nossa subsistência, satisfação e segurança.
No entanto, se, contrariamente, escolhemos servir a Deus, teremos a confiança e a esperança de que Ele, como nosso Pai celeste, nos suprirá de tudo aquilo que é necessário para nós, uma vez que busquemos o Seu reino e a Sua justiça em primeiro lugar.
Mateus 13:22 – a fascinação das riquezas sufoca a palavra do Reino
Os cuidados da vida e a fascinação das riquezas sufocam a palavra do Reino porque disputam no nosso coração o lugar de deve pertencer ao Senhor, exclusivamente.
O que nos encanta? Com o que nos ocupamos? Em que sentido e com que propósito direcionamos nossos pensamentos, sentimentos e ações?
Lucas 12:13-34 – avareza, sentido da vida, ansiedade, confiança
Jesus não reprova o fato de alguém enriquecer. Ao contrário, os bens materiais são favor de Deus e devem servir aos seus propósitos. Ele tinha pessoas de posses que apoiavam seu ministério.
O homem da parábola, ao invés de se regozijar com os bens adquiridos e glorificar a Deus, tornou-se servo dessa riqueza e passou a direcionar sua vida no sentido de preservá-la e a ela servir. Por essa razão, a avareza é um tipo de idolatria.
III – A SIMPLICIDADE DOS DISCÍPULOS DE JESUS
Mateus 25:14-30 - mordomia
Uma consequência necessária da renúncia do discipulado é a mordomia. Somos mordomos, despenseiros, administradores dos bens e recursos que o Senhor coloca em nossas mãos. Devemos, portanto, usá-los com sabedoria e critério.
Podemos, certamente, deles usufruir e com eles nos alegrarmos, mas não podemos esquecer que provêm da bondade e graça do Senhor, e não meramente de nossas capacidades e esforços.
Gratidão e generosidade devem marcar a maneira como desfrutamos e usamos os recursos que temos da parte de Deus.
1ª a Timóteo 6:6-10 – tentações e ciladas das riquezas, contentamento
Seguindo os ensinamentos de Jesus, também os apóstolos apontaram para uma vida simples como um padrão para os discípulos, independentemente de serem ou não materialmente ricos.
A felicidade está no contentamento, que expressa gratidão e confiança no Senhor. O amor ao dinheiro, e não o dinheiro em si, é a raiz de todos os males. Ele pode facilmente tornar-se um ídolo e nos conduzir por caminhos enganosos.
Filipenses 4:10-13 – contentamento
Alguns são ricos e descontentes. Outros, podem ser pobres e igualmente descontentes. O contentamento não é uma questão objetiva, material, mas uma condição do coração, e tem a ver com a experiência existencial com a suficiente e poderosa graça do Senhor na nossa vida.
Como escreveu o apóstolo, devemos aprender a viver contentes tanto na abundância quanto na carência, sabendo que nossa vida está preservada no Senhor para a eternidade.
1ª aos Coríntios 7:29-31 - desprendimento
A consciência da transitoriedade da nossa vida humana deve nos levar a buscar continuamente o sentido espiritual da existência e a usar os recursos materiais na medida de seu valor.
A eles não devemos nos prender, nem deles depender. Nós os usamos reconhecendo seu valor e utilidade, e mesmo com eles nos alegramos e celebramos a abundância com que podemos ser eventualmente abençoados, mas neles não colocamos nosso coração.
1ª de João 2:15-17 – não amar o mundo nem as coisas que nele há
O apóstolo João é simples e direto em sua exortação: não devemos amar o mundo, nem as coisas que há nele. Principalmente, porque o amor ao mundo exclui o amor do Pai, e esse sim nos é essencial.
Tudo o mais passará, mas o amor de Deus permanece como a essência da eternidade a que fomos chamados e para a qual formos salvos.
Viver um estilo de vida simples é uma marca do discipulado de Jesus e um testemunho necessário para a Igreja, que deve expressar os valores eternos e espirituais do Reino, enquanto vive neste mundo e socorre aqui os aflitos e necessitados.
IV – NECESSIDADE DE UMA CONTRACULTURA CRISTÃ
Romanos 12:1-2
· A simplicidade não é, essencialmente, uma questão de renúncia, mas, sim, de encontro com o que é necessário, essencial, importante, significativo, útil e de valor na existência humana – “a uma só coisa necessária”, “o tesouro oculto”, “a pérola preciosa”.
· Somente o encontro com o Senhor, produto de desprendimento do mundo e de recolhimento, pode colocar em ordem as coisas exteriores, revelando seu valor e propósito, sem nos subordinar a elas.
· A simplicidade, fruto desse encontro com o Senhor, nos possibilita distinguir as coisas pelo seu valor espiritual e eterno, opondo-se à mera sofisticação e diversificação da sua posse e uso por si mesmas, à futilidade, aos símbolos vazios de status, à vaidade, ao excesso, ao desperdício, à ostentação.
· A simplicidade nos leva a resistir às tentações da cobiça, do poder, do prazer, da vaidade.
· Sem simplicidade não pode haver contentamento, sem contentamento não há felicidade, não há paz, não há alegria, não há ações de graças, não há culto, não há adoração.
· Sem simplicidade não pode haver generosidade, bondade, desprendimento.
· Sem simplicidade somos fatalmente vítimas da ansiedade, do medo, da insegurança, pois desejamos encontrar nas coisas e bens nossa segurança, satisfação e propósito.
· A simplicidade é libertação. Nos tornamos livres nos nossos relacionamentos com as pessoas e com o mundo e libertamos os outros das nossas demandas e insatisfações.
Um estilo de vida simples significa um posicionamento pessoal de conceitos, atitudes e práticas que envolva:
· Evitar os excessos, os exageros, a ostentação, a futilidade.
· Não se sujeitar aos critérios e padrões deste mundo quanto ao contentamento, não se deixar julgar, aprisionar ou seduzir pelo meio em que vivemos.
· Renunciar ao egocentrismo, à soberba e à vaidade.
· Evitar o desperdício.
· Abandonar a avareza e a cobiça.
· Expressar solidariedade, bondade, generosidade, amor ao próximo.
· Atenção e cuidado com os mais pobres e necessitados.
Salmo 131
Uma jornada de simplificação:
· Do coração
· Do olhar
· Do pensar
· Dos desejos
· Da esperança
“Tu és o meu Senhor; outro bem não possuo, senão a ti somente.”
Salmo 16
Nenhum comentário:
Postar um comentário