Jesus, alvo de contradição
Fernando Saboia Vieira
Queridos irmãos e irmãs, companheiros de jornada,
Conhecemos a história do Evangelho de Lucas. Quando os pais de Jesus apresentavam o recém-nascido no Templo, a fim de fazer a oferta prescrita pela Lei de Moisés, para lá acorre, movido pelo Espírito Santo, um velho profeta de Deus, chamado Simeão. Dentre as várias coisas maravilhosas que ele afirma sobre o menino, para admiração de seus pais, ele diz a Maria que seu filho seria “alvo de contradição”, pois haveria de revelar “os pensamentos dos corações”, para “levantamento e ruína de muitos”.
De fato, Jesus foi, e é até hoje, “alvo de contradição”.
No entanto, na nossa assim chamada modernidade, há um movimento nascido na mente do Inimigo e alimentado pela religião humanista da virada do século que pretende fazer de Jesus alvo não de contradição, mas de consenso. É com preocupação e tristeza que percebemos boa parte da Igreja seduzida por esses discursos, ofertas e estratagemas.
Podemos ver exemplo claro disso nas celebrações do Natal.
Nessa época do ano, são forjados, e difundidos por todos os meios, conceitos, símbolos, propagandas e “narrativas” que tentam aproximar Jesus de figuras como a do Papai Noel, expressão máxima do consenso humanista: um velhinho bonzinho que atende pedidos das crianças e realiza os desejos dos corações.
A imagem do bebê Jesus no presépio, encimado por estrelas e anjos e cercado por pastores, animais e “reis” magos, única representação cristã ainda admitida em ambientes públicos, mesmo que cada vez mais raramente, como parte das decorações de Natal, é compatível com essa busca de consenso. Simboliza inocência, pureza, humildade, esperança, diversidade, inclusão. Até ecologia, bucolismo, romantismo. Não traz discórdias, não confronta ninguém.
Entretanto, Jesus “veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (João 1:11), atraindo sobre muitos o juízo, e não a salvação oferecida por Deus em Seu gesto máximo de amor ao enviar seu Filho ao mundo.
“O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (João 3:16-19).
Assim, não importa quantas luzes sejam acesas nas decorações de Natal, em nome e em celebração de um otimismo humanista. A verdadeira luz que veio ao mundo, e que é capaz de iluminar cada pessoa, foi rejeitada por muitos, os quais amaram mais as trevas, já que não queriam abandonar suas más obras. E é assim até hoje, onde quer que essa luz seja manifestada.
Ao longo de Seu ministério, Jesus revelou os segredos dos corações em suas pregações, parábolas, conversas e atitudes. Foi alvo de contradição ao ponto de ser rejeitado, julgado, condenado e morto numa cruz como malfeitor.
Sua cruz permanece até hoje como loucura e escândalo. Seu chamado à fé, ao arrependimento, à santidade, à obediência a Deus, ao negar a si mesmo, a amar ao Pai e aos outros fazem da sua mensagem uma convocação que tem provocado rejeição e perseguição ao longo dos anos, em todas as sociedades humanas.
Um dos grandes desafios da Igreja do Século XXI é não permitir que Jesus se torne objeto de consenso, mas, sim mantê-lo como alvo de contradição, pois somente desse modo o Evangelho poderá ser “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Romanos 1:16).
Para isso, é preciso que nós, cristãos, resistamos à tentação de sermos aceitos, reconhecidos, considerados, bem recebidos nos lugares de poder, influência e sucesso no mundo, presenciais ou virtuais.
Não cumpriremos nossa missão nem seremos fiéis ao nosso Senhor, que foi odiado e rejeitado pelo mundo, se nós avaliarmos nossas vidas e serviço pelo número de apoiadores ou seguidores que temos, pelo aplauso e aceitação das pessoas, por vitórias nos embates sociais, econômicos e políticos, que dependem, via de regra, da aprovação da maioria.
Vivemos uma geração em que os valores máximos estão na liberdade, na diversidade, na inclusão, na satisfação dos desejos e fantasias dos corações das pessoas. Para isso, produzem-se personagens, perfis, mercados, padrões de sucesso e discursos destinados a compor uma sociedade sem forma, sem padrão, sem moral, sem destino. Mas entorpecida, alienada, iludida consigo mesma, enganada sobre a vida e o destino final de todas as coisas.
Se há um sinal inequívoco de que os tempos finais se aproximam é esse: o esfriamento do amor de muitos, inclusive da igreja, enquanto a iniquidade, a falta de governo, de justiça e de integridade proliferam, nas vidas privadas e públicas das pessoas.
Mas qual a estratégia básica da modernidade para tentar tornar Jesus alvo de consenso e não de contradição? É a de esvaziar o conteúdo das palavras e expressões que fundamentam a fé, a verdade e o Evangelho. Torná-las plásticas, flexíveis, de modo que cada um possa dar a elas o sentido que preferir, adequando-as a seus próprios desejos, pensamentos e estilos de vida.
Se falamos sobre Deus, amor, paz, justiça, muitos concordarão conosco, mesmo crendo em outros deuses e tendo conceitos absolutamente contrários aos da Bíblia sobre o que é amor, paz e justiça! Produz-se um aparente consenso que oculta a verdade e a possibilidade de salvação.
Até os termos mais definidos e fundamentais da fé cristã, como pecado, salvação, graça, fé, santidade e outros, podem ser entendidos de forma diluída, traduzidos pela religião humanista como aspectos das debilidades humanas e das necessidades de bem-estar emocional, como expressões da religiosidade natural dos seres humanos.
Essa postura relativista e essa tentativa de reinterpretação da pregação de Jesus para torná-la mais palatável a esta geração têm produzido, infelizmente com a participação de alguns que se dizem cristãos, uma variedade de “evangelhos”, colocados à disposição e ao gosto das pessoas, num grande varejo religioso, todos eles concebidos no sentido de eliminar a radicalidade e a confrontação que a vida, obra, palavras e sacrifício do Senhor produzem. Tornar Jesus alvo de consenso, e não de contradição!
Há um “evangelho terapêutico”, voltado a trazer conforto emocional e psicológico, sem confrontar as pessoas com seus dilemas morais, com o seu pecado, como a sua soberba e o seu egoísmo, com a sua rebelião contra o Criador.
No entanto, o Reino anunciado por Jesus é o Reino de Deus, onde Ele governa e a Ele deve haver submissão, inclusive quanto ao padrão moral requerido por Seu caráter Santo. O anúncio desse Reino é um chamado ao arrependimento, que implica o reconhecimento do próprio pecado e a decisão de mudança completa, de ser nova criatura. Esse Evangelho não exclui sofrimentos e aflições, consequências do pecado nas pessoas, em suas vidas e relacionamentos, mas, ao contrário, os supõe como inevitáveis em razão de seu absoluto contraste com o mundo.
O Evangelho de Jesus gera uma contradição absoluta do homem consigo mesmo e com o mundo, implicando uma escolha radical por uma nova maneira de ser e de viver. Não tem o propósito de produzir bem-estar emocional, mas, sim salvação.
Um “evangelho secular e materialista” também tem sido produzido e oferecido aos homens como um “reino na terra”, com prosperidade, segurança, realizações e satisfações nesta vida. Não poucos são os que mesmo se dizendo cristãos vivem, na prática, uma vida materialista e secular, integrando-se, sem distinção, à sociedade moderna, compartilhado seus desejos, projetos, medos e ansiedades.
Mas o Reino de Deus é o Reino dos céus. Não se realiza plenamente nesta vida, nesta dimensão física da existência, e sim na eternidade e na esfera espiritual. Os discípulos de Jesus são pessoas que vivem uma contradição radical com esta existência terrena, uma vez que agora, embora continuem a viver no mundo, não pertencem mais a ele.
Em razão dos acontecimentos que marcaram a vida institucional recente do nosso País, tem sido muito apresentado como solução para os problemas nacionais um novo “evangelho social e político”, que pretende oferecer, ou mesmo impor, os valores e estilo de vida cristãos para a sociedade dos homens.
Para competir com as demais “narrativas” que buscam consenso na sociedade e na política, o cristianismo é desidratado de suas posturas e reivindicações radicais e de sua natureza espiritual para se adequar e se tornar aceitável na modernidade e, assim, conquistar espaços de influência e de poder.
Dois problemas básicos com esse caminho. Primeiro, ele foi expressamente rejeitado por Jesus na tentação do deserto, ao início do Seu ministério. Segundo, está completamente equivocado do ponto de vista escatológico: a sociedade, a economia, a tecnologia, a ciência, a política não produzirão um mundo melhor, uma civilização mais justa uma vida mais segura e confortável. Ao contrário, o desfecho da história humana será de conflitos, opressões, guerras, crises e caos em todos os sentidos. Não fomos chamados para reformar ou governar as nações, mas para anunciar às pessoas o Evangelho de Jesus, que está em contradição com todas as utopias humanas e que nos direciona à dimensão espiritual e eterna.
Enfrentamos, em meio a isso tudo, também a disseminação de um “evangelho cultural”. Palavras, simbologias, personagens, celebrações, artes e literatura cristãs são tratadas como produções sociais, expressões da pluralidade e diversidade modernas, e elas é oferecido lugar na sociedade, nas mídias e no mercado, numa espécie de “ecumenismo cultural”, desde que abandonem os aspectos que causem contradição com as demais manifestações.
O Evangelho de Jesus não se harmoniza com esse “mercado de almas”, não disputa espaços nele. O Senhor veio transformar vidas, restabelecer nas pessoas, nos seus relacionamentos e nas suas atitudes e ações a semelhança com o Pai, que foi deturpada desde a desobediência de Adão.
Deus é o Senhor Criador de todas as coisas, fonte de toda harmonia e beleza. Os cristãos, com suas vidas e artes, em todas as sociedades ao longos dos séculos, simplesmente buscam expressar amor e adoração ao Seu Pai, exaltando a excelência de Suas obras e caráter. Isso não está à disposição de nenhum tipo de “mercado”. Não serve para alimentar a cobiça nem a vaidade de quem quer que seja.
Finalmente, quero mencionar a mais nefasta dessas tentativas de tornar Jesus alvo de consenso, e não de contradição: o “evangelho religioso evangélico”.
Com o crescimento numérico dos que se identificam como evangélicos no Brasil, tem-se popularizado um jargão religioso mais “bíblico” do que o das gerações anteriores, o qual reflete a busca de um estilo de vida em que uma religião “cristã” está presente, ainda que de forma completamente desvirtuada em sua essência, tal como descrita nas Escrituras e vivida pelo povo de Deus há dois milênios.
Palavras e expressões bíblicas, ou pretensamente bíblicas, são citadas sem contexto, sem conteúdo e sem fé por pessoas que não demonstram em suas vidas qualquer compromisso com a verdade e a santidade de Deus.
A ortodoxia das denominações cristãs tradicionais e mesmo o entusiasmo dos movimentos neopentecostais vão sendo mercadejados e conformados no sentido de assumir expressões de consenso que lhes garantam lugar, influência e participação na sociedade moderna.
Jesus, no entanto, veio ser alvo de contradição. Quando Ele falava sobre “verdade” não se referia a uma ideia subjetiva e relativa de verdade. A verdade que liberta é a verdade que Ele é, e que só pode ser conhecida por aqueles que o recebem como Senhor e se tornam seus discípulos (João 8:31-32). Ele mesmo é “o caminho, a verdade e a vida” e ninguém pode ir ao Pai senão por meio dele! (João 14:6).
O mesmo vale para palavras e expressões da fé cristã como pecado, salvação, santidade, justiça, paz e tantas outras. Não são “significantes vazios”. Embora devam ter intepretação contextual e histórica, e mesmo pessoal, não podem ser destituídos de seus sentidos e conteúdos essenciais para se tornarem expressões adaptáveis a qualquer interpretação ou tendência filosófica, gosto social, ou conveniência política.
Jesus e o seu Evangelho são alvos de contradição especialmente em razão das reivindicações radicais que Ele faz sobre si mesmo e sobre Sua missão: Filho de Deus, Filho do Homem, Senhor, Salvador. Perdoar pecados, oferecer-se em sacrifício numa cruz para resgate e redenção dos homens. Ressuscitar dentre os mortos e inaugurar o Reino de Deus, espiritual, eterno. Oferecer ressurreição e vida eterna aos que nele cressem. Enviar o Espírito Santo para habitar naqueles que se convertem e recebem o batismo.
Na minha história pessoal, o Evangelho apenas me apareceu como relevante, só foi o poder de Deus para minha salvação, quando Jesus se tornou para mim alvo de contradição, revelando os pensamentos do meu coração e me convocando ao arrependimento pela minha rebeldia e pecado contra Deus.
Enquanto Jesus era para mim apenas mais um mestre, profeta ou sábio, entre tantos, cujos ensinos eu buscava conhecer, em quem eu procurava respostas e soluções para os dilemas da vida, eu permaneci prisioneiro de mim mesmo, do meu pecado, da minha vaidade, da minha vã pretensão de ser o meu próprio senhor e de traçar meu próprio caminho.
Enquanto todos podiam me aplaudir e apreciar minha maneira de viver, minhas ideias e realizações, eu estava, de fato, sob a condenação de Deus e precisa ser salvo mediante sua Graça. Eu precisava receber o não de Deus para que pudesse obedecer ao seu sim.
Queridos irmãos e irmãs, companheiros de jornada, a Igreja de Jesus está hoje diante de uma grande tentação e provação: não a de ser perseguida e rejeitada, o que só a tornaria mais santa e fiel, mas a de ser recebida e aceita, como alvo de consenso na sociedade, deixando de ser, como o seu Senhor o foi, alvo de contradição.
Jesus mesmo estabeleceu as condições para que alguém seja seu discípulo e ingresse no Reino do Pai. Não podemos negociar com isso. A nós nos cabe apenas viver e anunciar o Evangelho que recebemos e que se tornou para nós graça, salvação e poder de Deus. Ainda que isso venha a nos custar a oposição, rejeição e perseguição do mundo.
Amados e amadas, que nesses dias sejamos iluminados não pelas luzes do Natal, mas pela “verdadeira luz”, que veio ao mundo iluminar a todos e revelar os pensamentos dos corações, para que muitos possam ser salvos.
Que a suficiente graça de Jesus seja com todos vocês neste final e princípio de ano.
Brasília, Natal de 2021, AD.
Seu conservo e companheiro de jornada,
Fernando Saboia Vieira