ORAÇÃO
CONTEMPLATIVA
Thomas
Merton
Cap.
XI
Qual
é o propósito da meditação no sentido de “oração do coração”?
Na “oração do coração” nós procuramos,
antes de tudo, o fundamento mais profundo de nossa identidade em Deus. Nela,
não raciocinamos sobre dogmas da fé, ou sobre os “mistérios”. Ao invés disso,
procuramos ganhar uma percepção existencial direta, uma experiência pessoal das
verdades mais profundas da vida e da fé, encontrando-nos
a nós mesmos na verdade de Deus. Certeza interior depende de purificação. A noite escura retifica
nossas mais profundas intenções. No silêncio dessa “noite da fé” nós retornamos
à simplicidade e sinceridade de coração. Aprendemos recolhimento, que consiste em ouvir a vontade Deus em direta e
simples atenção à realidade.
Recolhimento é percepção e despertamento para o incondicional. Oração, então, significa a aspiração
pela simples presença de Deus, por uma compreensão pessoal de sua palavra, por
um conhecimento de sua vontade e por capacidade para ouvir e obedecer a ele. É,
portanto, muito mais do que exteriorizar petições por boas causas externas às
nossas inquietações mais profundas.
Nosso desejo e nossa oração deveriam
ser sintetizados nas palavras de Santo Agostinho: Noverim te, noverim me (Que eu possa te conhecer, que eu possa me
conhecer). Queremos obter uma avaliação verdadeira de nós mesmos e do mundo, de
maneira a entender o sentido de nossa vida como filhos de Deus redimidos do
pecado e da morte. Queremos obter um verdadeiro conhecimento amoroso de Deus,
nosso Pai e Redentor. Queremos ouvir sua palavra e responder a ela com todo o
nosso ser. Queremos conhecer sua vontade misericordiosa e nos submeter a ela em
sua totalidade. Esses são os alvos e os propósitos da meditatio e da oratio. A
preparação para essa oração pode ser prolongada pela lenta, “sapiencial” e
amorosa recitação de um Salmo favorito, demorando-se no sentido das suas
palavras para nós, aqui e agora.
Na linguagem dos pais monásticos, toda
oração, leitura, meditação e todas as atividades da vida no monastério almejam
a pureza de coração, uma
incondicional e totalmente humilde rendição a Deus, uma completa aceitação de
nós mesmos e de nossa situação tal como desejada por ele. Significa a renúncia
de toda imagem ilusória de nós mesmos e de toda estimativa exagerada de nossas
próprias capacidades, com o propósito de obedecer à vontade de Deus como ela
nos chega nas difíceis demandas da vida em sua perfeita verdade.
Pureza de coração está,
então, relacionada a uma nova identidade espiritual – o “eu” (self) tal como
reconhecido no contexto das realidades desejadas por Deus. Pureza de coração é
a consciente e iluminada percepção do novo homem, em oposição às complexas e
talvez um tanto distorcidas fantasias do “velho homem”.
A
meditação é, assim, direcionada a essa nova percepção, a esse conhecimento
direto do eu em seu aspecto mais elevado.
O
que eu sou? Eu sou uma palavra pronunciada por Deus. Poderia Deus dizer uma
palavra desprovida de qualquer significado?
Mais
ainda, estou convicto de que o significado da minha vida é aquele significado
que Deus quer que ela tenha? Será que Deus impõe um sentido para minha vida a
partir de fora, por meio de
acontecimentos, costumes, rotinas, leis, sistemas, impactos com outras pessoas na
sociedade? Ou fui chamado a criar esse
significado a partir de dentro, juntamente com ele, com sua graça, um
significado que reflete sua vontade e me torna sua “palavra” falada livremente
na minha condição pessoal? Minha
verdadeira identidade repousa escondida no chamado de Deus para a liberdade e
na minha resposta a ele. Isso significa que eu devo usar a minha liberdade para
amar, com completa liberdade e
autenticidade, não meramente recebendo uma forma imposta a mim por meio de
forças externas, ou conformando minha própria vida de acordo com o padrão
socialmente aprovado, mas direcionando meu amor à realidade pessoal de meu
irmão, e abraçando a vontade de Deus em seu nu e muitas vezes impenetrável
mistério. Eu não posso encontrar meu “significado” se eu tentar escapar do
terror que me sobrevém ao experimentar pela primeira vez minha falta de
significado!
Por
meio da meditação eu penetro no fundamento mais íntimo da minha vida, busco a
completa compreensão da vontade de Deus para mim, da misericórdia de Deus em
mim, da minha absoluta dependência dele. Mas tal penetração precisa ser
autêntica. Precisa ser algo genuinamente vivido
por mim. Isso, por sua vez, depende da autenticidade do meu conceito geral
sobre a minha vida e sobre meus propósitos. Mas a minha vida e meus propósitos
tenderão a ser artificiais, inautênticos, enquanto eu estiver simplesmente
tentando ajustar minhas ações a certas normas exteriores de conduta que me
permitirão ter uma participação socialmente aprovada no meio em que vivo. Afinal,
isso significaria pouco mais do que aprender um papel. Alguns métodos e programas de meditação são destinados
simplesmente a isso: aprender a desempenhar um papel religioso. A ideia da
“imitação” de Cristo e dos seus santos pode degenerar em uma mera personificação, se permanecer apenas no
exterior.
Para
a meditação, não basta que eu investigue a ordem
cósmica e me situe nela. Meditação é algo mais do que dominar uma
Weltanschauung (visão filosófica do cosmos e da vida). Embora tal meditação
pareça produzir uma resignação à vontade de Deus como manifestada na ordem
cósmica ou na história, ela não é profundamente cristã. De fato, tal meditação
pode estar fora de contato com as verdades mais profundas do Cristianismo. Ela
consiste em aprender algumas fórmulas racionais, explicações, que capacitam
alguém a permanecer resignado e indiferente na grande crise da vida e, assim,
infelizmente, ela poder tornar possível a fuga numa situação em que uma
confrontação direta de nossa nulidade é requerida. Ao invés de uma aceitação estoica
dos decretos e acontecimentos da “providência”, e outras manifestações das “leis”
cósmicas, nós devemos permitir sermos levados despidos e sem defesas ao centro
daquele terror onde permanecemos sós diante de Deus e de nossa nulidade
(nothingness), sem explicações, sem teorias, completamente dependentes do seu
cuidado providencial, em total dependência do dom de sua graça, de sua
misericórdia e da luz da fé.
Precisamos
nos aproximar de nossa meditação com a percepção de que “graça”, “misericórdia”
e “fé” não são possessões permanentes e inalienáveis, que adquirimos por meio
de nossos esforços e retemos como que por direito, contanto que nos comportemos
bem. Esses são dons constantemente renovados. A vida da graça nos nossos corações
é renovada de momento a momento, direta e pessoalmente por Deus em seu amor por
nós. Desse modo, a “graça da meditação” (no sentido de “oração do coração”) é
também um dom especial. Ela nunca deve ser considerada como algo pressuposto,
presumido gratuitamente. Embora possamos dizer que ela é um “hábito” que em
algum sentido nos acompanha permanentemente quando a recebemos, mesmo assim,
ela nunca é algo que possamos reivindicar como que por direito e usar de modo
completamente autônomo e autodeterminado, segundo nosso próprio prazer, sem
consideração com a vontade de Deus, ainda que possamos fazer uso autônomo de
nossos dons naturais. O dom da oração
é inseparável de outra graça: a da humildade, que nos leva a perceber que o
mais profundo do nosso ser e da nossa vida são significativos e reais apenas
quando e na medida em que estejam orientados a Deus como sua fonte e sua
finalidade.
Quando
parecemos possuir e usar nosso ser e faculdades naturais de uma maneira
completamente autônoma, como se nosso ego individual fosse a fonte pura e a
finalidade de nossos próprios atos, então estamos em ilusão e nossos atos, por
mais espontâneos que pareçam ser, carecem de significado e autenticidade
espirituais.
Consequentemente,
antes de tudo, nossa meditação deve se iniciar com a percepção de nossa
nulidade e completo desamparo na presença de Deus. Essa não precisa ser uma
experiência sofrida e desencorajante. Ao contrário, ela pode ser profundamente
tranquila e cheia de alegria, uma vez que ela nos coloca em contato direto com
a fonte de toda alegria e de toda vida. Entretanto, uma razão pela qual nossa
meditação nunca começa pode ser, talvez, porque nós nunca fazemos esse retorno
real, sério, ao centro de nossa nulidade diante de Deus. E, assim, nunca
entramos na mais profunda realidade de nosso relacionamento com ele.
Em
outras palavras, meditamos meramente “na mente”, na imaginação, ou em nossas
melhores aspirações, considerando verdades religiosas de um ponto de vista desprendido,
objetivo. Não começamos por procurar “encontrar nosso coração”, o que significa
mergulhar numa profunda consciência do fundamento de nossa identidade diante de
Deus e em Deus. “Encontrar nosso coração” e recuperar essa consciência de nossa
identidade mais profunda implica o reconheci mento de que nosso ser externo,
cotidiano, é em grande parte uma máscara e uma fabricação. Não é nosso
verdadeiro eu. E, de fato, nosso verdadeiro eu não é fácil de encontrar. Ele está
escondido na obscuridade e na “nulidade”, no lugar onde estamos em direta
dependência de Deus. Mas uma vez que a realidade de toda meditação cristã
depende desse reconhecimento, nossa tentativa de meditar sem isso é realmente
contraditória em si mesma. É como tentar caminhar sem os pés.
Outra
consequência: até mesmo a capacidade de reconhecer nossa condição diante de
Deus é, em si mesma, uma graça. Não podemos sempre alcançar isso por nossa vontade.
Aprender meditação não significa, portanto, aprender uma técnica artificial de
produzir infalivelmente “compunção” ou o “sentimento de nossa nulidade” sempre
que quisermos. Ao contrário, isso seria o resultado de violência e seria
inautêntico. Meditação implica a capacidade de receber essa graça sempre que Deus nos quiser concedê-la e, assim,
implica uma permanente disposição de humildade, de atenção à realidade, de
receptividade, de flexibilidade. Aprender a meditar significa, pois, se
libertar gradualmente da habitual dureza de coração, do torpor e da rudeza de
mente, devidos à arrogância e a não aceitação da simples realidade, ou à
resistência às exigências concretas da vontade de Deus.
Se,
em realidade, nosso coração permanecer indiferente e frio e considerarmos
moralmente impossível “começar” a meditar nessa condição, então devemos
perceber que essa frieza é ela mesma um sinal de nossa necessidade e de nosso
desamparo. Devemos tomar isso, coerentemente, como um motivo para orar. Também devemos
refletir que talvez, mesmo sem querer, tenhamos caído no espírito de uma
rotina, e não sejamos capazes de ver como recuperar nossa espontaneidade sem a
graça de Deus, pela qual devemos esperar pacientemente, como o mais intenso
desejo. Essa espera será, por si mesma, para nós, uma escola de humildade.
Tradução:
Fernando Saboia Vieira
O Maia tinha uma profunda admiração pelo Monge Trapista Thomas Merton e,com certeza,iria admirar a sua preciosa tradução que discorre com clareza sobre os ensinamentos relevantes e tão preciosos para a nossa evolução espiritual através da oração contemplativa e consequente crescimento espiritual.Que Deus o ilumine sempre e nos favoreça com seus conhecimentos.Eliane Emir
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