terça-feira, 23 de maio de 2017

Sobre meditação

ORAÇÃO CONTEMPLATIVA
Thomas Merton
Cap. XI

              Qual é o propósito da meditação no sentido de “oração do coração”?
         Na “oração do coração” nós procuramos, antes de tudo, o fundamento mais profundo de nossa identidade em Deus. Nela, não raciocinamos sobre dogmas da fé, ou sobre os “mistérios”. Ao invés disso, procuramos ganhar uma percepção existencial direta, uma experiência pessoal das verdades mais profundas da vida e da fé, encontrando-nos a nós mesmos na verdade de Deus. Certeza interior depende de purificação. A noite escura retifica nossas mais profundas intenções. No silêncio dessa “noite da fé” nós retornamos à simplicidade e sinceridade de coração. Aprendemos recolhimento, que consiste em ouvir a vontade Deus em direta e simples atenção à realidade. Recolhimento é percepção e despertamento para o incondicional. Oração, então, significa a aspiração pela simples presença de Deus, por uma compreensão pessoal de sua palavra, por um conhecimento de sua vontade e por capacidade para ouvir e obedecer a ele. É, portanto, muito mais do que exteriorizar petições por boas causas externas às nossas inquietações mais profundas.
         Nosso desejo e nossa oração deveriam ser sintetizados nas palavras de Santo Agostinho: Noverim te, noverim me (Que eu possa te conhecer, que eu possa me conhecer). Queremos obter uma avaliação verdadeira de nós mesmos e do mundo, de maneira a entender o sentido de nossa vida como filhos de Deus redimidos do pecado e da morte. Queremos obter um verdadeiro conhecimento amoroso de Deus, nosso Pai e Redentor. Queremos ouvir sua palavra e responder a ela com todo o nosso ser. Queremos conhecer sua vontade misericordiosa e nos submeter a ela em sua totalidade. Esses são os alvos e os propósitos da meditatio e da oratio. A preparação para essa oração pode ser prolongada pela lenta, “sapiencial” e amorosa recitação de um Salmo favorito, demorando-se no sentido das suas palavras para nós, aqui e agora.
         Na linguagem dos pais monásticos, toda oração, leitura, meditação e todas as atividades da vida no monastério almejam a pureza de coração, uma incondicional e totalmente humilde rendição a Deus, uma completa aceitação de nós mesmos e de nossa situação tal como desejada por ele. Significa a renúncia de toda imagem ilusória de nós mesmos e de toda estimativa exagerada de nossas próprias capacidades, com o propósito de obedecer à vontade de Deus como ela nos chega nas difíceis demandas da vida em sua perfeita verdade.
Pureza de coração está, então, relacionada a uma nova identidade espiritual – o “eu” (self) tal como reconhecido no contexto das realidades desejadas por Deus. Pureza de coração é a consciente e iluminada percepção do novo homem, em oposição às complexas e talvez um tanto distorcidas fantasias do “velho homem”.
A meditação é, assim, direcionada a essa nova percepção, a esse conhecimento direto do eu em seu aspecto mais elevado.
O que eu sou? Eu sou uma palavra pronunciada por Deus. Poderia Deus dizer uma palavra desprovida de qualquer significado?
Mais ainda, estou convicto de que o significado da minha vida é aquele significado que Deus quer que ela tenha? Será que Deus impõe um sentido para minha vida a partir de fora, por meio de acontecimentos, costumes, rotinas, leis, sistemas, impactos com outras pessoas na sociedade? Ou fui chamado a criar esse significado a partir de dentro, juntamente com ele, com sua graça, um significado que reflete sua vontade e me torna sua “palavra” falada livremente na minha condição pessoal?  Minha verdadeira identidade repousa escondida no chamado de Deus para a liberdade e na minha resposta a ele. Isso significa que eu devo usar a minha liberdade para amar, com completa liberdade e autenticidade, não meramente recebendo uma forma imposta a mim por meio de forças externas, ou conformando minha própria vida de acordo com o padrão socialmente aprovado, mas direcionando meu amor à realidade pessoal de meu irmão, e abraçando a vontade de Deus em seu nu e muitas vezes impenetrável mistério. Eu não posso encontrar meu “significado” se eu tentar escapar do terror que me sobrevém ao experimentar pela primeira vez minha falta de significado!
Por meio da meditação eu penetro no fundamento mais íntimo da minha vida, busco a completa compreensão da vontade de Deus para mim, da misericórdia de Deus em mim, da minha absoluta dependência dele. Mas tal penetração precisa ser autêntica. Precisa ser algo genuinamente vivido por mim. Isso, por sua vez, depende da autenticidade do meu conceito geral sobre a minha vida e sobre meus propósitos. Mas a minha vida e meus propósitos tenderão a ser artificiais, inautênticos, enquanto eu estiver simplesmente tentando ajustar minhas ações a certas normas exteriores de conduta que me permitirão ter uma participação socialmente aprovada no meio em que vivo. Afinal, isso significaria pouco mais do que aprender um papel. Alguns métodos e programas de meditação são destinados simplesmente a isso: aprender a desempenhar um papel religioso. A ideia da “imitação” de Cristo e dos seus santos pode degenerar em uma mera personificação, se permanecer apenas no exterior.
Para a meditação, não basta que eu investigue a ordem cósmica e me situe nela. Meditação é algo mais do que dominar uma Weltanschauung (visão filosófica do cosmos e da vida). Embora tal meditação pareça produzir uma resignação à vontade de Deus como manifestada na ordem cósmica ou na história, ela não é profundamente cristã. De fato, tal meditação pode estar fora de contato com as verdades mais profundas do Cristianismo. Ela consiste em aprender algumas fórmulas racionais, explicações, que capacitam alguém a permanecer resignado e indiferente na grande crise da vida e, assim, infelizmente, ela poder tornar possível a fuga numa situação em que uma confrontação direta de nossa nulidade é requerida. Ao invés de uma aceitação estoica dos decretos e acontecimentos da “providência”, e outras manifestações das “leis” cósmicas, nós devemos permitir sermos levados despidos e sem defesas ao centro daquele terror onde permanecemos sós diante de Deus e de nossa nulidade (nothingness), sem explicações, sem teorias, completamente dependentes do seu cuidado providencial, em total dependência do dom de sua graça, de sua misericórdia e da luz da fé.
Precisamos nos aproximar de nossa meditação com a percepção de que “graça”, “misericórdia” e “fé” não são possessões permanentes e inalienáveis, que adquirimos por meio de nossos esforços e retemos como que por direito, contanto que nos comportemos bem.  Esses são dons constantemente renovados. A vida da graça nos nossos corações é renovada de momento a momento, direta e pessoalmente por Deus em seu amor por nós. Desse modo, a “graça da meditação” (no sentido de “oração do coração”) é também um dom especial. Ela nunca deve ser considerada como algo pressuposto, presumido gratuitamente. Embora possamos dizer que ela é um “hábito” que em algum sentido nos acompanha permanentemente quando a recebemos, mesmo assim, ela nunca é algo que possamos reivindicar como que por direito e usar de modo completamente autônomo e autodeterminado, segundo nosso próprio prazer, sem consideração com a vontade de Deus, ainda que possamos fazer uso autônomo de nossos dons naturais. O dom da oração é inseparável de outra graça: a da humildade, que nos leva a perceber que o mais profundo do nosso ser e da nossa vida são significativos e reais apenas quando e na medida em que estejam orientados a Deus como sua fonte e sua finalidade.
Quando parecemos possuir e usar nosso ser e faculdades naturais de uma maneira completamente autônoma, como se nosso ego individual fosse a fonte pura e a finalidade de nossos próprios atos, então estamos em ilusão e nossos atos, por mais espontâneos que pareçam ser, carecem de significado e autenticidade espirituais.
Consequentemente, antes de tudo, nossa meditação deve se iniciar com a percepção de nossa nulidade e completo desamparo na presença de Deus. Essa não precisa ser uma experiência sofrida e desencorajante. Ao contrário, ela pode ser profundamente tranquila e cheia de alegria, uma vez que ela nos coloca em contato direto com a fonte de toda alegria e de toda vida. Entretanto, uma razão pela qual nossa meditação nunca começa pode ser, talvez, porque nós nunca fazemos esse retorno real, sério, ao centro de nossa nulidade diante de Deus. E, assim, nunca entramos na mais profunda realidade de nosso relacionamento com ele.
Em outras palavras, meditamos meramente “na mente”, na imaginação, ou em nossas melhores aspirações, considerando verdades religiosas de um ponto de vista desprendido, objetivo. Não começamos por procurar “encontrar nosso coração”, o que significa mergulhar numa profunda consciência do fundamento de nossa identidade diante de Deus e em Deus. “Encontrar nosso coração” e recuperar essa consciência de nossa identidade mais profunda implica o reconheci mento de que nosso ser externo, cotidiano, é em grande parte uma máscara e uma fabricação. Não é nosso verdadeiro eu. E, de fato, nosso verdadeiro eu não é fácil de encontrar. Ele está escondido na obscuridade e na “nulidade”, no lugar onde estamos em direta dependência de Deus. Mas uma vez que a realidade de toda meditação cristã depende desse reconhecimento, nossa tentativa de meditar sem isso é realmente contraditória em si mesma. É como tentar caminhar sem os pés.
Outra consequência: até mesmo a capacidade de reconhecer nossa condição diante de Deus é, em si mesma, uma graça. Não podemos sempre alcançar isso por nossa vontade. Aprender meditação não significa, portanto, aprender uma técnica artificial de produzir infalivelmente “compunção” ou o “sentimento de nossa nulidade” sempre que quisermos. Ao contrário, isso seria o resultado de violência e seria inautêntico. Meditação implica a capacidade de receber essa graça sempre que Deus nos quiser concedê-la e, assim, implica uma permanente disposição de humildade, de atenção à realidade, de receptividade, de flexibilidade. Aprender a meditar significa, pois, se libertar gradualmente da habitual dureza de coração, do torpor e da rudeza de mente, devidos à arrogância e a não aceitação da simples realidade, ou à resistência às exigências concretas da vontade de Deus.
Se, em realidade, nosso coração permanecer indiferente e frio e considerarmos moralmente impossível “começar” a meditar nessa condição, então devemos perceber que essa frieza é ela mesma um sinal de nossa necessidade e de nosso desamparo. Devemos tomar isso, coerentemente, como um motivo para orar. Também devemos refletir que talvez, mesmo sem querer, tenhamos caído no espírito de uma rotina, e não sejamos capazes de ver como recuperar nossa espontaneidade sem a graça de Deus, pela qual devemos esperar pacientemente, como o mais intenso desejo. Essa espera será, por si mesma, para nós, uma escola de humildade.


Tradução: Fernando Saboia Vieira




Um comentário:

  1. O Maia tinha uma profunda admiração pelo Monge Trapista Thomas Merton e,com certeza,iria admirar a sua preciosa tradução que discorre com clareza sobre os ensinamentos relevantes e tão preciosos para a nossa evolução espiritual através da oração contemplativa e consequente crescimento espiritual.Que Deus o ilumine sempre e nos favoreça com seus conhecimentos.Eliane Emir

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