Andrew Murray
“Eles depositarão as suas coroas diante do trono, proclamando: Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, pois Tu criaste todas as coisas, e por Tua causa vieram a existir e foram criadas”. Ap. 4:10-11
Deus criou o universo com o único propósito de fazer a criatura co-participante de Sua perfeição e felicidade e, para tanto, nela imprimiu a glória do Seu amor, sabedoria e poder. Ele queria se revelar nas coisas criadas e se revelar por meio delas, comunicando-lhes o quanto elas pudessem receber de Sua própria bondade e glória. Mas essa comunicação não seria algo dado de uma vez por todas à criatura, algo que ela pudesse possuir por si mesma, não seria uma certa vida e bondade das quais ela pudesse dispor. De modo algum. Ao contrário, uma vez que Deus é Aquele que é sempre vivo, sempre presente, sempre atuante, Aquele que sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder, e no qual todas as coisas existem, o relacionamento da criatura com Deus somente poderia consistir numa dependência absoluta, incessante e universal. Tão certo como Deus uma vez tudo criou por Seu poder, também é certo que Ele tudo mantém a cada momento pelo mesmo poder. A criatura precisa tão somente considerar a origem e o início da existência para reconhecer que desde lá ela deve tudo a Deus. Assim, como criatura, seu principal cuidado, sua mais elevada virtude, sua única felicidade, agora e por toda eternidade, é apresentar-se como um vaso vazio no qual Deus pode habitar e manifestar Seu poder e bondade.
A vida que Deus concede não é distribuída de uma vez por todas, mas continuamente, a cada momento, pela incessante operação do Seu imenso poder. Humildade, o lugar da completa dependência de Deus é, pela própria natureza das coisas, o primeiro dever e a mais elevada virtude da criatura, e a raiz de cada virtude.
E, assim, o orgulho, ou a perda dessa humildade, é a raiz de todo pecado e de todo mal. Foi quando os anjos agora caídos começaram a olhar para si mesmos com auto complacência que foram levados à desobediência e precipitados da luz celestial para as trevas exteriores. Do mesmo modo, foi quando a serpente insuflou o mesmo orgulho, o desejo de ser igual a Deus, no coração de nossos primeiros pais que eles também decaíram de seu elevado estado para a derrocada em que o homem se encontra agora. Nos céus e na terra, o orgulho, a auto exaltação, é a porta, o nascimento e a maldição do inferno.
Disso se segue que nossa redenção não poderia consistir em outra coisa senão na restauração da “humildade perdida”, do relacionamento original e verdadeiro da criatura com seu Deus. Por isso Jesus veio trazer a humildade de volta à terra, para nos tornar participantes dela e por meio dela nos salvar. Nos céus, Ele se humilhou para se tornar homem. A humildade que vemos nEle, ela já O tinha nos céus, ela O trouxe, Ele a trouxe de lá. Aqui na terra ele “a si mesmo se humilhou e se tornou obediente até a morte”. Sua humildade conferiu valor a sua morte e assim se tornou a nossa redenção. E agora, a salvação que Ele oferece não é nada diferente e nem nada menos do que a transmissão de Sua própria vida e morte, de Sua própria disposição e espírito, de Sua própria humildade, como o solo e a raiz do Seu relacionamento com Deus e com Sua obra redentora. Jesus Cristo assumiu o lugar e preencheu o destino do homem, como criatura, por meio de Sua vida de perfeita humildade. Sua humildade é nossa salvação. Sua salvação é nossa humildade.
Em conseqüência a vida dos salvos, dos santos, deve necessariamente trazer esse selo de libertação do pecado, de completa restauração de seu estado original, de uma relação com Deus e com os homens completamente marcada por uma humildade presente em tudo. Sem isso não pode haver um real habitar na presença de Deus, ou experiência do Seu favor e do poder do Seu Espírito. Sem isso não pode haver fé, alegria ou poder interior. Humildade é o único solo no qual as graças criam raízes. A ausência de humildade é suficiente explicação para todo defeito e fracasso. Humildade não é apenas uma graça ou virtude entre outras: ela é a raiz de todas, porque só ela assume a correta atitude diante de Deus e permite que Ele, como Deus, faça tudo.
Deus nos fez seres racionais, de modo que quanto mais verdadeira for nossa compreensão da real natureza e absoluta necessidade de um preceito, mais pronta e completa será nossa obediência a ele. O chamado a humildade tem sido tão pouco considerado na Igreja porque sua verdadeira natureza e importância têm sido muito pouco compreendidas. A humildade não é algo que nós trazemos até Deus, ou que Ele concede. Ela é, simplesmente, a consciência da nossa completa nulidade que surge quando vemos como, verdadeiramente, Deus é tudo, e por meio da qual abrimos caminho para Deus ser tudo.
Quando a criatura percebe que essa é sua verdadeira nobreza e consente em ser, com sua vontade, sua mente e seus afetos, o recipiente, o vaso no qual a vida e glória de Deus devem operar e se manifestar, ela vê que a humildade consiste em simplesmente reconhecer sua real posição como criatura e conceder a Deus o lugar que Lhe é devido.
Nas vidas dos cristãos mais dedicados, daqueles que professam e buscam santidade, a humildade deve ser a principal marca de sua retidão. Muitas vezes ouvimos dizer que não é assim que acontece. Não seria uma razão para isso o fato de que no ensino e no exemplo da Igreja a humildade nunca teve o lugar de suprema importância que lhe pertence? E, mais ainda, se deve à negligência dessa verdade, de que por mais forte que seja o pecado como explicação para a necessidade da humildade, há uma motivação ainda mais ampla e poderosa, aquela que faz os anjos, fez Jesus e faz o mais santo dos homens nos céus tão humildes: a de que a primeira e principal marca do relacionamento da criatura, o segredo de sua bem-aventurança, é a humildade e nulidade que deixa Deus livre para ser tudo.
Tenho certeza de que muitos cristãos hão de confessar que sua experiência foi muito parecida com a minha nesse aspecto, no sentido de ter por muito tempo conhecido ao Senhor sem se dar conta de que humildade e mansidão de coração devem ser as características distintivas do discípulo como o foram do Mestre. E, além disso, que essa humildade não é algo que nos virá por si mesma, mas deverá ser tornada o objeto de nosso especial desejo, de oração, de fé e de prática. Ao estudarmos a Palavra, vemos claras e freqüentemente repetidas instruções que Jesus deu a Seus discípulos sobre esse ponto e o quão tardios eles foram em compreendê-lo. Vamos logo, ao início de nossas meditações, admitir que não há nada tão natural para o homem, nada tão insidioso e oculto à vista, nada tão difícil e perigoso como o orgulho. Percebamos que nada a não ser uma espera determinada e perseverante em Deus e em Cristo nos revelará o quão carentes estamos da graça da humildade e o quão impotentes somos para obtê-la. Estudemos o caráter de Cristo até que nossas almas se encham de amor e admiração por Sua humildade. E vamos crer que quando estivermos quebrantados sob a consciência de nosso orgulho e da nossa incapacidade de lançar fora o orgulho, Jesus Cristo, Ele mesmo, virá repartir também essa graça da humildade, como parte de Sua maravilhosa vida em nós.
Humility, Chapter 1, by Andrew Murray.
Disponível em www.ccel.org
Tradução de Fernando Sabóia Vieira
Há uma versão em português dessa obra, publicada com o título “Humildade, a Beleza da Santidade”, pela Editora dos Clássicos.