O Amor Cobre Todas as Transgressões
(Uma crônica de Natal)
“..., mas o amor cobre todas as transgressões.”
Provérbios 10:12
Ao longo do ano – da vida, na verdade – vamos acumulando questões de relacionamento, situações de conflito, divergências mal resolvidas. As pessoas falham conosco e nós com elas. Não são apenas mal-entendidos ou incompreensões. Pecamos mesmo uns contra os outros. Transgredimos. Sofremos e causamos sofrimento, danos, dores e tristezas. Podemos mesmo ter armazenado tal quantidade de situações como essas que nos pareça muito difícil, senão impossível, superá-las.
Sabemos que não serão suficientes sentimentos de fraternidade, tolerância e de boa vontade, tão apregoados nas celebrações de final de ano. Reconhecemos a realidade e a malignidade do pecado, que é capaz de contaminar e anular boas intenções e levar a atitudes, atos e palavras que reconhecemos como maus.
O Livro de Provérbios, em sua sabedoria prática, nos diz diretamente que “o ódio alimenta as contendas, mas o amor cobre todas as transgressões”.
Esse texto é citado duas vezes no Novo Testamento, uma por Pedro, no contexto do amor fraternal, e outra por Tiago, referindo-se à salvação dos pecadores.
Mas de que maneira o amor cobre todas as transgressões?
Penso que, em primeiro lugar, devemos dar expressão à teologia simples do Livro de Provérbios e entender que o que alimenta as contendas e desentendimentos é o ódio, a má disposição de coração das pessoas envolvidas. Quando é assim, não há solução para os conflitos.
De outro lado, se eu amo alguém, não levo em conta seus defeitos, atitudes negativas e transgressões para continuar o relacionamento e buscar fazer-lhe o bem.
Não poderia ser que as nossas questões interpessoais não se resolvam, simplesmente, por falta de amor ou pela debilidade do nosso amar? Ou, pelo menos, que a perda da perspectiva prioritária e essencial da necessidade de amar dificulte qualquer solução ou caminho?
Devemos nos lembrar de que amar, para o discípulo de Jesus, não é uma alternativa ética “superior” ou “apenas” um mandamento entre outros. Amar é a consequência necessária e direta do seu relacionamento com Deus, a essência desse relacionamento, sua origem, fundamento e finalidade. Embora envolva razão e emoção, é, essencialmente, espiritual.
Assim, o texto de Provérbios significa que amar me leva a superar todas as transgressões, as minhas e as do outro, e prosseguir no relacionamento até Deus produzir, por meio dele, o que Ele mesmo deseja, em mim e no outro, para mim e para o outro.
Quando amo, não me faço juiz nem de mim mesmo nem de ninguém, não faço contabilidades, não penso em termos de vitória ou derrota, ter ou não razão, direitos ou deveres.
“O amor tudo supera, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Não se impacienta, não está à procura de si mesmo. Fala além das palavras, se dá além dos atos (1ª aos Coríntios 13:1-8). O amor enseja a visitação de Deus na história humana, na minha história, nas histórias das pessoas com quem convivo.
Não se trata de ingenuidade piedosa. Não é um otimismo humanista. É uma compreensão profunda e essencial da Realidade, Presença e Caráter de Deus, que tudo gera, tudo sustenta, tudo inclui, tudo conduz e tudo transforma porque ama.
O amor cobre todas as transgressões porque aponta para o amor sacrificial de Jesus, com seu poder remidor, restaurador e com suas demandas e consequências. Não é graça barata, não é desconsiderar a malignidade do pecado. Ao contrário, é reconhecer que é tão grave a ofensa que a única solução possível está na Graça de Deus, e essa solução só está disponível porque Ele amorosamente nos a concedeu em Cristo.
Os relacionamentos humanos só são possíveis e frutíferos na graça de Jesus. Ele desfez em sua carne a barreira de inimizade e nos aproximou, fazendo a paz entre os que estavam longe e os que estavam perto, como resultado de nossa paz com Deus (Efésios 2:13-18).
“Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, o governo está sobre seus ombros e seu nome será ... Príncipe da Paz”, diz a profecia que se cumpriu no Advento de Sua Vinda.
Quando devo anunciar o Reino de Deus ao pecador, corrigir o irmão faltoso ou perdoar suas ofensas contra mim, deve ser o amor a me conduzir, e não a noção de uma tarefa ou missão a ser cumprida, ou, menos ainda, meu desejo de reparação pessoal, minha impaciência ou intolerância.
O amor não precisa de confissões ou explicações. Não é condicional, não depende de resultados ou de reconhecimento. Apenas não pode contradizer-se a si mesmo, e continua amando, fluindo desde sua fonte eterna em Deus.
O amor supera todas as barreiras, tanto as que me separam do “estrangeiro” quanto as que me distanciam dos “próximos” e “familiares”. Não vejo suas roupas inapropriadas, sua aparência “marginal”, suas maneiras impróprias, seus piercings, suas tatuagens, suas marcas “tribais”, não sinto seu hálito contaminado, não me incomoda sua prepotência e soberba, os símbolos vazios de status que ostenta, não considero sua agressividade, seus vícios de caráter, a malignidade de suas condutas.
Não quantifico o relacionamento, não “classifico” o outros, não o julgo, apenas considero que Jesus está nele, está em mim e está entre nós, com Sua Graça que alcança a mim e a ele do mesmo modo.
Cobrir as transgressões não é “resolver” os problemas no sentido de apontar quem está certo ou errado, mas superar as debilidades e erros dos outros, e os nossos próprios, até que as questões sejam esclarecidas e que o Senhor manifeste Sua Glória.
Enquanto mantemos as transgressões evidentes, descobertas, significa que ainda não amamos incondicionalmente, e, se não amamos, não anunciamos o Reino, não trazemos a presença de Jesus, não edificamos.
Isso pode ser particularmente desafiador em relação às pessoas próximas que conhecemos bem e com quem nos relacionamentos intensamente, incrédulas ou não. Talvez sejamos especialmente rigorosos com os irmãos da fé, de quem esperamos determinadas atitudes. Com os de fora, nossa postura pode ir da repulsa à indiferença. Em todos os casos, estará presente o julgamento, e não o amor.
Nesses dias anunciamos o Advento da vinda de Jesus, o Príncipe da Paz, aquele que levou sobre Si as nossas transgressões e, igualmente, as dos outros. Que a contemplação de sua vida, sacrificial desde o Seu nascimento, produza em nós a experiência do Seu amor e através de nós a manifestação desse amor a todos à nossa volta!
Que a Graça de Jesus, o Emanuel, seja com todos.
Fernando Saboia Vieira
Brasília, dezembro de 2011, 2025, AD.
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