domingo, 12 de janeiro de 2025

 A Última Sintonia

 

Fernando Saboia Vieira

 

Para Elsie, Horácio, Cláudia, Luís e Tatiana, meus companheiros na desafiante jornada da infância para a maturidade.

 

 

 

     O dia finalmente terminava, longo, cansativo. A estrada enlameada, no entanto, parecia não ter fim. Seiscentos e trinta quilômetros no coração de um Brasil ainda inexplorado, semisselvagem, em meados da década de 1970. 

A chapada, o cerrado, os campos gerais, os bandos de emas e de veados a correrem soltos, o capim baixo, agitado pelo vento, as árvores raras, tortuosas, as galerias dos rios que se lançavam em quedas radicais, em ravinas inesperadas, compunham a paisagem do Planalto Central, com sua planura a se perder no horizonte.

A Cachoeira do Acaba Vida, Mimoso do Oeste, Roda Velha, Posse, São Desidério, Alvorada do Norte, o rio Corrente, o Posto dos Macacos... Nomes e lugares que iam saindo das nossas vidas para entrarem em nossas memórias mágicas de crianças e habitarem as lendas e fantasias que contaríamos a nossos filhos e netos.

 

     A viatura militar que nos trazia desde Barreiras enfrentava valentemente os lamaçais, os obstáculos e os muitos e perigosos desvios impostos pelas condições precárias da BR 020 naquele tempo. Não eram poucos os relatos sobre motoristas que se perdiam e não conseguiam voltar para a estrada. 

Conversávamos sobre as aventuras, histórias, amizades, lugares, músicas, jogos e brincadeiras que muito rapidamente se tornariam partes de nosso passado, alegres e tristes, já a assumirem contornos de saudade e de alguma melancolia sobre uma fase da vida que agora se distanciava no espaço e no tempo.

Uma família militar chega para não ficar, parte para não voltar. Éramos felizes assim. O grande desafio, à medida em que nós, os filhos, crescíamos era permanecermos unidos. E esse acabávamos de vencer. Íamos juntos para a nova missão, na capital do País, a já lendária Brasília, moderna, planejada.

     Ficavam para trás o 4º BEC, as vilas militares, a ponte de madeira, já substituída pela de concreto, as balsas no Rio Grande, em vias de desaparecerem, o Rio de Ondas, as trilhas na mata, o colégio, os banhos e pescarias no rego, os jogos de futebol, de vôlei, as conversas no parquinho, os bingos na Casa de Hóspedes.

O entardecer silencioso, com poucas luzes, despertando lentamente as vozes dos rios e das matas. Os livros e as músicas dos discos de vinil, tocadas nas radiolas nas tardes e noites chuvosas, o despertar da adolescência com suas emoções, sonhos, dúvidas e questionamentos.

 

     Despedidas. As promessas de contato que não seriam cumpridas. A vida desencontra, a vida encerra seus ciclos para que novos encontros e fases possam acontecer.

 

     Uma cena em particular me enche até hoje o coração. Ao final de cada dia, o alto-falante do quartel tocava hinos e canções militares antes da sirene anunciar o fim do expediente. Nós, então, buscávamos o radinho de pilhas para começar a tentar sintonizar a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, única que podíamos alcançar dessa maneira.

À medida em que a noite chegava, a sintonia melhorava e conseguíamos, às vezes, ouvir o final do programa da tarde, com a música mais pedida do dia. Uma estranha conexão emocional com um mundo distante e desconhecido. Feelings.

Depois, vinham a “Voz do Brasil”“O Globo no Ar” das 20 horas, com notícias, previsão do tempo e situação nas estradas da Guanabara, os jogos de futebol, narrados com entusiasmo e fantasia, como se fossem heroicas epopeias gregas, e o “Panorama Esportivo”, às 23 horas. Assim nasciam flamenguistas...

À meia noite, “O Seu Redator Chefe”, com notícias de todo o País e do mundo. Por vezes, antes do sono, ainda ouvia o início de “Adelzon Alves, o Amigo da Madrugada”. Havia também, em algum momento, um inexplicável programa semanal sobre o Chile...

Mundos que pareciam tão distantes e inatingíveis quanto as estrelas e galáxias visíveis nas magníficas noites de céu claro.

 

     A noite nos alcançou na estrada. Não chegaríamos naquele dia a Brasília, mas pernoitaríamos em Formosa.

 

 

     Busco o radinho de pilhas, meu companheiro inseparável nas noites de insônia, e tento sintonizar, ainda uma vez, a Rádio Globo. Sem muito sucesso. Com a proximidade da civilização, outras ondas certamente interferiam no sinal e a voz do locutor ia se perdendo em meio aos chiados da perda de conexão. 

 

Eu não podia saber naquele momento, mas sintonizava, pela última vez, vozes da minha infância. Elas continuariam a me falar ao coração nas lembranças e nos sentimentos que haviam sedimentado na minha alma. Mas eu não mais as ouviria como antes.

Novas estações de rádio, canais de televisão e tantas outras mídias modernas logo colocariam à minha disposição um universo de palavras, sons, imagens, informações, sensações e possibilidades inimagináveis para mim naquele momento.

 

     Contudo, nada disso me marcaria tanto, me definiria tanto, me inspiraria tanto quanto o que já estava depositado na minha mente e no meu coração naqueles anos de infância e começo de juventude.

     O menino aventureiro, destemido, desbravador de rios e matas, sonhador, contador de histórias, esperançosamente romântico, ficava para trás a cada quilômetro.

     O adolescente tímido, melancólico, introspectivo, com menos histórias e mais poesia e perguntas na alma, incuravelmente romântico, surgia para enfrentar a perigosa jornada para a maturidade.

 

     Todavia, não sozinho. Embora nos anos seguintes conversássemos cada vez menos sobre o passado, e cada vez mais sobre o presente que nos desafiava e o futuro que precisávamos construir, e ainda que os caminhos da vida eventualmente nos afastassem em alguns momentos, sempre estivemos tão próximos e unidos quanto estávamos apertados naquela camionete a cruzar o coração do País, Luís e Tatiana, ainda bebês, trazidos ao colo.

     Não consigo expressar meu amor por vocês e minha alegria por sermos companheiros nessa jornada que, graças ao nosso encontro com Jesus, se tornaria apenas uma etapa daquela com destino à eternidade.

 

     Naquela noite perdi a conexão, a última sintonia com a infância. Mas na manhã do dia seguinte, do alto do Colorado, veríamos Brasília, magnífica no horizonte, abraçada pelo Lago Paranoá, cercada de horizontes abertos, coberta por um céu indescritível, ainda incompleta, ainda a ser formada, como nós, também ela entrando na adolescência, também ela a começar a perigosa jornada para a maturidade.

 

     Corria o mês de fevereiro, do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1975.

 

Brasília, último dia de 2024, AD, véspera do jubileu de nossa chegada a Brasília, última etapa da jornada de nossa família militar.

 

 

Fernando Saboia Vieira

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