sábado, 18 de janeiro de 2025

 As Cores da Liberdade

 

Fernando Saboia Vieira

BSB/Jan/2025

 

“Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada...”

 

 

 

     No início da minha adolescência, no interior do Brasil, as novas modas e comportamentos chegavam até nós como rumores, lendas e mitos, sempre com alguma defasagem no tempo, sempre como algo inatingível, quase irreal. As roupas, as músicas em inglês, cantores e cantoras, ritmos e bandas, cigarros, carros, motos, filmes, atores e atrizes...

     Começavam os anos 1970 e as mudanças provocadas pela chamada revolução cultural do final década anterior nos Estados Unidos e Europa chegavam ao nosso País nas grandes cidades e, pouco a pouco, no interior.

     Um dos símbolos dessas mudanças, que envolviam a contestação de valores e de comportamentos tradicionais da classe média urbana dos países desenvolvidos, um sonho de consumo de todos nós, era a lendária calça Lee, confeccionada em blue jeans.

     Ironicamente, a roupa rústica dos trabalhadores norte-americanos, adotada pelos hippies como contracultura, chegava no nosso mundo elitizada, símbolo de status para a juventude que queria ser moderna e descolada dos padrões de seus pais.

     Dessa maneira, o capitalismo em evolução no nosso chamado terceiro mundo neutralizava o símbolo de contestação, tornando-o objeto de desejo de consumo, que, inclusive, lhe vendiam já “velha e desbotada”, se preferisse.


     Mas, para nós, criados nas pequenas cidades do interior do Nordeste, tudo isso ocupava nosso imaginário e nossas aspirações de uma vida plena de liberdade que apenas sonhávamos um dia ter.


     Dessa maneira, aconteceu que a primeira calça jeans que ganhei não foi como um troféu de liberdade, mas apenas como um esforço dos meus pais para que eu tivesse vestimenta adequada para ir ao tratamento médico que tive que fazer na Capital. E, mesmo assim, era a similar nacional, a brasileira USTOP! 

     Ao chegarmos a Brasília, em 1975, fui matriculado no primeiro ano do ensino médio, na rede pública oficial, e descobri, consternado, que a calça jeans havia se tornado uniforme, roupa obrigatória para todos os alunos. Era desse modo que a sociedade lidava com os rebeldes: os assimilava, padronizava, regulamentava, tornava a contestação, padrão.

 

     Eu, todavia, usava com prazer e liberdade minha calça jeans, até que desbotasse e envelhecesse, obrigatória ou não.

 

     Depois, nos anos de Universidade, turbulentos social e politicamente, entre o final da década de 70 e início dos anos 80, diversas cores disputavam a condição de símbolo da liberdade. Verdes de várias tonalidades e sentidos, vermelhos carregados de demandas e contestações, cinzas em diversas nuances de humores.

 

     Quanto a mim, embora trocasse de vez em quando a cor da camiseta, mantive-me basicamente fiel ao azul desbotado da minha calça jeans, que, aliás, envelheceu e graduou-se comigo.

 

     Foi por esse tempo que um encontro trouxe múltiplas cores para minha vida. Conheci Jesus e o Evangelho que me proporcionou uma vida com Deus. Descobri que no Reino dos Céus a liberdade não se distingue por cores, nem da roupa e nem da pele, mas pelo rompimento das cadeias do pecado, da culpa, da rebeldia e do não amor.

     No entanto, até mesmo a diversidade de cores foi objeto de ataques totalitários e tentativas de sequestro por parte de ideologias pretensamente libertárias que, afinal, disfarçavam na pluralidade a imposição de um pensamento monolítico.

 

     Eu continuei a usar o azul do meu jeans que me parecia combinar com todas as cores e ocasiões, lugares e discursos.

 

     Seguiram-se para mim os muitos anos de serviço público, novamente “uniformizado”, agora pelo uso obrigatório do paletó e da gravata.

     No Congresso Nacional, onde trabalhei, a roupa social era uma curiosa tentativa de amenizar as fortes colorações de concepções radicais de liberdade em matizes mais amenos e sóbrios. Sem muito sucesso, é verdade. Mas o que podem fazer cores e tons de roupas diante das exacerbadas paixões dos corações inflamados por interesses e utopias?

 

     A calça jeans se tornou, então, para mim, a companheira nos escassos espaços de liberdade que a vida adulta responsável me impunha, finais de semana, férias...

 

 

     Cumprida, finalmente, minha missão profissional e cívica, pendurado no cabideiro do armário o último terno de serviço, de lá saiu uma calça velha, azul e desbotada, que me convidou a usá-la do jeito que quisesse, e a grande conclusão de que liberdade é escolher e usar a cor que lhe agradar...

 

 

     “... que você pode usar do jeito que quiser...” *

 

 

Fernando



 

 

*Jingle da marca USTOP  em propaganda de 1976.

 

 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

 A Cruz e o Tesouro

 

Fernando Saboia Vieira, ISN/BSB/2025, AD

 

 

Lucas 9:23-24

Mateus 13:44

 

 

         “E dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me”.

 

         “... o reino dos céus é como um tesouro oculto no campo, que um homem achou e escondeu; e, pelo gozo dele, vai, vende tudo o que tem, e compra aquele campo”

 

 

         Àquela altura do ministério de Jesus, quando sua fama já percorria a Galileia e adjacências, muitas pessoas se apresentavam com a pretensão de O seguirem.

         Jesus, no entanto, não estava interessado em a angariar um grande número de admiradores, apoiadores ou simpatizantes, como os líderes e influenciadores modernos, que vivem em busca de fama e riqueza. 

Sua missão era salvar as pessoas da condenação do pecado e introduzi-las ao Reino de Deus. Para tanto, era necessário que se tornassem seus discípulos e discípulas.

         A diferença não está na intensidade da decisão ou no nível de entendimento de seu ensino, mas, sim, na natureza e na essência do vínculo com Ele.

         Apoiadores, simpatizantes e admiradores não passam por uma experiência de transformação pessoal, arrependimento, novo nascimento e santificação. Eles vêm e vão conforme sua própria disposição e vontade. Vivem, no final das contas, da maneira que lhes agrada, e não para fazer a vontade de Deus e realizar o seu propósito.

         Infelizmente, muitos contados hoje em dia como cristãos, não passam de admiradores, apoiadores, simpatizantes. Ou, pior ainda, pessoas que buscam admiradores, apoiadores e simpatizantes em causa própria utilizando o nome de Jesus.

         Esses têm seu particular conceito de Deus e de felicidade que pode, eventualmente, incluir uma dimensão espiritual da vida, mas certamente, não vai incluir a cruz.

 


O que significa cruz no Evangelho

 

         Jesus, no entanto, estabelece como condição ao seu discipulado que cada pessoa que queira segui-lo se negue a si mesma e tome, cada dia, a sua cruz. 

A partir dessas palavras do Senhor devemos, de imediato, notar que há duas cruzes: aquela Cruz que Ele mesmo tomou sobre Si para expiação dos nossos pecados, e aquela outra cruz que pertence a cada um de nós que pretendemos segui-lo e que nos cabe tomar a cada dia.

         Tragicamente, o Evangelho que vem sendo pregado no início deste século tem, na maioria das vezes, omitido ambas essas cruzes.

         Jesus é apresentado de muitas maneiras, como místico, como humanista, como profeta, como lenda, como influenciador social, mas raramente como o Filho de Deus que veio nos salvar, morrendo na Cruz por nossos pecados, e sendo ressuscitado para nos preceder na eternidade.

         Ocorre que um Evangelho sem a Cruz de Cristo não é o Evangelho de Jesus, e não tem “poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”.  É uma mera fantasia religiosa, uma ilusão humanista.

         Igualmente, prega-se um Cristianismo sem a cruz pessoal a ser tomada por cada discípulo. Mas discipulado sem essa cruz não é o discipulado de Jesus. Não é um caminho de salvação. Também se constitui em uma fantasia religiosa, numa ilusão em que não falta vaidade humana.

         A cruz, no relato do Novo Testamento, tem o significado histórico e cultural de um instrumento de martírio e execução de criminosos condenados à morte, como, em outas épocas e contextos, a forca, a guilhotina ou a cadeira elétrica.

         Para os cristãos, a cruz assume, desde o sacrifício de Jesus, um sentido de sofrimento e de expiação pela culpa do pecado. Ato extremo de amor e de doação de si mesmo que envolve vergonha, dor e rejeição.

         Isso é totalmente verdadeiro em relação à Cruz de Cristo, onde Ele se entregou como pagamento pelos nossos pecados. Mas não é plenamente aplicável à nossa cruz que devemos tomar como discípulos.

         Nascidos e criados numa cultura religiosa de maioria dita cristã, devemos estar atentos às diferenças fundamentais entre a Cruz que o Senhor tomou sobre si, para nos salvar, e aquela que cada um de nós deve tomar, para sermos seus discípulos.

         Elas têm em comum os aspectos de negação de si mesmo, de entrega, de dor e de sacrifício. Contudo, o sentido dessa renúncia e sofrimento, e os seus efeitos, não são os mesmos num e noutro caso.

 

         É certo que a cruz do discípulo envolve sofrimento moral e eventualmente físico. Mas sua finalidade não é o castigo pela culpa ou a expiação pelo pecado. Nem mesmo aperfeiçoamento por meio da dor. Seu propósito é a transformação da pessoa, pelo abandono do governo de si mesmo, pela renúncia cotidiana à velha natureza e maneira de viver e, principalmente, pelo encontro com o Senhor.

         O discípulo toma cada dia sua cruz porque essa é a única maneira de seguir o seu Senhor, de estar com Ele, de pertencer a Ele, de entrar para o Seu Reino.

         Para sermos salvos é necessário que nossa velha natureza morra juntamente com Jesus na Cruz que Ele tomou sobre si. Isso ocorre no batismo. 

Para vivermos em novidade de vida e sermos transformados, como discípulos, na Imagem do Pai, é necessário que essa realidade espiritual seja experimenta dia após dia, por cada um de nós, por meio da cruz que nos cabe tomar.

         Muitos se surpreendem por não se verem totalmente transformados após batismo e continuarem lidando com as debilidades e vícios de sua antiga natureza. 

         Ocorre que o batismo não nos torna autômatos, robôs, como se introduzisse em nós um chip espiritual que passasse a comandar nossos pensamentos, vontades e ações. Continuamos responsáveis por escolher a cada dia nosso caminho com Jesus.

         A Cruz de Cristo, pelo batismo, nos coloca no caminho do discipulado. Mas para andar nele precisamos tomar, cada um, a sua cruz.

Dessa maneira, tomar a cruz tem para o discípulo um sentido de alegria, leveza, libertação, esperança, de experiência da graça do Senhor pelo encontro e comunhão com Ele. 

 

 

A pré-condição: negar-se a si mesmo

         

         Tomar a cruz não é negar-se a si mesmo. Essa é uma pré-condição que significa, nada mais nada menos, do que converter-se, levar o velho homem á morte na Cruz de Cristo e passar a viver para Ele.

         Negar-se a si mesmo, mais do que uma rejeição ao mal e ao pecado que habita em nós, é um ato de amor ao Senhor em resposta ao Seu amor, que nos chama ao discipulado, a sua companhia, a fazermos parte de sua família divina.

 

         Gálatas 2:20-24.

 

 

Implicações da minha cruz

 

         A cruz é instrumento de transformação. Um filtro, um portal que separa o velho ser e a velha vida do novo ser e da nova vida. 

         Nela nada que não pertença ao Reino pode sobreviver, por ela nenhum mal pode passar. Ela nos prova o coração e nos confronta intenções. Ela nos purifica e nos habilita a refletirmos a Imagem de Deus, a sermos impregnados com Sua virtude e santidade.

         A Cruz de Cristo se torna efetiva e poderosa na minha vida quando tomo a minha cruz. Caso contrário, ela será inoperante e eu estarei em vivendo uma religiosidade vazia.

 

Assim, precisamos atender ao chamado do Senhor e tomar, cada dia nossa cruz, isto é, tudo levar a ela para ser provado por ela, entendido nela, vivido no seu poder, por ela purificado, por ela transformado:

 

·      Quem eu sou, a vida que eu vivo. Potencialidades, limitações, desafios, responsabilidades – chamado missão, ser quem eu devo ser, viver para Deus.

 

·      Vontades, fantasias, planos – pecados a abandonar, propósitos a encontrar, realidades a viver.

 

·      Mágoas, ressentimentos, frustrações – perdão, paz, esperança.

 

·      Heranças familiares, culturais, religiosas – um novo estilo de vida, graça e poder.

 

·      Debilidades, vícios, defeitos – força, libertação, transformação.

 

·      O caos da vida – o governo soberano de Deus.

 

·      Conflitos pessoais, disputas, desentendimentos, invejas, ciúmes, justiça própria – sofrer os danos, perdoar, amar.

 

·      Vida interior, sentimentos, pensamentos, afetos, paixões, temores, zonas cinzentas da alma – a presença do Espírito Santo.

 

·      Vitórias e derrotas – quanto passam pela cruz, não raro invertem ou relativizam muito o sentido que normalmente damos a elas.

 

 

Não apenas não ser quem eu sou, não apenas não fazer a minha vontade, mas vir a ser quem eu fui criado para ser, amar a vontade boa, perfeita e agradável de Deus.

Tomar a cruz não é resignar-se diante de um destino ou fatalidade, mas aceitar a realidade que o Senhor nos permite viver para que Ele possa atuar nela.

 

Podemos sugerir alguns exemplos.

 

Alguém precisa cuidar de um enfermo e dar de seu tempo, recursos, energia e atenção. Essa pessoa pode encarar isso como uma adversidade, um obstáculo a sua vida, como algum tipo de peso ou mesmo de castigo imposto pela religião ou pela moral. Ou poderá entender que isso faz parte da cruz que ela deve tomar como discípula e, assim, desfrutar da companhia e da ajuda do Senhor em cada demanda, ter Seu consolo em cada sofrimento e testemunhar a Sua vontade soberana sendo feita.

Pensemos, semelhantemente, na responsabilidade de criar os filhos, nas dificuldades do trabalho ou nos relacionamentos demandadores e complicados. Se, em cada uma dessas circunstâncias tomamos nossa cruz e seguimos Jesus encontraremos na comunhão com Ele força, paciência, esperança e alegria.

 


“Cada dia”: a vivência da cruz

 

         A cruz não é um destino a ser alcançado, um alvo a ser conquistado, uma ação específica a ser praticada, mas uma maneira de viver, de andar no caminho, de prosseguir na jornada.

         Por meio dela, aprendemos cada dia a dependência do Senhor, o buscar sua vontade, o ser transformado pela renovação da mente.

         Por ela, nos arrependo-me, sempre de novo, dos meus pecados, dos meus defeitos, das obras da minha carne, da minha falta de amor.

         Somente nela posso vencer minhas más inclinações e tentações, as exigências do meu eu autocentrado, e buscar viver para Deus e para os outros.

         Na cruz devem morrer minhas fantasias e ilusões sobre mim mesmo, especialmente as espirituais.

         Na cruz, finalmente, posso entender a renúncia, o serviço, o sacrifício e o sofrimento como libertação, como ação de graças, como atos de amor e de consagração, como expressões da graça e do amor de Deus.

         Aprender a amar como Ele, servir como Ele, viver como Ele.

O momento de tomar a cruz se revela na vida comum: nas situações do cotidiano, problemas, imprevistos, acontecimentos, incidentes, acidente, decisões, relacionamentos, conversas, serviços.

Quando percebemos que nosso ego está se sobressaindo, que estamos pessoal e fortemente atingidos, é o momento de nos lembrarmos que devemos tomar nossa cruz para seguir o Senhor naquelas circunstâncias.

Talvez seja o momento de se calar, de aceitar não ter razão, mesmo tendo de sofrer o dano, dar a outra face, isto é, de ser discípulo de Jesus e fazer o que agrada a Ele. E assim, criar o ambiente de fé em que Deus pode agir.

Muitas vozes vão sempre tentar nos tirar do caminho da cruz. Nossa carne, nosso orgulho, a sabedoria do mundo, as filosofias e teorias humanistas, com suas sutilezas e seduções, o inimigo de nossa alma.

Nosso grande desafio, como discípulos, será nos manter atentos a tais tentações e escolhermos, sempre, tomar a nossa cruz para que o Senhor seja nosso socorro, nossa força, nossa salvação, nosso suprimento e nossa alegria.

 

 

Uma Mensagem para o Ano Novo

 

         O que significa para mim, hoje, tomar a minha cruz?

         O que ainda preciso levar a ela para que seja lá provado?

         

         Tomar a minha cruz com alegria, como quem encontra um tesouro oculto no campo. 

A minha cruz é o meu caminho para o Reino de Deus, para desfrutar o Amor do Pai, a Graça do Filho e o Poder do Espírito Santo.

         A minha cruz é o lugar em que eu glorifico a Deus, em que eu O exalto e adoro.

         Na minha cruz, encontro meu chamado e vocação, meu sentido e propósito, minha alegria, paz e esperança.

 

         Soli Deo Gloria.

 

         Seu conservo e companheiro da jornada da cruz,

 

         Fernando




A cruz que devo tomar

 

 

A cruz que devo tomar

Faz do tudo, cada coisa

Do sempre, cada momento

 

Na cruz que devo tomar

As promessas são alianças

E os esforços são alentos

 

Para a cruz que devo tomar

Levo vontades, sombras e fantasias

Lá deixo pecados, dúvidas e temores

 

Da cruz que devo tomar

Recebo vida, propósitos e alegrias

Dela trago paz, esperança e amores

 

Fernando

2025

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 12 de janeiro de 2025

 A Última Sintonia

 

Fernando Saboia Vieira

 

Para Elsie, Horácio, Cláudia, Luís e Tatiana, meus companheiros na desafiante jornada da infância para a maturidade.

 

 

 

     O dia finalmente terminava, longo, cansativo. A estrada enlameada, no entanto, parecia não ter fim. Seiscentos e trinta quilômetros no coração de um Brasil ainda inexplorado, semisselvagem, em meados da década de 1970. 

A chapada, o cerrado, os campos gerais, os bandos de emas e de veados a correrem soltos, o capim baixo, agitado pelo vento, as árvores raras, tortuosas, as galerias dos rios que se lançavam em quedas radicais, em ravinas inesperadas, compunham a paisagem do Planalto Central, com sua planura a se perder no horizonte.

A Cachoeira do Acaba Vida, Mimoso do Oeste, Roda Velha, Posse, São Desidério, Alvorada do Norte, o rio Corrente, o Posto dos Macacos... Nomes e lugares que iam saindo das nossas vidas para entrarem em nossas memórias mágicas de crianças e habitarem as lendas e fantasias que contaríamos a nossos filhos e netos.

 

     A viatura militar que nos trazia desde Barreiras enfrentava valentemente os lamaçais, os obstáculos e os muitos e perigosos desvios impostos pelas condições precárias da BR 020 naquele tempo. Não eram poucos os relatos sobre motoristas que se perdiam e não conseguiam voltar para a estrada. 

Conversávamos sobre as aventuras, histórias, amizades, lugares, músicas, jogos e brincadeiras que muito rapidamente se tornariam partes de nosso passado, alegres e tristes, já a assumirem contornos de saudade e de alguma melancolia sobre uma fase da vida que agora se distanciava no espaço e no tempo.

Uma família militar chega para não ficar, parte para não voltar. Éramos felizes assim. O grande desafio, à medida em que nós, os filhos, crescíamos era permanecermos unidos. E esse acabávamos de vencer. Íamos juntos para a nova missão, na capital do País, a já lendária Brasília, moderna, planejada.

     Ficavam para trás o 4º BEC, as vilas militares, a ponte de madeira, já substituída pela de concreto, as balsas no Rio Grande, em vias de desaparecerem, o Rio de Ondas, as trilhas na mata, o colégio, os banhos e pescarias no rego, os jogos de futebol, de vôlei, as conversas no parquinho, os bingos na Casa de Hóspedes.

O entardecer silencioso, com poucas luzes, despertando lentamente as vozes dos rios e das matas. Os livros e as músicas dos discos de vinil, tocadas nas radiolas nas tardes e noites chuvosas, o despertar da adolescência com suas emoções, sonhos, dúvidas e questionamentos.

 

     Despedidas. As promessas de contato que não seriam cumpridas. A vida desencontra, a vida encerra seus ciclos para que novos encontros e fases possam acontecer.

 

     Uma cena em particular me enche até hoje o coração. Ao final de cada dia, o alto-falante do quartel tocava hinos e canções militares antes da sirene anunciar o fim do expediente. Nós, então, buscávamos o radinho de pilhas para começar a tentar sintonizar a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, única que podíamos alcançar dessa maneira.

À medida em que a noite chegava, a sintonia melhorava e conseguíamos, às vezes, ouvir o final do programa da tarde, com a música mais pedida do dia. Uma estranha conexão emocional com um mundo distante e desconhecido. Feelings.

Depois, vinham a “Voz do Brasil”“O Globo no Ar” das 20 horas, com notícias, previsão do tempo e situação nas estradas da Guanabara, os jogos de futebol, narrados com entusiasmo e fantasia, como se fossem heroicas epopeias gregas, e o “Panorama Esportivo”, às 23 horas. Assim nasciam flamenguistas...

À meia noite, “O Seu Redator Chefe”, com notícias de todo o País e do mundo. Por vezes, antes do sono, ainda ouvia o início de “Adelzon Alves, o Amigo da Madrugada”. Havia também, em algum momento, um inexplicável programa semanal sobre o Chile...

Mundos que pareciam tão distantes e inatingíveis quanto as estrelas e galáxias visíveis nas magníficas noites de céu claro.

 

     A noite nos alcançou na estrada. Não chegaríamos naquele dia a Brasília, mas pernoitaríamos em Formosa.

 

 

     Busco o radinho de pilhas, meu companheiro inseparável nas noites de insônia, e tento sintonizar, ainda uma vez, a Rádio Globo. Sem muito sucesso. Com a proximidade da civilização, outras ondas certamente interferiam no sinal e a voz do locutor ia se perdendo em meio aos chiados da perda de conexão. 

 

Eu não podia saber naquele momento, mas sintonizava, pela última vez, vozes da minha infância. Elas continuariam a me falar ao coração nas lembranças e nos sentimentos que haviam sedimentado na minha alma. Mas eu não mais as ouviria como antes.

Novas estações de rádio, canais de televisão e tantas outras mídias modernas logo colocariam à minha disposição um universo de palavras, sons, imagens, informações, sensações e possibilidades inimagináveis para mim naquele momento.

 

     Contudo, nada disso me marcaria tanto, me definiria tanto, me inspiraria tanto quanto o que já estava depositado na minha mente e no meu coração naqueles anos de infância e começo de juventude.

     O menino aventureiro, destemido, desbravador de rios e matas, sonhador, contador de histórias, esperançosamente romântico, ficava para trás a cada quilômetro.

     O adolescente tímido, melancólico, introspectivo, com menos histórias e mais poesia e perguntas na alma, incuravelmente romântico, surgia para enfrentar a perigosa jornada para a maturidade.

 

     Todavia, não sozinho. Embora nos anos seguintes conversássemos cada vez menos sobre o passado, e cada vez mais sobre o presente que nos desafiava e o futuro que precisávamos construir, e ainda que os caminhos da vida eventualmente nos afastassem em alguns momentos, sempre estivemos tão próximos e unidos quanto estávamos apertados naquela camionete a cruzar o coração do País, Luís e Tatiana, ainda bebês, trazidos ao colo.

     Não consigo expressar meu amor por vocês e minha alegria por sermos companheiros nessa jornada que, graças ao nosso encontro com Jesus, se tornaria apenas uma etapa daquela com destino à eternidade.

 

     Naquela noite perdi a conexão, a última sintonia com a infância. Mas na manhã do dia seguinte, do alto do Colorado, veríamos Brasília, magnífica no horizonte, abraçada pelo Lago Paranoá, cercada de horizontes abertos, coberta por um céu indescritível, ainda incompleta, ainda a ser formada, como nós, também ela entrando na adolescência, também ela a começar a perigosa jornada para a maturidade.

 

     Corria o mês de fevereiro, do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1975.

 

Brasília, último dia de 2024, AD, véspera do jubileu de nossa chegada a Brasília, última etapa da jornada de nossa família militar.

 

 

Fernando Saboia Vieira