A Cruz e o Tesouro
Fernando Saboia Vieira, ISN/BSB/2025, AD
Lucas 9:23-24
Mateus 13:44
“E dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me”.
“... o reino dos céus é como um tesouro oculto no campo, que um homem achou e escondeu; e, pelo gozo dele, vai, vende tudo o que tem, e compra aquele campo”
Àquela altura do ministério de Jesus, quando sua fama já percorria a Galileia e adjacências, muitas pessoas se apresentavam com a pretensão de O seguirem.
Jesus, no entanto, não estava interessado em a angariar um grande número de admiradores, apoiadores ou simpatizantes, como os líderes e influenciadores modernos, que vivem em busca de fama e riqueza.
Sua missão era salvar as pessoas da condenação do pecado e introduzi-las ao Reino de Deus. Para tanto, era necessário que se tornassem seus discípulos e discípulas.
A diferença não está na intensidade da decisão ou no nível de entendimento de seu ensino, mas, sim, na natureza e na essência do vínculo com Ele.
Apoiadores, simpatizantes e admiradores não passam por uma experiência de transformação pessoal, arrependimento, novo nascimento e santificação. Eles vêm e vão conforme sua própria disposição e vontade. Vivem, no final das contas, da maneira que lhes agrada, e não para fazer a vontade de Deus e realizar o seu propósito.
Infelizmente, muitos contados hoje em dia como cristãos, não passam de admiradores, apoiadores, simpatizantes. Ou, pior ainda, pessoas que buscam admiradores, apoiadores e simpatizantes em causa própria utilizando o nome de Jesus.
Esses têm seu particular conceito de Deus e de felicidade que pode, eventualmente, incluir uma dimensão espiritual da vida, mas certamente, não vai incluir a cruz.
O que significa cruz no Evangelho
Jesus, no entanto, estabelece como condição ao seu discipulado que cada pessoa que queira segui-lo se negue a si mesma e tome, cada dia, a sua cruz.
A partir dessas palavras do Senhor devemos, de imediato, notar que há duas cruzes: aquela Cruz que Ele mesmo tomou sobre Si para expiação dos nossos pecados, e aquela outra cruz que pertence a cada um de nós que pretendemos segui-lo e que nos cabe tomar a cada dia.
Tragicamente, o Evangelho que vem sendo pregado no início deste século tem, na maioria das vezes, omitido ambas essas cruzes.
Jesus é apresentado de muitas maneiras, como místico, como humanista, como profeta, como lenda, como influenciador social, mas raramente como o Filho de Deus que veio nos salvar, morrendo na Cruz por nossos pecados, e sendo ressuscitado para nos preceder na eternidade.
Ocorre que um Evangelho sem a Cruz de Cristo não é o Evangelho de Jesus, e não tem “poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”. É uma mera fantasia religiosa, uma ilusão humanista.
Igualmente, prega-se um Cristianismo sem a cruz pessoal a ser tomada por cada discípulo. Mas discipulado sem essa cruz não é o discipulado de Jesus. Não é um caminho de salvação. Também se constitui em uma fantasia religiosa, numa ilusão em que não falta vaidade humana.
A cruz, no relato do Novo Testamento, tem o significado histórico e cultural de um instrumento de martírio e execução de criminosos condenados à morte, como, em outas épocas e contextos, a forca, a guilhotina ou a cadeira elétrica.
Para os cristãos, a cruz assume, desde o sacrifício de Jesus, um sentido de sofrimento e de expiação pela culpa do pecado. Ato extremo de amor e de doação de si mesmo que envolve vergonha, dor e rejeição.
Isso é totalmente verdadeiro em relação à Cruz de Cristo, onde Ele se entregou como pagamento pelos nossos pecados. Mas não é plenamente aplicável à nossa cruz que devemos tomar como discípulos.
Nascidos e criados numa cultura religiosa de maioria dita cristã, devemos estar atentos às diferenças fundamentais entre a Cruz que o Senhor tomou sobre si, para nos salvar, e aquela que cada um de nós deve tomar, para sermos seus discípulos.
Elas têm em comum os aspectos de negação de si mesmo, de entrega, de dor e de sacrifício. Contudo, o sentido dessa renúncia e sofrimento, e os seus efeitos, não são os mesmos num e noutro caso.
É certo que a cruz do discípulo envolve sofrimento moral e eventualmente físico. Mas sua finalidade não é o castigo pela culpa ou a expiação pelo pecado. Nem mesmo aperfeiçoamento por meio da dor. Seu propósito é a transformação da pessoa, pelo abandono do governo de si mesmo, pela renúncia cotidiana à velha natureza e maneira de viver e, principalmente, pelo encontro com o Senhor.
O discípulo toma cada dia sua cruz porque essa é a única maneira de seguir o seu Senhor, de estar com Ele, de pertencer a Ele, de entrar para o Seu Reino.
Para sermos salvos é necessário que nossa velha natureza morra juntamente com Jesus na Cruz que Ele tomou sobre si. Isso ocorre no batismo.
Para vivermos em novidade de vida e sermos transformados, como discípulos, na Imagem do Pai, é necessário que essa realidade espiritual seja experimenta dia após dia, por cada um de nós, por meio da cruz que nos cabe tomar.
Muitos se surpreendem por não se verem totalmente transformados após batismo e continuarem lidando com as debilidades e vícios de sua antiga natureza.
Ocorre que o batismo não nos torna autômatos, robôs, como se introduzisse em nós um chip espiritual que passasse a comandar nossos pensamentos, vontades e ações. Continuamos responsáveis por escolher a cada dia nosso caminho com Jesus.
A Cruz de Cristo, pelo batismo, nos coloca no caminho do discipulado. Mas para andar nele precisamos tomar, cada um, a sua cruz.
Dessa maneira, tomar a cruz tem para o discípulo um sentido de alegria, leveza, libertação, esperança, de experiência da graça do Senhor pelo encontro e comunhão com Ele.
A pré-condição: negar-se a si mesmo
Tomar a cruz não é negar-se a si mesmo. Essa é uma pré-condição que significa, nada mais nada menos, do que converter-se, levar o velho homem á morte na Cruz de Cristo e passar a viver para Ele.
Negar-se a si mesmo, mais do que uma rejeição ao mal e ao pecado que habita em nós, é um ato de amor ao Senhor em resposta ao Seu amor, que nos chama ao discipulado, a sua companhia, a fazermos parte de sua família divina.
Gálatas 2:20-24.
Implicações da minha cruz
A cruz é instrumento de transformação. Um filtro, um portal que separa o velho ser e a velha vida do novo ser e da nova vida.
Nela nada que não pertença ao Reino pode sobreviver, por ela nenhum mal pode passar. Ela nos prova o coração e nos confronta intenções. Ela nos purifica e nos habilita a refletirmos a Imagem de Deus, a sermos impregnados com Sua virtude e santidade.
A Cruz de Cristo se torna efetiva e poderosa na minha vida quando tomo a minha cruz. Caso contrário, ela será inoperante e eu estarei em vivendo uma religiosidade vazia.
Assim, precisamos atender ao chamado do Senhor e tomar, cada dia nossa cruz, isto é, tudo levar a ela para ser provado por ela, entendido nela, vivido no seu poder, por ela purificado, por ela transformado:
· Quem eu sou, a vida que eu vivo. Potencialidades, limitações, desafios, responsabilidades – chamado missão, ser quem eu devo ser, viver para Deus.
· Vontades, fantasias, planos – pecados a abandonar, propósitos a encontrar, realidades a viver.
· Mágoas, ressentimentos, frustrações – perdão, paz, esperança.
· Heranças familiares, culturais, religiosas – um novo estilo de vida, graça e poder.
· Debilidades, vícios, defeitos – força, libertação, transformação.
· O caos da vida – o governo soberano de Deus.
· Conflitos pessoais, disputas, desentendimentos, invejas, ciúmes, justiça própria – sofrer os danos, perdoar, amar.
· Vida interior, sentimentos, pensamentos, afetos, paixões, temores, zonas cinzentas da alma – a presença do Espírito Santo.
· Vitórias e derrotas – quanto passam pela cruz, não raro invertem ou relativizam muito o sentido que normalmente damos a elas.
Não apenas não ser quem eu sou, não apenas não fazer a minha vontade, mas vir a ser quem eu fui criado para ser, amar a vontade boa, perfeita e agradável de Deus.
Tomar a cruz não é resignar-se diante de um destino ou fatalidade, mas aceitar a realidade que o Senhor nos permite viver para que Ele possa atuar nela.
Podemos sugerir alguns exemplos.
Alguém precisa cuidar de um enfermo e dar de seu tempo, recursos, energia e atenção. Essa pessoa pode encarar isso como uma adversidade, um obstáculo a sua vida, como algum tipo de peso ou mesmo de castigo imposto pela religião ou pela moral. Ou poderá entender que isso faz parte da cruz que ela deve tomar como discípula e, assim, desfrutar da companhia e da ajuda do Senhor em cada demanda, ter Seu consolo em cada sofrimento e testemunhar a Sua vontade soberana sendo feita.
Pensemos, semelhantemente, na responsabilidade de criar os filhos, nas dificuldades do trabalho ou nos relacionamentos demandadores e complicados. Se, em cada uma dessas circunstâncias tomamos nossa cruz e seguimos Jesus encontraremos na comunhão com Ele força, paciência, esperança e alegria.
“Cada dia”: a vivência da cruz
A cruz não é um destino a ser alcançado, um alvo a ser conquistado, uma ação específica a ser praticada, mas uma maneira de viver, de andar no caminho, de prosseguir na jornada.
Por meio dela, aprendemos cada dia a dependência do Senhor, o buscar sua vontade, o ser transformado pela renovação da mente.
Por ela, nos arrependo-me, sempre de novo, dos meus pecados, dos meus defeitos, das obras da minha carne, da minha falta de amor.
Somente nela posso vencer minhas más inclinações e tentações, as exigências do meu eu autocentrado, e buscar viver para Deus e para os outros.
Na cruz devem morrer minhas fantasias e ilusões sobre mim mesmo, especialmente as espirituais.
Na cruz, finalmente, posso entender a renúncia, o serviço, o sacrifício e o sofrimento como libertação, como ação de graças, como atos de amor e de consagração, como expressões da graça e do amor de Deus.
Aprender a amar como Ele, servir como Ele, viver como Ele.
O momento de tomar a cruz se revela na vida comum: nas situações do cotidiano, problemas, imprevistos, acontecimentos, incidentes, acidente, decisões, relacionamentos, conversas, serviços.
Quando percebemos que nosso ego está se sobressaindo, que estamos pessoal e fortemente atingidos, é o momento de nos lembrarmos que devemos tomar nossa cruz para seguir o Senhor naquelas circunstâncias.
Talvez seja o momento de se calar, de aceitar não ter razão, mesmo tendo de sofrer o dano, dar a outra face, isto é, de ser discípulo de Jesus e fazer o que agrada a Ele. E assim, criar o ambiente de fé em que Deus pode agir.
Muitas vozes vão sempre tentar nos tirar do caminho da cruz. Nossa carne, nosso orgulho, a sabedoria do mundo, as filosofias e teorias humanistas, com suas sutilezas e seduções, o inimigo de nossa alma.
Nosso grande desafio, como discípulos, será nos manter atentos a tais tentações e escolhermos, sempre, tomar a nossa cruz para que o Senhor seja nosso socorro, nossa força, nossa salvação, nosso suprimento e nossa alegria.
Uma Mensagem para o Ano Novo
O que significa para mim, hoje, tomar a minha cruz?
O que ainda preciso levar a ela para que seja lá provado?
Tomar a minha cruz com alegria, como quem encontra um tesouro oculto no campo.
A minha cruz é o meu caminho para o Reino de Deus, para desfrutar o Amor do Pai, a Graça do Filho e o Poder do Espírito Santo.
A minha cruz é o lugar em que eu glorifico a Deus, em que eu O exalto e adoro.
Na minha cruz, encontro meu chamado e vocação, meu sentido e propósito, minha alegria, paz e esperança.
Soli Deo Gloria.
Seu conservo e companheiro da jornada da cruz,
Fernando
A cruz que devo tomar
A cruz que devo tomar
Faz do tudo, cada coisa
Do sempre, cada momento
Na cruz que devo tomar
As promessas são alianças
E os esforços são alentos
Para a cruz que devo tomar
Levo vontades, sombras e fantasias
Lá deixo pecados, dúvidas e temores
Da cruz que devo tomar
Recebo vida, propósitos e alegrias
Dela trago paz, esperança e amores
Fernando
2025