Como discernir a voz de Deus?
Fernando Saboia, ISN/BSB, março 2023, AD
Essas foram algumas das perguntas feitas por jovens no retiro de fevereiro de 2023, em Alexânia/GO:
· “O que significa olhar para Jesus?”
· “Como ter certeza de que é a voz do Espírito Santo falando comigo?
· “Se o coração do homem é enganoso, como ouvir a resposta certa do Senhor?”
· “Como discernir a voz de Deus e a voz da alma”?
· “Como saber se é o Espírito Santo falando conosco ou só nossa cabeça?”
São essas perguntas fundamentais para nossa caminhada com Deus, especialmente numa época em que tantas e diferentes “vozes” nos falam e tentam influenciar a todo momento.
Podemos, talvez, começar a refletir sobre elas fazendo uma analogia com nossos sentidos físicos, uma vez que as Escrituras se valem constantemente desse tipo de metáfora quando se referem ao “ver” e “ouvir” a Deus.
Uma analogia com nossos sentidos físicos de percepção.
Aprendemos nas aulas de biologia que nós, seres humanos, somos dotados de 5 sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. A esses correspondem os órgãos encarregados de perceber os estímulos do meio ambiente e captá-los para serem interpretados pelo nosso cérebro: olhos, ouvidos, narinas, papilas gustativas e pele.
Estamos, a todo momento, expostos a uma variedade muito grande de estímulos, mas só conseguimos apreender uma pequena parte das cores, sons, cheiros, sabores e contatos físicos que nos cercam e nos atingem.
Algumas pessoas nascem com capacidade natural diferenciada para captar esses estímulos, e percebem mais, menos ou de forma peculiar sons, cores, cheiros, sabores e contatos: ouvido absoluto, daltônicos, acuidade visual, hipersensibilidades ...
Os sentidos físicos podem ser treinados, aperfeiçoados, aguçados, educados para perceber mais e melhor os estímulos: músicos, cegos, radiologistas, enólogos ...
Eles também podem ser embotados, negligenciados ou enganados: ilusões de ótica, catarata, distração...
Nossa percepção dos estímulos por meio dos sentidos físicos pode ocorrer de forma involuntária ou podemos direcioná-los conscientemente para algum aspecto da realidade: ruídos ambientes ou atenção a uma conversa, a uma música, a uma pregação; olhar periférico ou focado; degustar ou apenas mastigar ...
Semelhantemente, nossa alma é dotada de sentidos espirituais, isto é, de capacidades de perceber, apreender e discernir estímulos não físicos, numa dimensão diferente da captada pelos órgãos biológicos de percepção. Aqui precisamos tomar cuidado com uma busca excessiva de concretude nas manifestações de Deus o que é característico nas religiões em geral, mas estranha ao Cristianismo (texto do Elias Brito).
Alguns perigos, no entanto, precisam ser evitados: o subjetivismo, que confunde as mensagens de Deus com nossa própria vontade e pensamentos, o misticismo, que busca confirmações por meio de sinais e de palavras proféticas e um tipo de racionalismo, que nega a possiblidade do Senhor nos falar pessoalmente e não apenas por meio do que está escrito na Bíblia.
As Escrituras se referem ao “órgão da alma” dotado dessas faculdades de percepção como o “coração”:
· Mateus 5:8; 6:22-23, 2ª aos Coríntios 3:12-18 – ver, entender, ser iluminado, ter revelação
· Hebreus 3:12-19 – ouvir, discernir, reconhecer a voz de Deus
· Romanos 10:9-10 – crer, receber a verdade, ser tocado por ela
No homem natural, esses sentidos de percepção espiritual estão embotados, atrofiados, pervertidos de suas reais funções. Quando alguém se converte, no entanto, “o véu é removido de seu coração”, ele ganha “a mente de Cristo”, é “renovado no espírito do seu entendimento”, é “transformado pela renovação da mente”, são “iluminados os olhos do coração” pela atuação do Espírito Santo que regenera sua alma e ativa suas faculdades amortecidas pelo pecado.
· 1ª aos Coríntios 1:10-16; Romanos 12:1-2; Efésios 1:18.
No entanto, nosso órgão dos sentidos de percepção espiritual, o coração, precisa ser exercitado nessas faculdades regeneradas. É necessário que ele seja “desobstruído”, “calibrado” e “sintonizado” para captar o que o Espírito fala a todo momento, a voz de Deus que se comunica incessantemente e distingui-la de tantas outras que também navegam nessa dimensão.
Essas outras vozes provêm da nossa natureza humana, com seus desejos, medos, vontades, conceitos, ansiedades e pensamento; de pessoas que nos falam presencialmente ou não e nos marcam, influenciam; de espíritos que habitam o mundo espiritual, quer na luz, quer nas trevas.
Somos, o tempo todo, atravessados por ondas eletromagnéticas que transmitem em várias frequências – rádios, celulares, televisão. No entanto, é necessário ter o equipamento adequado para captar e decodificar cada uma delas (Meu rádio de pilhas lá em Barreiras...).
Do mesmo modo, Deus fala incessantemente. Às vezes de modo geral, se revelando em toda a Criação, às vezes de modo especial para seu povo ou para alguém. Às vezes Ele nos fala quando não esperamos, às vezes temos que buscar ouvir Sua voz em situações específicas.
Assim, precisamos aprender a não apenas ouvir, mas escutar com atenção, não apenas ver, mas buscar com os olhos, não apenas saber, mas experimentar, provar...
Queremos compartilhar sobre algumas maneiras de melhor percebermos a voz de Deus com nosso coração, captando-a, distinguindo-a de outras vozes, interpretando sua linguagem, compreendendo sua mensagem para nós.
A sintonia do coração
A Bíblia diz que o coração do homem é enganoso e corrupto. Mas também diz, pelo mesmo profeta Jeremias, que Deus nos daria um novo coração capaz de conhecer a Ele, que nós O encontraríamos quando o buscássemos de todo coração e que Ele imprimiria suas leis na nossa mente e a escreverias no nosso coração – Jeremias 17:9, 24:7, 29:13, 31:33. Aliás, considero Jeremias o melhor cardiologista do Velho Testamento, pela maneira intensa como ele recebia e vivenciava a Palavra de Deus para ele e para o povo.
Esse coração regenerado e sensível à vontade de Deus é um dos aspectos da obra do Espírito Santo em nós que nos torna novas criaturas, libertos da escravidão do pecado e livres para nos relacionarmos com o Pai.
Jesus disse que são “felizes os limpos de coração, porque eles verão a Deus” – Mateus 5:8.
Assim, não temos que desprezar nosso coração, mas, ao contrário, torná-lo adequado à habitação de Deus em nós e perceptivo ao que Ele nos fala e nos revela. Precisamos aprender a ver, a ouvir, a discernir e entender os estímulos do mundo espiritual, especialmente as mensagens do Pai para nós.
Vamos mencionar alguns aspectos importantes desse caminho de aprendizado para discernir a voz de Deus, para perceber e entender sua comunicação conosco.
1) Confissão de pecados, andar na luz
· Isaías 59:1-2
· 1ª de João 1:5-9
Não se trata de meramente buscar um perdão “judicial”, para escapar de uma condenação, mas se esforçar para ter um acesso sempre livre e desimpedido para se relacionar com Deus.
Temos que nos livrar de tudo o que pode fazer barreira entre nós e o Pai, como a soberba, a cobiça, a ira, a mágoa, o ressentimento, a falta de perdão, de misericórdia, de amor, a mentira, a hipocrisia ...
2) Santuário interior
· Salmo 131
· 1ª aos Coríntios 3:16, 6:19
· Filipenses 2:1-11, 4:8
· Efésios 4:22-24ss, 5:21
· Colossenses 3:1-3, 12-16
· Romanos 12:1-2
Somos templos, santuários, do Espírito Santo, lugar de especial habitação de Deus, onde Ele quer se manifestar e ser adorado, onde Ele vai nos falar de modo pessoal e particular – 1ª aos Coríntios.
Precisamos criar um ambiente interior, no nosso coração, adequado a essa Presença e em que Ele possa fazer ouvir Sua voz, nos tocar, nos transformar.
O que se tentou produzir por meio de igrejas e catedrais, temos que buscar em nosso coração: silêncio, solitude, reverência, temor, adoração, “pés descalços em terra santa”.
Aprender a oração não apenas como petições, mas também como diálogo, expectativa. Sem pressa para entrar, sem pressa para sair, diante da Presença do Deus Supremo.
Humilhar-se, coloca-se na dependência de Deus, purificar os propósitos e intenções, sossegar a alma, silenciar as outras vozes, esperar no Senhor – Salmo 131.
Encher-se dos sentimentos e pensamentos de Jesus, das coisas do alto, dos Seus propósitos, da busca da Sua vontade, conhecer a Ele, consagrar-se a Ele e ter a mente renovada, deixar que Ele nos revele quem somos – Filipenses, Colossenses, Romanos.
Nos revestirmos de nossa nova natureza, do Ser de Deus, buscarmos ser cheios do Espírito Santo e andar nele – Colossenses, Efésios, Gálatas.
A quem adoramos? Qual é o nosso maior tesouro, a nossa pérola mais preciosa? Quem é o dono de nossa vida e do nosso coração?
Dessa maneira, buscando essas coisas, sintonizaremos nosso coração para ouvir a voz do Senhor, limparemos nosso coração para vermos a Deus.
3) Fé e obediência
· Hebreus 3:12-19, 11:1-3, 6
· João 11:40
A incredulidade e a desobediência, que são praticamente sinônimas na Bíblia, nos impedem de ouvir e discernir a voz de Deus. Elas provocam o endurecimento (esclerose) do coração pelo engano do pecado.
A fé remove o véu do coração, ilumina, dá entendimento, compreensão, discernimento, ativa as faculdades espirituais da mente e do coração.
Crer é uma escolha, uma decisão, um comprometimento, uma adesão a uma verdade. Produz mudanças interiores e exteriores.
4) Leitura e meditação na Palavra
· Salmo 119:
· Hebreus 4:12
Nossos conceitos, ideias, convicções, a mentalidade do mundo, nossa educação, nossa cultura, tudo o que absorvemos de pessoas, família, amigos, professores, influenciadores etc. tudo isso pode se tornar empecilhos para ouvirmos e discernirmos a voz de Deus.
Precisamos gerar em nossa vida um fluxo de “água limpa”, de conceitos, ideias, verdades, valores e princípios de Deus, revelados nas Escrituras.
Quanto mais tivermos a Palavra no coração, quanto mais nos aprofundarmos nela por meio da leitura, do estudo e da meditação, mais nosso coração estará apto a ouvir e discernir a voz de Deus.
Não se trata apenas de evitar erros e enganos, mas de, principalmente, reconhecer, aprender e amar as verdades de Deus e deixar que elas nos transformem e nos conduzam.
5) Relacionamentos no Corpo
· Colossenses 3:16
· Efésios 4:15-16
· Provérbios 11:14
Devemos nos edificar, instruir, exortar e aconselhar mutuamente.
O Espírito Santo concede palavras de sabedoria e de conhecimento aos membros do Corpo para a edificação de todos e de cada um.
A paz que deve ser o árbitro em nosso coração não é subjetiva, individual, não se confundo com um sentimento e bem-estar, mas é a paz de Cristo, que se manifesta do Corpo, na Igreja.
Além disso, na multidão dos conselhos há segurança.
6) Conhecer a Deus e conhecer a si mesmo em Deus
Quando conhecemos bem uma pessoa, conseguimos discernir com boa dose de precisão o que ela diria ou não diria, o que ela pensa ou não pensa sobre algum assunto. Assim, devemos buscar conhecer cada vez mais de Deus por meio das Escrituras, da Igreja, de Jesus, do Espírito Santo e de nossas experiências com Ele a cada dia.
Não significa que Deus vai falar ou que vamos ouvir imediatamente, naqueles momentos especiais de busca. Precisamos às vezes lidar com o silêncio do Senhor e esperar nele.
Não devemos nos paralisar ou sermos dominados pelo medo de errar. Deus é maior do que nossos eventuais erros. Muitas vezes temos que tomar decisões sem termos uma resposta clara e objetiva do Senhor, mas contamos com suas verdades e princípios e com a sabedoria e inteligência que Ele nos concede. E podemos sempre contar com as correções do Seu “GPS”.
Afinal, como disse Melissa, na sabedoria de seus 4 anos de idade, Deus nunca desiste de ser nosso amigo!
Salmo para o entardecer: a Voz que fala
Ouvi tua voz no silêncio
Quando minha alma clamava
Por socorro,
Ouvi tua voz no ruído incessante
Da agitação humana
Quando minha alma emudecia
De pavor
Ouvi tua voz – não posso mais
Ser o mesmo
Estou agora além do medo
E da coragem,
Da sabedoria
E da ignorância
Da razão e da insanidade:
Estou preso a ti,
O coração escravo do teu
Amor
A alma cheia da tua voz
Não sei mais o que é sofrimento
Ou prazer,
Só sei que tu és o pão
Da minha fome
E a água
Da minha sede,
A voz do meu silêncio
E a luz nas minhas trevas
Fernando Saboia
De “Tardes e Manhãs”, 2005.