Modelos ou dominadores?
1ª de Pedro 5:1-4
Fernando Saboia, ISN/BSB/2022AD
A partir do correto princípio bíblico de que devemos ser “modelos” para os irmãos e irmãs na Igreja, podemos ser sutilmente tentados a nos tornarmos seus “dominadores”.
De fato, entre o “imite” e o “obedeça” há uma distância pequena e uma fronteira nem sempre percebida, especialmente num ambiente de Igreja em que todos somos ensinados a honrar e seguir os exemplos de nossos irmãos e irmãs mais maduros, nossos discipuladores e discipuladoras, líderes e pastores.
Criamos nosso próprio universo de personagens heroicos, de “mitos e lendas”, elevando pessoas a uma condição equiparável à dos “famosos” e “influenciadores” modernos, uma vez que elas são imitadas não apenas em suas virtudes e qualidades como cristãs, como deveriam ser, mas também na maneira como se vestem, falam, cortam o cabelo, arrumam a casa, comem, bebem, nos seus gostos musicais, preferências, costumes etc.
Valorizamos personalidades fortes, em que humores, manias e até mesmo desequilíbrios psicológicos se passam por virtudes. Suas frases de efeito, logomarcas, bordões, memes e slogans são mais repetidos do que os textos da Bíblia.
Suas histórias de sucesso, este muitas vezes medido em números de seguidores, de apoios virtuais, de visualizações e de audiências, em extensão de influência, quantidade de convites, de viagens etc., numa patética e ímpia conformação com este século, se tornam projetos de vida para muitos.
Vale lembrar que popularidade ou aprovação das pessoas nunca foi critério de validação no Reino de Deus, nem no ministério de Jesus, nem nos dos apóstolos, nem nos dos homens e mulheres de Deus que os seguiram ao longo dos séculos.
Alguns, influenciados pela mentalidade deste século e seduzidos pelas modernas ferramentas de comunicação, especializam-se em atrativas performances presenciais ou virtuais, são exagerados, engraçados, polêmicos, profícuos em ditos e citações, na produção de todo tipo de conteúdo chamativo e adequado às redes sociais, em constante exibição das próprias qualidades e em frenética busca por espaço nesse mercado de imagem, exposição e influência.
Requerem lealdade, fidelidade, admiração e imitação de seus seguidores e apoiadores, além, é claro, de recursos para sustentar seus por vezes extravagantes estilos de vida. Em contrapartida, procuram oferecer aos seus públicos aquilo que eles desejam consumir, sem muito compromisso com a verdade ou com valores.
Temos vistos não poucos irmãos iniciarem muito bem-intencionados um ministério de proclamação do Reino mas se deixarem seduzir, em algum momento, por esse espírito e métodos mundanos, e, assim, terminarem por comprometer o Evangelho e a própria fé.
Não há como deixar de lembrar as contundentes palavras de Jesus:
“Como podeis crer, vós os que aceitais glória uns dos outros e, contudo, não procurais a glória que vem do Deus único?”
Jesus está dizendo que meramente aceitar glória humana é empecilho absoluto para a fé. Quanto mais buscar! Por que? Porque quem aceita glória dos homens deixa de glorificar o Deus único, faz de si mesmo um deus, já se tornou o pior tipo de idólatra.
Como, então, ser modelo e não ser dominador? Como trazer o viver em Cristo para a luz e proclamar, com a própria existência, o Reino de Deus e, assim, levar as pessoas a glorificarem o Pai Celeste, sem se tornar um influenciador em busca de apoios, um controlador de vidas, um opressor das pessoas a quem devemos serviço, cuidado e amor?
Considero ser esse um tema difícil de ser abordado com honestidade por estar cercado de muitas tentações, desde a falsa humildade, que torna vã a graça de Deus, até a soberba, que dessa graça abusa.
Podemos, talvez, começar a refletir sobre isso considerando três vezes em que, no Evangelho, Jesus apontou explicitamente para si mesmo e disse que seus discípulos deveriam imitá-lo.
Em Mateus 11:28-30, após chamar para junto de si e para sob o Seu jugo os cansados e sobrecarregados, o Senhor disse:
“aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração”.
Nas dramáticas horas que precederam seu julgamento e martírio, Jesus, durante sua última refeição com seus discípulos, tomou uma toalha, colocou água numa bacia e lavou-lhes os pés. Diante da perplexidade e dos questionamentos deles, Ele declarou:
“Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.” (João 13:13-15).
Logo adiante, ainda no relato de João, capítulo 13, lemos no verso 34:
“Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”.
Queridos irmãos e irmãs, companheiros de jornada, ao apontar para si mesmo como exemplo Jesus não destacou suas divinas qualidades de Filho de Deus, Sua sabedoria, santidade, poder e autoridade. Ele preferiu mostrar-se como o Filho do Homem, manso, humilde, servo e amoroso.
Se formos modelos para os fiéis nessas características e exemplos de Jesus, certamente não nos tornaremos seus dominadores. Ao contrário. A humildade nos levará a preferirmos os outros em honra, considerando-os superiores a nós mesmos, a mansidão nos dará a correta maneira de lidarmos com as dificuldades e oposições, o serviço nos manterá conscientes de nosso relacionamento com o Senhor e com os irmãos e o amor sempre fluirá no sentido de não buscarmos nossos próprios interesses, mas, sim, os das pessoas.
No primeiro texto, em Mateus 11, Jesus convida os cansados e sobrecarregados a encontrarem descanso para suas almas. Quantos não vivem assim, nesses nossos dias? Ou quantas vezes não estamos quaisquer de nós nessa condição? Quantos não andam à procura de quem lhes dê alento e consolo?
Infelizmente, não poucos acabam vítimas de propostas falsas, de ofertas enganosas, que pretendem propiciar esse repouso e conforto sem mudança de vida e de caráter, sem reavaliar suas escolhas e sem se reconciliar com Deus.
A condição apresentada por Jesus é que tomemos sobre nós o Seu jugo, isto é, que nos deixemos dirigir e conduzir por Ele, e, assim, aprendamos a ser, como Ele, mansos e humildes.
Mansidão não é fraqueza, mansidão é a virtude que coloca a força sob o governo da vontade, quer do homem, quer de Deus.
Mansidão não é covardia, mansidão é a virtude que nos dá capacidade de enfrentar os perigos e adversidades com sobriedade, paciência, discernimento, esperança, sob a direção de Deus.
Mansidão é uma condição de rendição a Deus, de ser por Ele conduzido, guiado. Não é uma questão de personalidade ou de temperamento, mas de santidade, de imitação de Jesus. É fruto do Espírito Santo.
Entender isso foi fundamental na minha vida pessoal e me levou, desde jovem, a uma busca sincera de transformação e imitação de Jesus quanto ao meu caráter agressivo.
Tem-nos preocupado muito uma mentalidade belicista que vem tentando incutir a ideia de que os cristãos podem ou mesmo devem recorrer à força e às armas para fazerem valer suas ideias, valores e direitos ou para resistir ao mal, às opressões sociais e investidas de adversários em qualquer área da vida.
No pacote do chamado conservadorismo está incluída uma doutrinação no sentido de validar soluções violentas e mesmo o uso de armas que são absolutamente incompatíveis com o Evangelho de Jesus e com o Novo Testamento.
Quem se atreve a figurar Jesus de Nazaré, o manso e humilde Cordeiro de Deus, um fuzil nas mãos atirando contra seus opositores?
Quando a perseguição vier sobre a Igreja, e virá, nós, cristãos, não vamos nem fugir, nem pegar em armas – “as armas da nossa milícia não são carnais”. Vamos prosseguir proclamando o Reino de Deus, amando e servindo como Jesus. A guerra contra Satanás e seus aliados, espirituais e humanos, será conduzida pessoalmente pelo Cordeiro e Seus anjos. A vocação da Igreja perseguida
é o martírio!
Se há alguma situação em que os cristãos estão legitimados a usar a força e armas, e creio que há, ela jamais poderá nos levar a perdermos a mansidão como parte do caráter que o Espírito quer produzir em nós. Só pode usar uma arma e fazer guerra em nome do Senhor quem não levar armas e guerras no coração, pois, do contrário, estará a lutar com as próprias armas suas guerras pessoais, e não as de Deus!
Humildade não é baixa autoestima. Humildade é reconhecer sua própria condição e posição de criatura diante do Criador, sua pobreza e carência diante de Deus, sua necessidade de ser salvo, suprido e sustentado por Ele. Viver por Ele e para Ele.
Ser humilde, humilhar-se, não é se despersonalizar, mas encontrar sua verdadeira identidade como filho de Deus. Para isso, é necessário arrependimento, renúncia e cruz, para que o Espírito possa habitar em nós e produzir em nós a santidade do Pai.
Quem é humilde – pobre em espírito – nada requer ou exige dos outros: já possui o Reino dos Céus, recebe diretamente do Pai tudo de que necessita.
O orgulho e o egoísmo levam à agressividade e à dominação, a mansidão e a humildade produzem libertação e consolo.
Quando Jesus lavou os pés de seus discípulos. Ele fez uma demonstração dramática de algo que pretendeu ensinar a eles todos o tempo: a servirem, e não serem servidos, a terem o serviço como princípio para o exercício de qualquer função no Reino de Deus.
Os discípulos de Jesus não devem se vestir de paramentos e roupas de honra, mas, como o Senhor, esvaziarem-se de si mesmos para servir aos irmãos.
Essa é uma lição difícil de ser aprendida. O Senhor teve que ensiná-la várias vezes aos Seus discípulos. De fato, é quase inevitável que em qualquer relacionamento ao agrupamento humano surja, explicitada ou não, a pergunta sobre quem é o maior (Marcos 9:33-37).
Infelizmente, a Igreja não é exceção. Cada um de nós traz essa pergunta no coração e procura, nos relacionamentos e nos relacionamentos, sua melhor posição comparativa, quer participando, quer se isolando. Afinal, todos queremos aceitação, reconhecimento, pertencimento, amor.
Essa disputa por primazia é muitas vezes disfarçada por uma espécie de meritocracia espiritual. Quem é o melhor discípulo, marido, esposa, pai, mãe, irmão, irmã discipulador, discipuladora, adorador, adoradora, proclamador, proclamadora, servo ou serva de Jesus? Esses merecem, naturalmente, destaque, devem ser imitados como modelos, devem ser seguidos, atendidos e, afinal, obedecidos!
Não é à toa que a questão logo surgiu novamente entre os discípulos, agora de forma mais explícita: quem vai estar em autoridade, junto com o Senhor no Reino, à Sua direita e à sua esquerda? (Marcos 10:35-45).
A resposta de Jesus foi clara e enfática: o maior no Reino de Deus é aquele que serve. Novamente, Ele a ponta a si mesmo como exemplo: o Filho do Homem veio para servir, e não para ser servido.
O caso é que nós, conhecedores que somos do Evangelho, nos apresentamos como servos, mas logo estamos reivindicando atenção e cuidados dos outros. Queremos fazer prevalecer nossas agendas, interesses, gostos, preferências e conveniências. Se dermos curso a isso, não demorará a estamos tentando controlar e dominar os outros.
Infelizmente, relacionamentos abusivos, opressivos e tóxicos podem acontecer no meio da Igreja, e isso está absolutamente contra o Evangelho de Jesus. Quem quer que exerça qualquer tipo de autoridade ou influência no Corpo de Cristo deve manter a consciência, coração e postura de servo – irmãos, irmãs, companheiros, companheiras, discipuladores, discipuladoras, pais, mães, líderes, pastore e mesmo amigos e amigas.
Temos que ter aqui um cuidado e fazer uma distinção essencial. O mundo vê isso do ponto de vista egocêntrico e egoísta, que considera que cada um deve buscar de forma independente e como prioridade o que mais lhe agrada.
No Reino, sabemos que vivemos em dependência e sujeição uns aos outros e às autoridades legitimamente constituídas pelo Senhor, sob a direção do Espírito, e “onde está o Espírito, aí há liberdade”. “Se o Filho os libertar, verdadeiramente sereis livres”. “Se minhas palavras permanecerem em vocês, vocês serão verdadeiramente meus discípulos, e conhecerão a verdade e a verdade os libertará”.
Finalmente, amar como Jesus nos amou nos leva à dimensão altruísta do amor de Deus, que entregou Seu Filho, e do Filho, que se entregou a si mesmo, encarnando, esvaziando-se e oferecendo-se na cruz. É esse amor que o Espírito Santo derrama em nossos corações, amor que é o contrário da dominação, uma vez que considera sempre, em primeiro lugar o bem do outro e jamais os seus próprios interesses, prioridades, razões ou confortos.
O amor de Deus, o amor com que devemos amar uns aos outros como discípulos de Jesus, não é possessivo, dominador, invejoso, controlador. Não buscas seus próprios interesses. Com esse amor “tudo” sofre, crê, espera e suporta ele não exige nada de ninguém.
Esse aspecto libertador do amor pode ser um desafio para nós em alguns relacionamentos.
Os pais devem reconhecer a liberdade dos seus filhos, concedida por Deus, à medida em que eles crescem e se tornam adultos, ainda que isso possa gerar temores e sentimentos de proteção. Como o pai na parábola dos dois filhos, devem perseverar como modelos de coerência, de amor e de misericórdia, mesmo quando são contrariados, desonrados ou afrontados.
A liberdade dos irmãos de serem como são nos desafia uns aos outros à aceitação, acolhimento e valorização dos que são diferentes de nós e fazem escolhas que nós não faríamos.
“Deus não fez o meu irmão como eu o teria feito”, escreveu Dietrich Bonhoefer, e eu não posso deles retirar a liberdade que o Senhor lhes concedeu.
“Pastoreie as minhas ovelhas”, disse Jesus, três vezes, enfaticamente, a Pedro. Ele mesmo é o bom e supremo Pastor das almas. Todo cuidado e pastoreio só é legítimo quando reconhece isso de princípio e mantém essa consciência em todo o tempo, em cada relacionamento, em cada palavra compartilhada, em cada conversa.
Amados, modelos devemos ser para os outros, na humildade, na mansidão, no serviço e no amor. Assim, jamais nos tornaremos dominadores em nossos relacionamentos ou na obra de Deus.
Que a suficiente graça de Jesus seja com todos.
Fernando Saboia