terça-feira, 29 de maio de 2018

Ciclos

Ciclos das Terras dos Mundos e dos Sentimentos

Ciclos não são repetições, meros retornos ao mesmo tempo, lugar e estado. Ciclos são reencontros, revisitações, retraduções, curvaturas da vida sobre si mesma, dobraduras do tempo e do espaço nos caminhos da eternidade e do infinito. Ciclos são fins que se tornam começos e começos que se tornam chegadas em novas terras, mundos e sentimentos no inesgotável fluir criador e criativo de Deus.
Ciclos envolvem todas as coisas, pensamentos, histórias, sonhos, emoções, razões, façanhas e fracassos, e fazem com que todas se toquem, se interpenetrem, se reencontrem, se reinterpretem, revelando a profunda simplicidade que abraça as infinitudes da Realidade e da Presença.
Meus ciclos, narrados em crônicas poéticas, minhas luzes, minhas trevas, minha jornada, minha solidão de tudo e minha comunhão com tudo o que também cicla comigo, em mim e à minha volta.

Brasília, últimos dias do ano da Graça de 2017.
Fernando, como Fernando
Sabóia, como Elias
Vieira, como Dídimo

 Ciclos

Rever os ciclos
Viver as formas
Pensar o ar
E flutuar na música
Que ele leva

Vivemos a voltar
De onde viemos
Onde nunca estivemos

O medo de ir
Mas o sonho de viajar
A tentação de ficar
Mas o desejo de fluir

- Eu vi um pequeno esquilo tentando atravessar uma avenida larga e movimentada, a ir e voltar, sem saber mais de onde vinha nem para onde ia...



A música

A música me levou
E me trouxe
Me fez voar levemente
Me fez andar calmamente

Me contou histórias
Dos silêncios eternos da criação
Antes da Voz tudo despertar

Sentidos semearam palavras
No silêncio e no coração
E ainda vou ter que as seduzir
Até que aceitem minhas mãos
E meus lábios,
Até que seu sentido, som e silêncio
Se encontrem
Em letra e melodia



A voz

A voz
Na escuridão
É luz
Que não se vê
A voz
No deserto
É caminho
Que não se faz

A voz
Na minha alma
Escura, deserta
É luz e é caminho
Que não vejo
Que não faço

A voz cria
A voz ilumina
A voz desperta

A voz conta histórias
De antes dos começos
E de depois dos fins





O tempo

Por um brevíssimo
Momento
Eu entendi o tempo

Mas o tempo
Não fica aí parado
Para a gente olhar bem
Para ele

Sei que o tempo
É o ser e o não ser e o vir a ser
Encontrados
E separados

Eu sei porque vi...


  

Café da manhã

A bebida quente na manhã fria,
Nas mãos que seguram a caneca,
Nos lábios que tocam o sabor,
No corpo que se acalma com o calor.

O sol apenas timidamente atravessa as nuvens pensativas
E deixa o tempo úmido, lento...

Poucos passarinhos se atrevem na chuva fina
E a cidade parece mais distante, menos agitada...

Tudo me envolve, tudo me enche
E percebo, me integro,
Conheço, sou conhecido
Recebo, sou recebido
Na Presença e na Realidade
Que finalmente compreendo
Como um só existir
Um só respirar
Um só mover

A razão de todas as coisas, horas e ciclos,
O sentido de todos os seres e palavras,
A glória de todas as estrelas e astros,
A vida, o dom precioso da vida

Amar com o amor do Amado
Viver a vida no Amado


Aqui mesmo, enquanto vivemos

Nos ciclos das águas
E dos ventos
No revolver das entranhas da terra
No nascer e no morrer
Em tudo, em tudo flui o Espírito
No ser eterno de Deus

- Na ciclagem dos motores aflitos
Na tosse rouca das máquinas engripadas
Nos mundos inquietos do construir e do destruir
Em tudo, a agonia dos homens
Na luta contra o caos e o nada

Eu caminho no planeta
Que gira e orbita uma estrela morna
Que viaja numa galáxia retorcida
Que corre alucinada
Num universo que passeia
Ninguém sabe por onde...




Não gosto     

Sei que se pode amar
Sem paixão
Mas não gosto

Sei que se pode comer
Sem feijão
Mas não gosto

Sei que se pode viver
Sem viajar
Mas não gosto

Sei que se pode pensar
Sem emoção
Mas não gosto




Estranho amor

Estranho amor
Que mais ama
O menos amável
Que mais busca
O menos encontrável
Que mais vê
O menos visível

Estranho amor
Que mais me quer
Quando menos eu me quero
Que mais me encontra
Quando mais eu me perco

Estranho amor, infinito amor
Na minha estranha vida
Na minha ínfima vida
Buscada, encontrada
Para ser sempre por Ti amada




Ciclo de presença e de ausência

Um pouco distante
É verdade
Mas também inexplicavelmente
Sereno

Completamente
Ausente
Estou fora de tudo
De mim e do mundo

Totalmente
Presente
Estou dentro de tudo
De você e do mundo

Sentimentos que tive
E perdi
Palavras que nunca encontrei
E levo comigo
Calados, eloquentes


  

Ciclos da vida e do tempo

I

Um pouco de solenidade
Nos gestos comuns da manhã:
Escovar os dentes
Sentir a água morna do banho
O primeiro toque ameno do dia
O ritual do nó da gravata
A primeira lembrança da lida

Demorar um pouco mais
Ao olhar e ver pela janela
O sol que se levanta
Iluminando a chuva que cai
Fazendo brilhar – e desaparecer –
O orvalho da madrugada
Como inspiração de viver
Os ciclos da eternidade

Um pouco de suavidade
Nas primeiras palavras
Um certo respeito ao silêncio
Como busca de uma atenção
Mais clara, mais admirada
À consciência da Presença




II

Meus passos andam sozinhos
Nos salões e túneis
Por onde o tempo não caminha
Embora nos surpreenda
Com inesperados percalços
E rostos jovens
E rostos envelhecidos

Salão Negro, solene
De festas e velórios
Salão Branco, funcional
Com a inexplicável chapelaria
Sem chapéus – sem cabeças? –
Salão Verde, desgastado, encardido
Com sua arte invisível, incompreendida
Perdida no meio dos perdidos passos

Corredores
Onde correm o bem e o mal
Profecia e alucinação
Demônios federais, estaduais e municipais
E um ou outro anjo desgarrado
Numa missão impossível

  
III

Na vida
É necessária uma certa liturgia
Para que nem tudo seja profanado
Na necessária eficiência da rotina

Menos humanos seremos
Se não nos tornarmos mais divinos

IV

Havia um amor livre, doce
Ingenuamente alegre
Que ainda procuro
Mesmo depois de ter encontrado

Talvez seja ainda
Um movimento de querer
Um sorriso e um beijo
Como o tudo do dia
Mas que para incompreendido
Quase ofensivo
Nesses seres estranhos
Que conversam comigo
O tempo todo

  
Ciclos das águas e da luz

As nuvens que passeiam
No ciclo das águas
Os pensamentos que fogem
Nos ciclos das mágoas
E os corações que morrem
No momento do olhar

Muito pouco
Se pode ver
Quase nada
Se pode querer

Ciclos intensos
Terríveis, imensos

Em algum lugar, a luz
Que também é um ciclo de energia
Em lampejos de alegria
Nascida nos infinitos
Dos pensamentos de Deus



Excertos de “Ciclos das Terras dos Mundos e dos Sentimentos”
Fernando Sabóia Vieira, Brasília, 2017, A