Caros companheiros de jornada em busca da vida
interior,
Ainda como introdução ao tema da
santidade da alma, tenho alinhavado alguns pensamentos sobre sinceridade e
autenticidade, que compartilho com vocês.
Fernando
Papéis, Personagens, Personalidade e
Autofagia da Pessoa
Fernando Sabóia Vieira
Filipenses 1:10
– “serdes sinceros
e inculpáveis para o Dia de Cristo”
Filipenses 2:15
– “vos torneis irrepreensíveis e sinceros”
Um dos mais pitorescos filósofos gregos
da antiguidade foi Diógenes de Sínope. Tendo assumido uma vida de extrema
pobreza, conta-se, vivia dentro de um barril. Durante o dia, passeava pelas
ruas de Atenas com uma lanterna acesa. Segundo ele, estava à procura de homens
verdadeiros.
Tenho refletido, nesses dias, sobre
sinceridade, autenticidade. Também estou em busca de homens verdadeiros, a
começar por mim mesmo. Sou autêntico? Sou sincero? Expresso o que sou, creio, desejo
e penso, ou estou sempre escondendo algo, sendo conveniente, me disfarçando, desempenhando
um papel, agindo por medo ou vaidade?
Os cristãos deveriam ser as pessoas
mais autênticas e sinceras. Encontramos, nas Escrituras, muitas exortações
nesse sentido. Deus se compraz “com a verdade no íntimo”, deve ser honrado não
apenas com os lábios, mas com o coração, deve ser adorado em espírito e em
verdade. De igual modo, devemos ter uns para com os outros um amor “não
fingido” e celebrar nossa comunhão com os “asmos da sinceridade e da verdade”,
recusando o veneno da hipocrisia farisaica.
Como acontece da pessoa vir a ser
devora por um personagem dela mesma?
Somos todos chamados a desempenhar papéis
na vida. Começamos com os papéis naturais de filhos, irmãos, parentes, depois
de amigos, pais, mães, profissionais etc. Na igreja, do mesmo modo, temos
papéis a cumprir como irmãos, companheiros, discipuladores, líderes, pastores
etc. Um papel significa um padrão, um conjunto de atitudes que devemos ter,
tarefas que devem ser desempenhadas, qualidades a serem desenvolvidas, uma
personalidade a ser moldada, um caráter a ser formado.
O papel é um ideal que ainda não
alcançamos e, por isso, ao nos esforçarmos para desempenhá-lo, acabamos, de
algum modo, representando um personagem: o discípulo, o pai, a mãe, o irmão, o
líder que deveríamos ser, mas que, efetivamente, ainda não somos.
Talvez pudéssemos diferenciar desempenhar de representar um papel, considerando o primeiro o saudável exercício
de responsabilidades e o segundo a artificialidade compatível com as artes
cênicas, mas não com a vida real. No entanto, penso que, na prática, os dois
aspectos tendem a se confundir: quando desempenho um papel, quase que
inevitavelmente, em alguma medida, represento um personagem.
Essa é a face exterior de um processo
que deveria ser sempre comandado por sua dinâmica interior, da comunhão íntima
com Deus e da presença vivificadora do Espírito Santo, única capaz de produzir
uma verdadeira transformação do que somos naturalmente no que devemos nos
tornar nEle, ou seja, de gerar identidade pessoal autêntica, conformada com o propósito para o
qual fomos criados, à medida em que buscamos desempenhar os papéis que Ele a
nós nos destina.
Quando, no entanto, o desempenho de papéis, vale dizer, a
exterioridade, a funcionalidade, se
torna o fator dominante na formação da personalidade e do caráter, ele assume o
aspecto mais próprio da representação,
e o personagem se torna antropofágico passando a consumir a pessoa, que pode
vir a se tornar uma caricatura, uma versão falsa de si mesma. Essa dissociação
da identidade, fracionada entre pessoa e personagem, pode vir a ser patológica,
inclusive.
É curioso notar como o personagem, com
o tempo, conforma não apenas o comportamento e as emoções, mas modifica até
mesmo o corpo, cristalizando posturas, expressões faciais, gestos. Não vemos
pessoas que têm posturas sempre encolhidas, ou desafiadoras, ou apressadas ou
indolentes, ou têm os rostos marcados por expressões de dor, de temor, de
alegria?
Há
nelas, quase sempre, certa artificialidade, uma desconexão da postura e da
expressão com o momento e o ambiente. São as roupas e expressões do personagem
que já está a encobrir a pessoa.
A superposição do personagem em relação
à pessoa pode ter como pano de fundo a consciência de nossa inadequação aos
papéis de nós requeridos, de nossas fragilidades. O personagem é sempre
definido, não oscila, faz o que esperam dele, repete as frases corretas, assume
as posturas que lhe garantirão proteção, acolhimento, reconhecimento, poder
etc. Assim, a pessoa é tentada a se esconder por debaixo do personagem e não
percebe sua própria dissolução.
Esse processo também pode ser
alimentado pela culpa, pelo medo da rejeição, pelo desejo de aceitação, pelo
instinto de autopreservação, pela necessidade de adaptação ao meio. Também
sofremos as pressões da imposição de padrões de sucesso e de realização dentro
e fora da igreja.
As
modernas redes sociais midiáticas são grandes estimuladoras disso, pois possibilitam,
na criação dos perfis, que cada um se apresente como personagem de uma história
de vida construída com muitos elementos de artificialidade.
Identificamos, desse modo, o que
podemos chamar de dilema da transformação. Buscamos sempre desempenhar nossos
papéis e nos tornar pessoas melhores. No entanto, nesse caminho, podemos nos
perder e deixar de ser autênticos.
Thomas Merton escreveu:
“O
homem é um ser livre que está sempre se transformando em
si mesmo. Mas essa transformação nunca é meramente indiferente. Estamos sempre
nos tornando melhores ou piores."
Nós, cristãos, buscamos constantemente
ser transformados à imagem de Deus e temos Jesus como nosso modelo. Mas ao
viver uma vida de imitação do Senhor em suas palavras, obras, coração, atitudes
e sentimentos, ao desempenhar nossos papéis, ao tentar alcançar o padrão de
santidade de caráter que Ele nos requer, temos que ter o cuidado de estar
sempre produzindo uma versão autêntica e verdadeira de nós mesmos, caso
contrário podemos estar apenas representando um personagem que acabará por nos
consumir a identidade pessoal.
É muito importante lembrar que embora
os padrões de vida, comportamento, compromisso, serviço e santidade requeridos
por Deus sejam os mesmos para todos, sua busca e desempenho nunca nos tornará
um exército de robôs homogeneizados e despersonalizados. Ao contrário, cada um
de nós expressará de forma particular e única uma faceta da infinitamente
multiforme natureza divina.
O dramaturgo Luigi Pirandello
(1867-1939) escreveu uma curiosa peça teatral intitulada “Seis Personagens à
Procura de um Autor”, na qual um diretor de teatro tem suas sessões de ensaio
invadidas por seis personagens que desejam ser aproveitados na peça.
Talvez possamos daí imaginar um caminho
de volta para aqueles que estão sendo consumidos por seus personagens: a busca
do Autor da Vida, do nosso Criador, para que Ele nos dê autêntica identidade e
verdadeiros papéis a desempenhar, que nos construam como pessoas.
De todo modo, nossa integridade e
autenticidade pessoal e a sinceridade e verdade do nosso caráter e
comportamento só poderão ser alcançadas pelo caminho da busca da vida interior
pelos indispensáveis passos do esvaziamento, do encontro com Deus, consigo
mesmo, da regeneração produzida pelo Espírito Santo, do ser nova criatura.
Brasília, janeiro/fevereiro de 2013,
AD.
Novamente, um excelente texto. Dizem também que Alexandre o Grande procurou Diógenes, que, nervoso, teria dito: "Afasta-te da minha luz"... Vejo no texto alguns elementos interessantes que, com uma liberalidade não consentida, levarei para o campo da Ciência Política e aplicarei a alguns pensamentos sobre representação, representantes... Agora, no campo da ética cristã, de fato, representar nunca será suficiente, talvez o maior ponto de incompreensão dos fariseus...
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