Igreja, Política e Eleições
Fernando Saboia Vieira
(BSB/SET/2022, AD)
Nesses dias confusos e obscuros que temos vivido é essencial que a Igreja busque na Palavra de Deus, e apenas nela, entendimento e direção. Em momentos de crise assim graves, haverá sempre muitas vozes se manifestando, com variadas motivações, fundamentos e propósitos, especialmente numa situação como a atual que envolve toda a sociedade brasileira.
Consideremos, pois, como Jesus e os apóstolos se posicionam em relação às questões sociais e políticas de seu tempo e o que eles ensinaram e ordenaram sobre o relacionamento da Igreja com o Estado, governantes e autoridades civis.
Jesus e a política
À época do nascimento de Jesus, Israel era governado por um rei pagão, preposto do Império Romano, chamado Herodes, o Grande. Com a morte deste, Israel foi dividido politicamente, pelos dominadores romanos, em tetrarquias, de modo que, ao tempo do início do ministério público do Senhor, reinava na Galileia um de seus filhos, Herodes Antipas.
Embora Israel gozasse de relativa autonomia em relação a questões locais, o Sinédrio era dominado pelos saduceus, aliados politicamente aos romanos, cujos interventores influenciavam até mesmo na escolha dos Sumos Sacerdotes.
Foi um tempo de muita opressão política, econômica e mesmo religiosa, com o povo submetido a pesados impostos e encargos para financiar o império romano e a riqueza dos seus colaboradores judeus.
Havia multidões de pobres, oprimidos e perseguidos, com as quais Jesus muitas vezes se deparou. Como Ele reagiu a essa situação? Como se manifestou sobre ela e o que ensinou a Seus discípulos sobre questões sociais e políticas?
Lemos nos Evangelhos que, desde o seu nascimento, Jesus esteve envolvido na controvérsia política que a esperada vinda do Messias prometido provocava: seria ele o libertador político e militar que reestabeleceria o Trono de Davi?
Herodes, o Grande, “alarmou-se” com a notícia trazida pelos magos do oriente sobre o nascimento do “rei dos judeus”, e com ele “toda Jerusalém”. Imaginando tratar-se de alguém que reivindicaria o trono de Davi, Herodes perseguiu o menino e sua família, provocando a sua fuga para o Egito (Mateus 2:2-3).
No entanto, ao iniciar sua pregação pública, Jesus deixou claro, desde suas primeiras palavras, que viera anunciar “o reino dos Céus”, o “reino de Deus”, chamando as pessoas ao arrependimento e conversão (Mateus 4:17). Em nenhum momento Ele se referiu a uma retomada política do trono de Davi ou pregou rebelião contra a dominação romana.
É significativo lembrar que na tentação no deserto, logo após seu batismo, a oferta final de Satanás foi dar a Ele “todos os reinos do mundo e a glória deles”, pronta e veementemente recusada pelo Senhor (Mateus 4:8-10).
Jesus não se envolveu em questões ou enfrentamentos políticos ou fez propostas de solução dos graves problemas sociais e econômicos do povo pelo caminho da tomada do poder, da libertação da opressão romana, de movimentos de insurreição contra as leis e o governo de Roma, da restauração do trono de Davi, da independência de Israel ou da reforma da sociedade.
Mesmo falando diante de multidões de pessoas necessitadas, oprimidas e perseguidas, ainda que movido de grande compaixão por aquele povo, Ele jamais abordou as questões sociais e políticas envolvidas naquele estado de coisas ou se posicionou sobre elas. Sua mensagem dizia respeito unicamente ao Reino de Deus, que é o Reino dos Céus, e a sua justiça, ao chamado à conversão e ao comprometimento com o governo espiritual do Senhor sobre suas vidas (Mateus 5 a 7; 9:36).
Em verdade, Jesus sempre se distanciou desses debates para que não fosse confundido com um simples libertador político ou reformador social, e para deixar patente que Sua mensagem se dirigia à condição espiritual dos homens e à sua necessidade de salvação eterna.
Assim, pregava tanto aos judeus quanto aos romanos, chegando mesmo a elogiar a fé de um centurião. Nas ocasiões em que se confrontou com Herodes, Ele o fez, a exemplo do que fizera João Batista, por motivos morais e espirituais, e não políticos (Lucas 13:31-35).
Entre seus doze discípulos estavam um publicado e um zelote, pessoas, pessoas que estavam nos extremos do espectro político da época, à direita e à esquerda. Em Cristo, ambos foram recebidos no Reino de Deus e essa diferença política perdeu o sentido.
Houve mesmo ocasião em que a multidão pretendeu proclamá-lo rei, mas Ele recusou expressamente, retirando-se para um local solitário (João 5:15).
Quando indagado sobre o pagamento de impostos, Ele destacou que, do ponto de vista de um critério de justiça, os filhos da terra deveriam estar isentos de pagamento, segundo os costumes da época, mas providenciou o dinheiro necessário para satisfazer a demanda do poder político que imperava sobre eles, a fim de não provocar escândalo (Mateus 17:24-27).
Quando Jesus entrou em Jerusalém sob o aplauso e saudação do povo, na última semana do Seu ministério, houve quem novamente quisesse ver nele um líder político que vinha desafiar o poder de Roma.
No entanto, em verdade, Ele vinha para cumprir Sua missão e morrer na cruz para remissão dos pecados dos homens e inaugurar uma nova aliança que permitisse o acesso das pessoas a Deus (Mateus 21:1-11).
Naqueles dias, seus opositores de Jerusalém tentaram novamente forçá-lo a se posicionar politicamente, propondo-lhe uma pergunta sobre o pagamento de impostos a Roma, expressão maior da opressão estrangeira sobre o povo judeu e da submissão de Israel como nação.
Em Sua resposta, Jesus não se insurgiu contra a dominação romana e a extorsiva arrecadação de tributos, mas estabeleceu um princípio para seus discípulos: “a César, o que é de César, a Deus, o que é de Deus”.
Ou seja, a Igreja deve ser mantida separada do Estado, cumprindo seus deveres civis e sujeitando-se às autoridades políticas, mas conservar sua fidelidade e lealdade a Deus, sem comprometimentos ou ressalvas (Mateus 22:15-27).
Dito de outra forma, nos assuntos de Deus, não devemos aceitar a ingerência do poder do Estado, nem nos sujeitar a outros comandos senão os do Senhor. Nos assuntos do Estado, devemos cumprir nossos deveres como cidadãos, respeitando as leis e as autoridades estabelecidas.
A fronteira entre Igreja e Estado deve ser discernida com base na Palavra de Deus e somente nela, para que não sejam considerados como negócios do Pai projetos e objetivos humanos, e para que não se tente cuidar dos propósitos do Reino por meio de poderes e recursos seculares.
O primeiro movimento seria politizar o Evangelho, e o segundo, tentar realizar o Reino de Deus neste mundo. Ambos são caminhos que foram expressamente recusados por Jesus.
É importante mencionar que em seus discursos sobre as últimas coisas Jesus sequer tangencia questões políticas. As guerras e conflitos entre nações, a decadência moral da humanidade e a perseguição da Igreja são profetizados por Ele como o inevitável desfecho da história humana, que culminará com Sua volta e, aí sim, o estabelecimento do Seu Reino.
Durante o julgamento de Jesus perante o procurador romano Pôncio Pilatos, novamente seus detratores tentaram enredá-lo com a política. Não tendo como apontar contra Ele nenhum crime, pretenderam forjar uma acusação de sedição política contra César, afirmando que Jesus se declarava rei dos judeus e promovia rebelião (Lucas 22:66 a 23:4). Nem Pilatos acreditou nisso, percebendo que era por inveja que os líderes religiosos queriam Sua morte (Mateus 27:18).
Jesus reconheceu a autoridade de Pilatos para julgá-lo, como lhe tendo sido conferida do alto, mas afirmou, mais uma vez, que o Seu Reino não é deste mundo (João 18:36; 19:12-15).
Finalmente, após Sua ressurreição, já glorificado, quando Seus discípulos lhe perguntaram se já seria aquele o tempo de restaurar o reino a Israel Ele respondeu que não lhes competia conhecer tempos ou épocas que estavam sob autoridade exclusiva do Pai (Atos 1:6-11).
Sua Igreja não teria, portanto, projeto político, nem se envolveria com a disputa de poder secular. Sua atuação na sociedade seguiria o exemplo do Mestre, com obras de misericórdia e socorro aos aflitos, aos oprimidos e aos pobres, pregação do Reino de Deus para transformação dos homens, denúncia profética do mal, da injustiça e da opressão.
Os apóstolos e a política
Lemos nos Atos dos Apóstolos que a Igreja foi perseguida, desde o início, pelas autoridades judaicas e romanas.
Pedro e João, e depois os apóstolos, foram presos por ordem do Sinédrio, castigados e proibidos de pregar o Evangelho. Evidentemente não obedeceram, considerando que “importa antes obedecer a Deus do que a homens” (Atos 5:29). “A Deus o que é de Deus”.
Herodes perseguiu a Igreja, chegando a mandar matar Tiago. Deus mesmo se encarregou de exercer justiça contra o rei ímpio, enquanto a Palavra do Senhor crescia e se multiplicava (Atos 12:1-3, 21-24).
A igreja prosseguiu sua missão, vendo cumpridas as palavras de Jesus sobre ser perseguida, entregue às autoridades e dar testemunho perante elas (Mateus 10:17-20).
Paulo também foi perseguido pelas autoridades religiosas judaicas, ao ponto de ser preso pelos romanos em razão do tumulto causado por sua presença em Jerusalém. Enfrentou um longo processo no qual os governadores de Roma não encontraram nele nenhum delito civil ou criminal. Diante das ameaças contra sua vida por parte dos judeus, e tendo em consideração a palavra do Senhor de que ele deveria ir a Roma para pregar, Paulo valeu-se de sua cidadania romana e apelou para ser julgado por César.
Vemos que em nenhum momento Paulo se insurge contra a autoridade de Roma imposta a Israel. Na verdade, ele usou as leis e o sistema judiciário romano a seu favor, para evitar ser morto pelos judeus e chegar até Roma.
A postura de Paulo é coerente com o ensino apostólico que ele trouxe à Igreja em Romanos 13:1-7. As autoridades civis e políticas devem ser obedecidas e respeitadas, porque instituídas por Deus. Ele não condiciona essa obediência à concordância com as leis ou decisões por elas editadas, nem a uma discussão sobre sua legitimidade.
O mesmo entendimento encontramos em 1a de Pedro 2:13-14.
Trata-se da aplicação de um princípio estabelecido por Deus em Sua ordenação, desde a criação, e por Jesus em Seu ensino no Evangelho. “A César o que é de César”.
Participação da Igreja na sociedade e na política
A Igreja, como tal, não tem um projeto político próprio. Não pode ter, porque nem Jesus nem os Apóstolos tinham. Esse é um assunto da sociedade humana. Como cidadãos, podemos e devemos participar das questões sociais e políticas e influenciar instituições e decisões que afetam a todos, até mesmo como forma de proclamação do Reino de Deus. Podemos até mesmo ter propostas políticas, exercermos cargos públicos e disputarmos eleições. Mas não podemos envolver a Igreja de Deus nesses projetos.
Podemos usar as leis em defesa de nossos direitos e interesses e dos desvalidos, recorrendo aos tribunais e autoridades. Podemos exercer cargos e funções de interesse público dentro das regras do nosso ordenamento político.
Como cristãos, só podemos desobedecer às autoridades políticas, aos governantes, leis e juízes quando seus provimentos contrariarem diretamente a Palavra de Deus, nos ordenando o que Deus nos proíbe ou nos proibindo o que Deus nos ordena. E a definição desses parâmetros e limites deve ser encontrada estritamente nas Escrituras, não em filosofias, ideologias, teorias ou profetismos.
Finalmente, em sua instrução a Timóteo, Paulo destaca o especial dever de orarmos “em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade” (1ª a Timóteo 2:1-2). Novamente, nenhum condicionamento em função do sistema político ou da correção das ações e leis adotadas.
A partir desses fundamentos bíblicos, algumas conclusões e direções podem ser apontadas.
A Igreja de Jesus não deve ter uma expressão política nem participar, como tal, das disputas pelo poder.
O Senhor não nos deixou projetos de governo ou de sociedade. A Igreja não deve fazer alianças com partidos ou governantes, nem com os que se autodenominem cristãos ou prometam paz e tranquilidade aos crentes. Devemos permanecer dedicados à proclamação do Reino, a fazer discípulos, a edificar o Corpo de Cristo, a amar e servir aos homens, a adorar a Deus e sermos Suas testemunhas.
Como cristãos, devemos participar da sociedade, de seus problemas e questões, cumprindo nossos deveres cidadãos e cooperando com o bem-estar de todos, podendo, inclusive, exercer cargos e funções sociais e políticas que não comprometam nosso testemunho e nossa fé. Também devemos nos dedicar especialmente ao socorro aos desvalidos e à defesa dos seus interesses.
No âmbito da política, nossa participação deve se orientar pela defesa dos valores do Reino de Deus, inclusive votando e apoiando candidatos e governantes que defendam e promovam essas causas.
No entanto, devemos manter clara a diferença entre uma eventual co-beligerância, que nos permite cooperar com propostas e projetos específicos, alinhados com nossa crença, e fazer alianças com pessoas, movimentos ou instituições, que nos levariam, fatalmente, a um comprometimento indevido da nossa fé e da nossa lealdade ao Senhor. Não podemos nos encontrar numa posição divididos entre dois senhores.
É igualmente necessário ter clareza quantos aos limites da ação social e política. Bons governantes e boas leis nunca impediram as pessoas de praticarem o mal. Apenas são úteis como contenção dos excessos, para que a vida em sociedade seja possível. Este é, sem dúvida um bom propósito pelo qual devemos lutar, mas sabemos que isso não cumpre a vontade de Deus para as pessoas, e não deve nos desviar do nosso chamado como discípulos.
Assim, é imperioso separar criteriosamente, com base na Palavra de Deus, os temas que pertencem a Igreja daqueles que são próprios de outros contextos da vida social, como a economia, a ciência e a política, para não confundirmos as coisas de César com as de Deus e não comprometermos nossa lealdade absoluta ao Senhor.
O tempo presente: eleições
Mais uma vez nosso País caminha para um período eleitoral conturbado. Além das questões sociais, econômicas e políticas que estão sempre presentes nas agendas nesses momentos, lidamos, presentemente, com os dilemas e perplexidades que envolvem a participação expressiva dos evangélicos nesse processo.
Em tal contexto, cremos ser fundamental que nós, cristãos, não nos esqueçamos que nossa prioridade deve ser o Reino de Deus, a santidade pessoal, o testemunho, o amor, o serviço, a salvação das pessoas. Mansos humildes, pacificadores, misericordiosos, não vingativos.
Que lástima se a defesa de um candidato ou posição política trouxer escândalo e distanciamento das pessoas a quem devemos amar e anunciar o amor de Deus! Se formos rejeitados por aqueles que não aceitam o Evangelho, não devemos estranhar isso. Mas as pessoas recusarem nossa pregação por razões e questões alheias ao que Jesus e os Apóstolo pregaram e ensinaram, então devemos rever nossa condição de discípulos de Jesus e nossa fidelidade primeira ao Reino.
É necessário diferenciar a participação dos irmãos e irmãs na política, como apoiadores ou candidatos, do envolvimento da Igreja e do Evangelho. A Igreja de Jesus não tem partidos nem candidatos. Deus não tem ideologia. Ninguém está autorizado a fazer campanha política como se fosse o candidato de Deus.
Penso que os pastores e líderes não devem, nessa condição, indicar candidatos ou partidos, nem fazer propaganda política ou eleitoral, nos encontros e ambientes da Igreja, presenciais ou virtuais, nem invocar sua condição de ministros ou sacerdotes para direcionar o voto dos irmãos.
Devem ensinar, instruir, apresentar com clareza os ensinos de Jesus e ajudar a discernir as ideias, propostas e ideologias à luz da Bíblia, mas não fazer propaganda eleitoral na Igreja.
Como cidadãos e como cristãos, todos podemos ter opiniões e preferências e mesmo tentar convencer os demais sobre nossas posições e razões. Mas não podemos usar uma condição de ascendência ou reconhecimento espiritual para constranger os irmãos a quem devemos serviço e pastoreio em nome de Jesus.
Precisamos, também, cada um de nós, ter cuidado com contaminações ideológicas e alinhamentos políticos, e buscarmos princípios coerentes com nossa fé que nos ajudem a decidir na arena eleitoral.
Além disso, a Igreja não pode perder sua dimensão profética de proclamação da justiça e de denúncia do mal por ter aderido a um projeto ou liderança humana.
Não podemos politizar o Evangelho de Jesus e não podemos ter a ilusão de que a política seja um meio legítimo e adequado para implementar o Reino de Deus. Como apontamos, o Senhor recusou ambos esses caminhos.
Amados, que o Senhor Jesus, no Dia da Sua manifestação, não nos encontre ocupados e embaraçados com questões, sociais, ideológicas ou políticas sobre as quais não temos mandamento da parte d’Ele. Ao contrário, que sejamos achados vivendo piedosamente, edificando Sua Igreja, amando uns aos outros e aos homens, proclamando o Seu Reino a nossa geração e fazendo discípulos por toda parte.
Ainda mais nestes tempos de angústia e desesperança, de iniquidade e de perversão, de confusão e opressão, a Igreja deve ser sal e luz para todos, socorrendo aos aflitos, pregando aos perdidos, acolhendo aos desvalidos.
Olhar apenas para Jesus, para seus mandamentos, fundamentar-se no Seu ensino e na doutrina dos Apóstolos, seguir seu exemplo e modelo, cumprir a missão até o fim.
Que a suficiente graça de Jesus seja com todos.
Soli Deo gloria!
Seu conservo,
Fernando Saboia Vieira