quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sobre a Rocha


São Gregório de Nazianzo (330-390), bispo, doutor da Igreja
Discurso 26

Edificados sobre a Rocha

Certa noite, andava eu a passear à beira-mar e, como diz a Escritura, «soprando uma forte ventania, o lago começou a agitar-se» (Jo 6,18). As vagas elevavam-se ao longe e invadiam a praia, batendo nos rochedos, desfazendo-se e transformando-se em espuma e em gotículas. Os seixos pequenos, as algas e as conchas mais leves eram arrastados pelas águas e atirados para a praia, mas os rochedos permaneciam firmes e inabaláveis, como se tudo estivesse calmo, mesmo no meio das vagas que os assolavam. […]


Retirei uma lição desse espectáculo. Esse mar não será a nossa vida e a condição humana? Também aqui se encontra muita amargura e instabilidade. E não serão como os ventos as tentações que nos assolam e todos os golpes imprevistos da vida?

 Era nisso, segundo penso, que meditava David quando clamava: «Salva-me, ó Deus, porque as águas quase me submergem; estou a afundar-me num lamaçal profundo, não tenho ponto de apoio; entrei no abismo de águas sem fundo e a corrente está a arrastar-me» (Sl 69,2ss).

Entre as pessoas que são postas à prova, umas parecem-me objectos ligeiros e sem vida que se deixam levar sem oferecer a mínima resistência; não têm nenhuma firmeza em si; não têm o contrapeso duma razão sábia que lute contra os assaltos.

 Outras parecem-me rochedos, dignas dessa Rocha sobre a qual fomos edificados e que adoramos; formadas nos raciocínios da verdadeira sabedoria, elevam-se acima da fraqueza comum e tudo suportam com uma constância inabalável.






quarta-feira, 25 de junho de 2014

A Arte de Envelhecer

ARTE DE ENVELHECER


Recebi um dia desses uma correspondência do meu dileto amigo Cairos. Eu já estava, em verdade, sentindo falta de suas provocativas e criativas reflexões sobre a vida, frutos de sua vocação para filósofo desocupado e pensador do caos cotidiano.
        Bem, ele não me decepcionou. Encaminhou-me esse texto que compartilho com vocês, embora fuja um pouco à proposta deste espaço virtual.
Se tiverem algum comentário ou queixa comprometo-me a transmitir a ele, sem muita esperança de que reconsidere. Trata-se de um obstinado a pensar por conta própria.

Reflexões sobre
A VETUSTA E QUASE ESQUECIDA
ARTE DE ENVELHECER

Cairos Anann Cronn

            Conselhos que dou a mim mesmo, nesta quadra estranha da vida.
1)    Escolher minhas demências senis. Não supor que não as terei. Melhor preferir algumas a ser vítima de quaisquer.

2)    Evitar o ridículo de querer se manter eternamente jovem e o patético de ser um velho covarde.

3)    Manter a autocrítica, o senso do ridículo. Não pode haver nada mais ridículo do que um velho ridículo que não se enxerga mais.

4)    Evitar o modernismo e também o anacronismo. Viver na suspensão do tempo. Esse é um dos privilégios da idade: não ter que ir nem ter que voltar

5)    Ser cada vez mais sério: ninguém suporta – pelo menos eu não – um velho debochado.

6)    Falar cada vez menos. O silêncio fica bem nos mais velhos, combina com as longas estradas percorridas.

7)    Reconhecer os novos limites e saber que alguns serão insuperáveis. “Olimpíadas” da terceira idade são a quintessência da degradação humana.


8)    Não contar histórias a quem não quer ouvi-las e, principalmente, não contá-las várias vezes.

9)    Ouvir as histórias dos outros, com cada vez maior atenção. Elas levam a mundos alternativos e fantásticos, cheios de aventuras, dramas e riquezas humanas.

10)                      Tentar aprender sempre algo novo, de preferência por puro prazer.

11)                      Manter o máximo de autonomia, mas aceitar ajuda. Quem não aceita ajuda acaba dando mais trabalho.

12)                      Terminar o que já foi começado, antes de iniciar projetos que não se poderão concluir.

13)                      Conviver cada vez mais com os mais jovens. Eles são janelas para os futuros que eu não verei.

14)                      Evitar a futilidade e a frivolidade. São afrontas ao dom precioso da vida e um desrespeito profundo a si mesmo.

15)                      Valorizar o tempo, não ter pressa para o que for belo, significativo e eterno, sem se perguntar se é “útil” ou “produtivo”.

16)                      Manter uma razoável quantidade de dúvidas na mente. Recusar as explicações “cabais”: elas encolhem a alma.

17)                      Nunca deixar de se admirar com a vida, com o mundo, manter-se perplexo diante das coisas mais cotidianas.

18)                      Manter o olhar para adiante, isto é, para a eternidade, embora a curva na estrada e a nuvem escura no horizonte.
19)                      Aceitar as críticas e admoestações, não obstante a arrogância dos jovens e a impaciência dos velhos. Você está entre uma coisa e outra.
20)                      Não desejar nem temer a morte. “Sê bravo, sê forte, não fujas da morte, que a morte há de vir” (GD).

21)                      Muito cuidado com o ceticismo. Aparência de sabedoria ele tem, mas“lado negro da força ele é” (MY).

22)                      Aceitar as incompletudes da vida para poder viver plenamente.

23)                      Evitar conversar comigo mesmo e com meus amigos invisíveis – ausentes, falecidos, fictícios – diante de pessoas que não têm esse nível de transcendência espiritual.

24)                      Não esperar das pessoas o que elas não têm para dar, mesmo quando elas pensam que sim e o prometem: “de onde menos se espera, daí é que não saí nada mesmo” (BT).

25)                      A sabedoria do tempo é: eu antes NÃO sabia apenas superficialmente as coisas que hoje não sei profundamente.

26)                      Não tentar mudar a ninguém exceto a mim mesmo.

27)                      Não reclamar: as coisas e as pessoas que nunca se importaram não começarão a se importar agora.

28)                      Não falar alto. As pessoas não estão ficando surdas, Elas apenas não estão sempre interessadas no que tenho a dizer.

29)                      Não ficar com raiva quando tomam minha insistência por idiotia – talvez seja mesmo.

30)                      Fazer de tudo para não perder mais nenhum por do sol, ECLIPSE, lua cheia ou passagem de cometa.          

terça-feira, 17 de junho de 2014

O sol se levanta sobre bons e maus

Juliana de Norwich

 (1342-depois de 1416), mística inglesa
«Revelações do amor divino», cap. 35

«Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus»

Tudo acabará em bem: a plenitude da alegria consiste em ver Deus em tudo. Através do mesmo poder, sabedoria e amor benditos com que criou todas as coisas, Ele conduz tudo continuamente para o mesmo objectivo e encaminhará tudo para Ele. Quando chegar a altura, vê-lo-emos claramente. […] Tudo o que Nosso Senhor faz é justo; tudo o que permite contribui para o seu desígnio – o bem e o mal. Porque tudo o que é bom é obra de Nosso Senhor; e o que é mau, Ele o permite. Não digo com isto que o mal seja válido; digo que aquilo que Nosso Senhor permite contribui para o seu desígnio. Deste modo, a sua bondade será conhecida para todo o sempre, bem como as maravilhas da sua humildade e da sua doçura nesta obra de misericórdia e de graça. […]


O próprio Deus é a rectidão por excelência; todas as suas obras são justas, ordenadas que estão desde toda a eternidade pelo seu grande poder, a sua grande sabedoria, a sua grande bondade. Tal como estabeleceu tudo da melhor maneira, assim opera sem cessar com rectidão e conduz todas as coisas até ao seu fim. […] Nós estamos protegidos maravilhosamente e para sempre nesta rectidão, mais do que qualquer outra criatura.


E a misericórdia é uma obra que provém da bondade de Deus; ela manter-se-á enquanto for permitido que o pecado atormente as almas justas. […] Deus permite as nossas quedas; mas protege-nos pelo seu poder e a sua sabedoria. Pela sua misericórdia e a sua graça, eleva-nos a uma alegria infinitamente maior. É assim que Ele quer ser conhecido e amado: na rectidão e na misericórdia, agora e para sempre.