Caros,
Começo a compartilhar aqui o conteúdo do meu livro "Uma Jornada em Busca da Vida Interior", que será eventualmente publicado em forma impressa.
I – Início da Jornada: a Vida Interior
“Por isso não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia ... não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas” (2a Coríntios 4:16,18)
“... que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior...” (Efésios 3:16)
Caros companheiros e companheiras de jornada em busca da vida interior,
Tenho, ao longo dos anos, lido, meditado e compartilhado sobre recolhimento, meditação, contemplação. Considero-me um absoluto iniciante nessas matérias, mas tenho sido fortemente movido pelo desejo de uma espiritualidade mais íntima, mais transformadora, mais centrada na comunhão com Deus.
Uma linha de aprofundamento dessa busca se desenhou para mim a partir de dois textos paulinos nos quais ele contrasta o “homem exterior” e o “homem interior” (2a aos Coríntios 4:16-18; Efésios 3:16).
Quero, assim, apresentar, aos que sentirem a mesma sede de experimentar os rios de água viva que fluem do “interior”, minhas reflexões sobre o tema, divididas em três partes: a primeira, sobre a tensão entre o “homem exterior” e o “homem interior”, como dimensões de consciência e de atividade da alma; a segunda, constituída pela breve exposição de vários textos bíblicos acerca da vida interior, demonstrando sua importância e natureza; e a terceira, dedicada à sugestão de um “roteiro de viagem”, para uma jornada em busca da vida interior.
Que a graça de Jesus seja com todos.
Fernando Saboia Vieira
1) O homem interior e o homem exterior
A alma humana desenvolve suas atividades conscientes em duas dimensões: uma, interior, e outra, exterior, nas quais atuam as suas faculdades, ou potências, como diziam os antigos, a consciência, o pensamento, a cognição, a inteligência, a imaginação, os sentimentos, a vontade, a imaginação etc.
A dimensão interior das atividades da alma diz respeito a nossa autoconsciência, o nosso eu presente para si mesmo, o que “somos” momento a momento, a percepção de nossa própria existência como pessoas. Estamos sempre conscientes de nós mesmos, de nossos sentimentos, vontades e pensamentos, de uma “realidade interior” que está permanentemente em nós e que reconhecemos como a essência do nosso ser.
A dimensão exterior se refere à percepção daquilo que nos cerca, das atividades, realizações, problemas, aspirações e relacionamentos que nos inserem no ambiente físico, biológico, social e relacional em que nos encontramos, do qual participamos, e a que, de algum modo, pertencemos. Estamos sempre conscientes de tudo o que está à nossa volta, de estarmos imersos numa “realidade objetiva” com a qual temos que lidar.
Em todo momento, olhamos simultaneamente para ambas essas dimensões e, assim, nossa alma flutua continuamente entre o nosso mundo interior e o mundo exterior, ativando suas faculdades que se voltam para um e outro aspecto da existência.
Embora sempre atentos a essas duas dimensões, somos, no entanto, fortemente atraídos pela vida exterior, para a qual apelam nossos sentidos físicos e para a qual nos impulsionam nossas necessidades vitais a serem supridas. Tornamo-nos, assim, muito naturalmente sensíveis às possibilidades e circunstâncias do ambiente que nos cerca, as quais nos atraem, nos atemorizam, nos demandam, nos desafiam e geram desejos, medos, expectativas e conflitos, os quais sentimos e vivenciamos intensamente.
Desse modo, pode acontecer que nossa alma esteja constantemente “ausente de casa”, isto é, fora do contato com o seu mundo interior, com sua verdadeira identidade, seu valor eterno e seu significado pessoal, que apenas lhe são conferidos na sua dimensão espiritual e íntima, onde o Espírito de Deus com ela se comunica.
Vivemos num mundo exterior repleto de imagens, sons, sensações, pressões, desafios, necessidades, tentações, aparências. Nossa alma passa a maior parte do tempo e investe a maior parte de sua energia vital em atividades “externas”, vagando no mundo das possibilidades, dos trabalhos, das realizações, dos perigos, dos desafios, envolvida com ansiedades, temores, aspirações, desejos etc.
Há, assim, um grande desgaste emocional e espiritual na busca de uma “realidade” que nunca está lá, que não podemos alcançar nem controlar e que não é capaz de suprir nossas necessidades mais fundamentais de identidade, sentido, valor e significado.
É um desgaste do “homem exterior” que não produz, todavia, renovação do “homem interior”; ao contrário, este também se enfraquece com o desânimo e desesperança, podendo chegar mesmo à exaustão e ao abatimento físico.
Há um mandamento da lei moral de Deus frequentemente esquecido, ignorado mesmo, pelos cristãos modernos:
“Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho...”.
Essa não é uma mera recomendação do Senhor para nosso conforto e bem-estar, nem um preceito ritualista. É uma ordem de Deus que desafia e confronta nosso ativismo, nossa cobiça, nossa busca de nossos próprios interesses, nosso egoísmo e, principalmente, nossa falta de confiança na bondosa providência de Seu amor.
Nós temos uma enorme dificuldade de parar e de descansar porque vivemos numa sociedade na qual o fazer define o ser. Enquanto estamos envolvidos em algum “fazer” nele encontramos sentido para a vida e assumimos uma identidade perante os outros. Mas, quando não estamos “fazendo” algo, nos deparamos com um vazio, um silêncio e uma falta de significado que nos assombram.
Somente quando paramos e descansamos, quando nos libertamos das externalidades da vida material e das sensações que nossos sentidos nos trazem a todo momento, é que temos a oportunidade de um verdadeiro encontro com a dimensão mais profunda de ser e de existir, para além do “fazer”, e estabelecemos um diálogo com nosso ser pessoal e com o Ser Infinito que nos chama a uma comunhão com Ele.
O ativismo moderno, que contamina também os cristãos, muitas vezes envolvidos em mega organizações, com mega orçamentos, megaprojetos e intensíssimas agendas, já foi chamado de a “heresia da ação”, quando pretende transformar o mundo por essa via, esquecendo-se de que a Igreja deve ter como primeiro alvo a santidade e o Reino de Deus.
Até mesmo a busca de santidade tem sido objeto de métodos, planos, estratégias, gestões e programas complexos, cansativos, verdadeiramente sobre-humanos, que pretendem atingir por meios naturais o que apenas se pode alcançar mediante a ação do Espírito Santo em nós.
O fato é que o homem moderno teme profundamente o silêncio e a solitude. Prefere se manter distraído e alienado de si mesmo o maior tempo possível, enchendo-se de sensações, desafios, sons, imagens, prazeres, projetos para, assim, não precisar enfrentar aquelas perguntas fundamentais que fatalmente lhe ocorrerão nos momentos de quietude e de reflexão.
Essa desconexão com sua natureza espiritual, todavia, é causa de angústia e sofrimento, e fonte das doenças de alma que assolam como epidemia esta geração.
Nossa civilização tecnológica, mais do qualquer outra na história, é pródiga em fornecer, de modo praticamente ininterrupto, distrações para ocupar os sentidos e entorpecer a alma.
Desse modo, nós ficamos, a maior parte do tempo, “ausentes” de nosso ser verdadeiro e profundo, não rotulado e não definido por suas atividades externas, nem pelas contingências do tempo.
Ora, o mundo físico “exterior” é caótico, perigoso e cheio de “aflições”, tanto quanto de atrativos e de seduções. Também é, na verdade, menos seguro e objetivo do que nossos sentidos parecem nos informar. O que se projeta em nossa mente a partir dele são sensações, percepções e informações filtradas pela nossa limitada capacidade de ver, de ouvir, de sentir, de perceber e de apreender.
Os mundos não físicos que nós criamos com nossos sonhos, fugas, alienações, medos e fantasias, também “exteriores” a nosso ser interior, são igualmente confusos, aflitivos e enganosos.
Tanto o mundo físico que nos cerca quanto os mundos de sonhos que criamos são, em boa medida, ilusões de nossos sentidos e de nossa mente. Eles não são a Realidade, mas apenas aproximações dela, representações parciais, eventualmente distorcidas, eventualmente verdadeiras, eventualmente belas, eventualmente assustadoras, mas que não podem nos levar a um encontro verdadeiro conosco mesmo e com a Vida.
Por outro lado, temos muitas dificuldades em buscar interiormente o sentido para nossa vida, o silêncio e a nossa identidade essencial, pois tememos encontrar aí um grande vazio, perguntas que não respondemos, esperança que não temos, uma inquietação (angústia) permanente de viver e de, finalmente, não viver.
Ocorre que quando nossa vida é assim orientada pelo “exterior”, voltada intensamente para essa dimensão, ela perde contado com sua origem, com sua fonte de vida, e não consegue encontrar “lá fora” nada que de fato a satisfaça, lhe dê sentido e significado.
Muita debilidade espiritual e doença de alma tem sua origem nessa desconexão entre o homem exterior e o interior, no enfraquecimento deste último e no superdimensionamento das atividades periféricas da alma em detrimento de uma busca efetiva de fortalecimento espiritual, que só pode vir das fontes interiores de nossa comunhão com Deus.
Essa tensão interior/exterior é, assim, num sentido, mais profunda do que aquela outra, pecado/santidade, uma vez que, quanto a esta segunda, muitos tentam viver uma vida de santidade guiados por pressões e estímulos “espirituais” também exteriores, como os legalismos e os usos e costumes aprovados pela religião, e não orientados pelo fluir do Espírito que, desde o interior, jorra como fonte para a eternidade.
A questão é saber como conectar nosso ser interior com as fontes da Vida, com a Realidade, isto é, com o próprio Deus pessoal e infinito, e, a partir dessa união, fluir para uma existência verdadeira e significativa que possa ordenar e harmonizar essas duas dimensões e, assim, dar sentido e integridade ao nosso ser e fazer.
Toda nossa atividade exterior será inútil, desgastante, doentia e potencialmente pecaminosa se não for orientada a partir do interior, da comunhão íntima com o Espírito Santo e sob a direção dele, mesmo que desenvolvida em função de necessidades reais, de bons propósitos e até mesmo em busca de espiritualidade.
Somente quando nossos pensamentos, sentimentos e vontades estão ordenados, purificados, transformados e guiados pelo Espírito que habita “dentro de nós” é que podemos ter uma vida saudável e significativa.
Quando falamos em “ordenar” a vida de alguém, ou a nossa própria, o que primeiro nos vem à mente são exterioridades, como o cumprimento dos mandamentos, a observância de um padrão de santidade nos relacionamentos, nas várias áreas da vida etc.
Ainda quando falamos em “ordenar o caráter”, focamos muito em aspectos externos, como comportamentos adequados e a prática de atividades espirituais. No entanto, é do interior que flui o poder transformador do Espírito Santo para viver uma vida significativa e do agrado do Pai. É de lá que a vida verdadeira nos é continuamente comunicada e somente de lá ela pode ser transmitida.
Desse modo, mesmo procurando viver em santidade, podemos nos desgastar, nos frustrar grandemente com tensões e contradições e colher poucos frutos, se não tivermos uma vida gerada e guiada a partir do interior.
Nossa “agenda” deve ser governada por nossa comunhão íntima com Deus, não por nossos sonhos e fantasias e nem pelo caos das circunstâncias.
O Senhor disse que viria fazer morada “dentro” de nós pelo Espírito Santo. Ele é o gerador, criador e sustentador da vida. O propósito da existência de todo ser criado é estar unido a Ele.
É do interior que fluem os rios de água vida, é lá que o Espírito nos vivifica, comunica o amor de Deus, intercede por nós, nos consola e nos transforma, produzindo Seu fruto.
O fortalecimento do homem interior se dá pela habitação de Cristo no coração, pela fé. Acontecendo isso, temos revelação do amor de Deus e podemos ser tomados de sua plenitude.
Quando nossa vida é gerada, dinamizada e dirigida a partir de seu verdadeiro centro, que é a união de nossa alma com Seu Criador, ainda que soframos desgastes oriundos de nossa existência neste mundo, somos renovados interiormente.
Na parte seguinte, vamos explorar alguns textos bíblicos que destacam a importância, a natureza e a precedência da vida interior para uma comunhão efetiva, profunda e transformadora com Deus.
Seu conservo e companheiro de jornada
Fernando